Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Thursday, November 28, 2024

EVANESCER


 Evanescência é um substantivo feminino. 

“Efemeridade; característica do que é evanescente, fugaz ou efêmero. Qualidade do que tende a se dissipar; que se altera ou se transforma.”

Nossa amizade tem 12 anos, 4 meses e algumas vidas passadas. 

Eu sempre chamei você de Pilar, seu sobrenome. Porque esse nome representava, pra mim, a sua força. Embora pareça fálico. Mas eu não conheci ninguém mais tão fálica que você, mesmo sendo tão contra-fálica.

E mesmo antes de você ser internada, quando os médicos disseram que não havia mais nada, alguns meses antes você mjá iniciava seu processo de evanescência. Seu corpo foi se dissolvendo, pouco a pouco, na estrada do tempo. 

Eu sei que você sentiu dores físicas e psíquicas, mas esse pilar encrustrado na sua alma de mulher selvagem fizeram você agarrar cada fio de vida com tanta força que às vezes parecia que nada estava acontecendo. 

Dois meses atrás a gente se encontrou e você já estava “evanescida”. Muito magra, muito fraca, muito cansada, muito ocre. Mas a alma furacão da Pilar continuava cheia de vida e planos. 

Mas há pouco mais de dez dias, quando soube que você estava internada, meu coração apertou por medo de que não desse tempo de te encontrar vida-em-seu-corpo.

Você me disse, como seu fosse uma ordem: “Está na hora do milagre”. 

Mas o que mais me angustiou foi ler:

“Eu tô precisando de você.”

Eu que sou amedrontado pela morte, me vi num beco sem saída. Mas daí me atormentou o risco de não lhe abraçar mais carnalmente; e daí me veio a lembrança de que foi você, Pilar, que me tirou na cama no hospital e me ajudou a ir para meu primeiro banho de chuveiro após o meu coma. 

Eu lhe devia isso.

E na quarta passada nos vimos, choramos, nos abraçamos, demos risadas, dormimos abraçados, com a Melzinha entre nós. Ela, sua eterna predileta, também evanescendo, respirava cansada, que nem você. 

E eu cheguei a te fazer rituais de limpeza, cheguei a te dar um banho místico, porque o meu desejo era que você vivesse bem por mais um tempo e sofresse pouco. Mas a gente não pode ter tudo. Depois a  Vovó Maria Conga veio e lhe benzeu, tirou toxinas do seu corpo. Sem (eu) saber, preparamos sua alma para que, suavemente, deixasse seu corpo descansar.

Uma vez você me pediu que se você estivesse doente e sofrendo, que eu lhe matasse e jogasse no mato para ser comida dos animais selvagens. Você sabe que eu não conseguiria fazer isso e o melhor presente que Orixá pode lhe dar foi lhe garantir o menor sofrimento possível e a evanescência.

E eu ainda lhe presenteei com uma terapia chinesa, queria lhe dar o tal milagre. 

“Mano, você tá me dando tantos presentes!” 

“Eu sei que você faria o mesmo”, respondi.

E eu cheguei a encomendar um mapa astral, porque eu queria saber que os planetas lhe ajudariam. E o astrólogo, um grande amigo, me disse, quase sussurrando, que você não demoraria muito a partir, por causa dos tais trânsitos de marte…

Talvez, como ele disse, se você trabalhar as raivas… não deu tempo. Mas quem seria você sem suas raivas? A raiva sempre foi o seu grande pilar, Pilar. 

E então os dias foram passando e você foi indo embora do seu corpo, enquanto ele dissolvia. E, já no hospital, os médicos lhe ajudaram com a morfina, para que você deixasse seu corpo de fininho, sem perceber. 

Eu falava pra quem perguntava de você: 

“Ela está evanescendo”

E numa quarta-feira de noite, Iansan chegou, pegou você em espírito pelo braço e te levou para passear com o vento. E enquanto você partia, eu falava com uma amiga sobre você, saboreando um vinho tinto. Contei algumas das suas peripécias, falei das suas teimosias, exaltei a sua garra e a sua obstinação em estar viva. 

E seu corpo evanesceu, “sem correr, bem devagar..”, caetaneando.

As filhas de Oyá evanescem e viram vento. E  você, sua alma viva, livre e selvagem, estará sempre aqui, ali, em todo lugar. 


Boa viagem, Pilar. 


(Minha amiga Andrea Pilar Marranquiel evanesceu hoje, 27 de novembro de 2024, depois de lutar alguns anos, não contra o câncer, mas pela vida)

Saturday, October 12, 2024

O CANDOMBLÉ


* Foto: @pretophotobrasil

O Candomblé é uma sofisticada forma de culto e de cuidado. Quando eu era “mais pequenino” do que ainda sou em suas ciências, ouvi um sacerdote dizer que “a umbanda era para a caridade e o candomblé era para cuidar de si mesmo”. Na época eu respeitei aquelas palavras, mas algo me dizia que se tratava de um saber parcial. Faltava porque eu sentia que faltava mesmo e faltava porque essa mesma pessoa possuía a vivência limitada dos becos que havia frequentando. 


Mesmo assim, há um pedaço do conhecimento desse sacerdote que é verdadeiro; existe sim uma dimensão individual do cuidado no Candomblé. Você pode chegar, acessar uma consulta ao jogo de búzios, você pode tomar banhos de folhas, fazer ebós e uma série de rituais propiciatórios para várias finalidades. Você pode até “invadir” um pouco mais esse território e assentar orixás, você pode até passar pelo processo de iniciação, a tal “feitura”, “raspar cabeça”, como dizemos popularmente. 


Esse mesmo sacerdote nos contava, inúmeras vezes, quantos mil reais havia pago por esse ou aquele “feitiço” que consistiam, na verdade, em ensinamentos que deveriam ter sido ensinados e aprendidos oralmente, dentro de um terreiro de Candomblé.


O Candomblé não é uma “mercearia” de prestação de serviços mágicos individuais. Essa é a ótica da branquitude que foi se apropriando desse espaço e transformando a relação com o sagrado num produto a ser comprado e vendido, cada vez mais caro e mais inacessível a quem mais seria de direito. 


Para além desse cuidado individual, o Candomblé é um lugar de e para a coletividade. Porque essa cura que o Candomblé promove é uma cura mais coletiva que individual, mais grupal do que solitária, mais generosa do que mercantil. 


Ainda assim, você poderá “desfrutar” de vários desses processos mágicos que o dinheiro puder comprar e mesmo assim você não estará “dentro” do Candomblé. Você pode passar pelo processo de iniciação e ter um lindo assentamento para chamar de seu, e fios de contas portentosos, e paramentas belísimas, e até um nome sagrado; ainda assim você não estará fazendo parte. Porque você “comprou” um processo e talvez compre até um “diploma” de “ebômi” ou de “sacerdote”, porque decorreram anos a partir da sua iniciação, mas você não frequentou a “escola”. Comprar um diploma de graduação pode te fazer o “diplomado” perante uma multidão; mas você será, para si mesmo e para Orixá, um eterno mal aprendiz.


Uma vez testemunhei a saída de uma moça do meu terreiro. Ela, de cabeça erguida, chegou aos pés de meu Babalorixá e disse: eu agradeço por tudo, mas estou indo embora. Eu admiro o que vocês fazem, mas não dou conta, não consigo. Essa moça terá sempre meu respeito. Porque ela foi capaz de assumir que não era capaz de HONRAR aquele espaço como deveria. Veja, eu disse HONRAR. 


Alguns sacerdotes falam  desse tempo de “abianato”, o tempo de ser abian, o noviço, e conhecer aquela casa, aquela família. Mas eu penso que esse abianato pode durar anos e mesmo assim ser insuficiente para que aquela pessoa tenha um real despertar sobre o significado, sobre a importância, sobre o valor de pisar nesse espaço sagrado.


Não há livro, palestra ou apostila que ensine.


Esse texto não é um artigo científico; tampouco um ensaio filosófico. Esse texto é uma escrita que brotou da minha alma ao refletir sobre os acontecimentos desses últimos dias. Há poucos dias eu realizei, nesta casa de Candomblé, o Caruru de Ibeji e toquei, junto com meu Babalorixá, o primeiro xirê, após a inauguração do terreiro. E enquanto o xirê acontecia, um filme passou em minha mente. E eu estou dizendo isso porque, apesar de “não-filosófico”, preciso dizer que sou particularmente apaixonado pelo conceito de “ser afetado” de Favret-Saada (FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être Affecté”. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8. pp. 3-9), e eu posso dizer que eu fui afetado pelo Candomblé. 


Você pode se sentir tocado numa cerimônia de Candomblé, pelo abraço de um Orixá. Mas ser tocado não significa ser afetado. Porque ser afetado significa ser transformado pela experiência e isso não necessariamente ocorrerá de forma imediata, mas por vezes em um longo processo. Eu fui afetado e meu modo de ver o mundo foi transformado pelo Candomblé.


Quando eu saí da umbanda e adentrei o Candomblé, minha rotina com as coisas espirituais se modificou, se intensificou. Uma amiga chegou a me criticar, dizendo: “Estou com raiva dessa sua nova religião, eu não consigo mais te encontrar”, simplesmente porque as pessoas não compreendem as longas horas que nos comprometemos com o culto. Muitas pessoas também não compreendem a natureza dos nossos relacionamentos com as pessoas do culto, com nossa família de santo, chamando-nos de “fanáticos”. 


Hoje, conversando com uma pessoa que está para adentrar o Candomblé, ela me disse: “É um fardo que eu não gostaria de carregar, mas é minha missão e eu tenho que assumir”. E então eu dei a minha opinião: “Sim, a religião é trabalhosa, mas não a sinto como um fardo. Eu faço parte do grupo de pessoas que pensa que é uma honra servir aos nossos deuses e deusas; é uma honra louvar Orixá”


Eu já ouvi muitos sacerdotes dizerem que as pessoas que nascem com a missão de serem sacerdotes de religião de matriz africana são as pessoas que mais teriam “karmas a pagar”. Hoje eu penso que isso é uma grande falácia racista que é repetida por muitas pessoas que transformam o culto em um tipo de escravidão contemporânea. 


Eu estou há dias escrevendo esse texto. E a cada linha me vêm outras novas lembranças de experiências vividas, e eu creio que ficaria escrevendo dias a fio e não terminaria de colocar meus pensamentos. Talvez eu escreva mais em outro momento.


Eu não desejo chegar a algum lugar com esse texto. Talvez, em seu ponto de partida, eu quisesse. Mas, ao longo dessa jornada, esse objetivo perdeu o sentido. Sobrou uma longa história, de um homem que tinha preconceito com as religiões de matriz africana e que, pouco a pouco, foi aprendendo e se transformando, a ponto de se tornar um fiel apaixonado pelas suas tradições. Xangô foi testemunha de tudo o que vivi nessa viagem para chegar até aqui e contar essas histórias para vocês.


Mas, se eu puder, a essa altura da minha vivência, ensinar algo, eu digo: HONREM o Candomblé. Honrem com suor e lágrimas esse culto que foi desenvolvido com tanta luta de muita gente que veio antes de nós. Sacerdotes, Sacerdotisas, Reis e Rainhas que, mesmo num contexto de extrema violência que foi a escravidão, conseguiram preservar um amálgama de ensinamentos que chegou até os dias de hoje. 

Saturday, May 13, 2023

IRRITA(ÇÃO)

 

Tenho irritado(-me) demais

Estou lendo Carolina e me oscilo com ela

Meu humor

Meu cansaço

Ontem acordei ou fui acordado

Pela sede

Pela fome

Pela pica(dura)

Crucificado em meu próprio leito

Bebi água e jorrei leite

São oitocentos mil assuntos

Centenas de pacientes

Trilhares de zápis

Um mar de burnôs

E eu ainda me deparo com lembranças ruins

De um tempo que passou e não

Deu tempo

De apagar as pegadas que as redes deixam.


Então

Hoje machuquei a polpa do dedão

Apertando deléty

Respirando a cada delêi

Da internéti


E agora estou sem ar

Todos querem venvanse

E eu só quero poder dormir sem ser acordado

Nada de coma, nada de morte

Apenas um merecido cochilo longo



Wednesday, February 01, 2023

Sobre Reality Shows

Eu não SIGO o tal reality show da tal emissora. Eu já assisti algumas vezes para dar uma xeretada, mas aquilo nunca me prendeu. 

Belial: “Demônio adorado pelo povo de Sidon. O inferno jamais recebeu espírito mais dissoluto, mais sórdido, mais imbuído do vício pelo próprio vício. Sua alma é hedionda” – Foto: Reprodução / Dicionário Infernal

O único período em que eu “assisti” diariamente foi quando estava na UTI. Não era um desejo, era apenas um barulho da TV que me distraía, diariamente, das 14h até a hora da madrugada que meus olhos se fechassem. Às vezes  eu tentava enxergar, sem óculos, sem poder me mexer e com a vista embaçada, o que eles falavam e faziam. Eu lembro de algumas cenas de “provas” que se configuravam para mim em cenas de tortura. 


Lembrar mesmo, eu lembro da Festa da Coca-Cola. E lembro ter chorado de sede e de desejo por esse objeto de amor, tão distante, preso numa TV pendurada no alto da parede de um quarto de UTI.


Há alguns anos, eu resolvi participar de um reality show de culinária. Estava eu, empolgado com minha quituteria, pensando em abrir restaurante e vendo minhas receitas sendo reproduzidas por um montão de gente. Eu achei que ia ser divertido passar quinze dias confinado num hotel para a gravação do tal programa. 


Eu fui ingênuo e me lasquei. 


Um colega participante, sujeito de coração bom, disse uma vez entre nós: eles não provaram a nossa comida para saber que cozinhamos bem. O que eles querem aqui é o conflito. 


E essa é a verdade.


Seja qual for o tema do reality, culinária, gente pelada, atores falidos trancafiados, o objetivo é sempre o mesmo: ganhar audiência através da incitação ao sadismo, ao conflito, a polarizações. Não há poesia, não há arte, não há verdade num  reality: só há um sádico modo de conduzir a edição do que foi dito, visto, feito, seja percebido de uma forma que gere guerra, rivalidade, divisão.  Não há nada de realidade num reality. 


A única realidade é a trágica consequência na vida de muitos e um ou dois eleitos para cada temporada. 


Eu fiquei míseros dois dias trancafiado e ganhei uma enxaqueca que perdurou mais de 24 horas, insônia e, mesmo quinze dias após a minha saída, tive sintomas de estresse pós-traumático e pesadelos com os jurados me humilhando enquanto eu usava o avental sujo que ganhei e a panela wok vagabunda da China com o nome do programa. E fiquei mais de um mês sem cozinhar, chegando a pensar que não cozinhava bem. Tenho dois amigos excelentes cozinheiros que passaram pela mesma experiência de reality e ficaram meses em crise com a sua profissão, por se acharem incapazes. 


Algum tempo depois, fui convidado para participar de um reality show de uma outra emissora. 


Eu disse para a produtora: “Minha temporada de participação em reality shows está encerrada para esta encarnação.”


E ela: “E você tem alguém pra indicar?”


E eu: “Nem meu pior inimigo”


E por que é que eu resolvi escrever sobre isso hoje? Não é de hoje que inevitavelmente vejo comentários das pessoas sobre o tal reality. Torcidas, comentários, memes e, principalmente violência. Violência nos julgamentos, nos comentários, nos ditos cancelamentos, intolerância, preconceito. Quando assistimos um filme, uma peça de teatro ou outra forma de expressão artística, há um personagem representado por um ator ou atriz que, terminada sua obra, sua filmagem, seu espetáculo, “deixa de ser” o personagem e continua sua vida. É claro que, dependendo da intensidade do personagem, o ator ou atriz pode vivenciar abalos em sua homeostase. Há também, em alguns momentos, pessoas que confundem o personagem com o ator ou atriz e faz elogios ou críticas ao encontro-lo (a) na rua. Mas são momentos, são passageiros. 


Eu não me aventurarei em conceitos profundos sobre o que é arte, mas, para mim, não há nada de arte ou artístico num reality show, mesmo que seja protagonizado por artistas. Há, em minha  opinião, pessoas que até podem trabalhar como artistas, mas são colocadas em caixotes de confinamentos e, como marionetes editáveis, são-lhe impingidos personagens, exaltando suas qualidades ou vulnerabilidades, onde até suas falas são editadas. 


Não, eu não estou defendendo ninguém. Estou apenas dizendo que as falas daquelas pessoas confinadas são distorcidas para a construção de personagens que atendam ao sadismo e à violência de seus espectadores. Não só deles, mas também de outros tipos de espectadores que possam se identificar com um ou outro personagem. Porque para cada sádico existe, pelo menos, um masoquista. MAs é a violência - violentar e ser violentado, agredir, ser agredido, se vingar e todos esses sentimentos que são despertados no espectador, que movimentam a bilionária máquina dos reality shows. 


Assista quem quiser assistir. Encare como quiser encarar. 

Tuesday, November 08, 2022

“ESTAMOS DE LADOS OPOSTOS”

 


(Frase de minha tia, de quase oitenta anos, há alguns dias, ao telefone, após a eleição democrática de Luís Inácio Lula da Silva.)


Eu nasci em uma família de classe média da zona norte de São Paulo. Meu avô se aposentou como um executivo de uma multinacional, mas não enriqueceu, porque preferiu fazer muitos filhos em duas famílias paralelas. Opa. Minto. Três. Tem essa terceira família que foi vista, mas jamais revelada. 


Ele  foi acusado de um roubo quando era operário de uma fábrica e ficou preso por 2 anos e foi torturado na época do Estado Novo. Ele não falava sobre isso, mas tinha ódio de polícia. 


Ele faleceu em 1999 de um câncer de pulmão. Eu não me lembro de suas inclinações políticas, não consigo ouvir um nome de algum político saindo de sua boca. Então eu não sei imaginar o que ele pensaria desse momento político. Na minha ilusão de garoto novo que amava seu avô como um pai, eu prefiro acreditar que ele, como um homem ponderado e justo que era, não destilaria ódio e sua sensatez o faria votar em Lula, pensando que esse seria o melhor caminho para assegurar um Estado Democrático de Direito. Não um qualquer, mas o nosso. Brasil. 


Meu avô me deu carinho, me amou como um filho. Quando minha avó faleceu, dormíamos eu e ele no mesmo quarto, cada um em sua cama, separadas por um móvel de cabeceira. Todas as noites rezávamos e ele se emocionava quando lembrava da minha avó e às vezes chorava. Ele não era um homem de demonstrar grandes afetos, mas a sua presença, seu cuidado, seus ensinamentos, foram fundamentais para que eu sobrevivesse. Ele me ensinou a fazer barba, engraxar sapatos, consertar coisas, furar paredes. Ele era um homem justo que colocava pessoas em situação de rua para sentar à sua mesa para comer. 


Sua inteligência o levou a se tornar um homem de negócios, o tal do “bem sucedido”, sempre perfumado e bem vestido, Rolex no pulso, carro novo, motorista particular, inúmeras viagens para a Europa. Mas, de certo modo, esse avô estava só. Ele era diferente. Talvez tenha sido por isso que, quando ele se aposentou, nunca mais quis fazer nada de trabalho, doou todos os ternos, vendeu o Rolex e foi viver com sua “outra” família, numa casinha simples no subúrbio. 


Eu comecei um texto pensando em discorrer sobre meus parentes e sobre a falta de visão política deles. Mas daí eu percebi que não há nada que eu possa fazer a esse respeito. E então veio à mente a história do meu avô, tentando refletir sobre o que “deu errado” a partir do meu avô até seus filhos e netos ou que talvez seja tudo uma ilusão do meu coração de menino e esse avô idealizado talvez nunca tenha existido de fato. Eu acho que jamais saberei. 


Então eu me pego pensando sobre mim mesmo e me pergunto: porque não deu errado? Por que eu não segui essa trajetória comum, essa via “fácil” da visão turva? Em que momento da linha da vida eu passei a rejeitar esse valores conservadores, preconceituosos, por quais motivos eu não me tornei um bolsominion?


Eu costuma dizer, mesmo sem entender: “Eu caí no funil errado.” Se isso puder ser verdade, eu acredito.


Mas, voltando aos fatos, eu nasci e cresci transgressivamente. Eu nasci de uma mãe que era filha mais nova e mimada que engravidou aos 19 anos de um homem pobre que foi obrigado a casar para “honrar” essa moça. Eu passei a minha infância sendo ofendido, agredido e ridicularizado por tios homens machistas. Bastardo, gordo, viadinho. Sim, um garoto gordo e um pouco “criança-viada” que odiava ser parecido com o pai que fazia questão em dizer que não era seu pai, mesmo que fossem um a cara do outro. 


Eu passei a vida toda sendo o menino bonzinho, intelectual, inteligente, prestativo, educado e subserviente pelo propósito único de me sentir amado. Ou menos banido. Mas a sensação de desencaixe era permanente. Por um tempo eu achei que a homossexualidade era o suficiente para explicar essa sensação de desencaixe. Havia sempre uma sensação de estar no lugar errado, de querer fugir, ir embora. Desde a infância eu criei e sustentei a fantasia de ser um “outro Marcelo”, rico, capaz, poderoso e que ajudava as pessoas com seu dinheiro quase infinito. Apenas uma fantasia. 


O diploma de médico e todos os outros títulos que vieram em sequência, associado ao quanto somos moldados a desejar a vida de riqueza e luxo como condição intrínseca ao “ser médico”, me abasteceram por anos nesse universo de incompletude. Por anos eu representei me sentir vencedor pelo aspecto financeiro, social e profissional, mas no fundo, eu me sentia vazio e só. Mesmo em momentos de ápice do glamour, nas viagens, nos restaurantes caros., havia um momento em que tudo isso não valia nada e sobrava apenas uma enorme angústia.


Recentemente uma pessoa que conheci me disse algo assim:  “quando você experimenta colocar molho na carne, você nunca mais vai querer carne sem molho e cada vez mais vai querer sofisticar o molho”. Ela disse isso como algo bom, que a busca por “coisas melhores” era infinita. Eu acho isso horrível. Minha alma justiceira tava doida para sair fazendo críticas a esse modelo outro, mas eu voltei para mim mesmo e olhei para como eu me comportava há 10 anos  e percebi que eu já busquei molhos melhores. O resultado disso é sempre a insatisfação ou uma satisfação fulgaz. 


O encontro e a vivência num terreiro de Candomblé me trouxeram essa transformação. Especificamente o momento da iniciação, deitado numa esteira, num quarto sem janela, eu-com-eu-mesmo, eu constatei que a gente precisava de realmente muito pouco para existir com inteireza. 


E como Exu sempre tem razão, ele diz nesse provérbio yorubá: “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje”. Anos depois, meu Babalorixá diz, ao saudar Ori (minha cabeça): Xangô diz que irá te completar. Não só isso, ele vai te transbordar. Talvez você não compreenda isso hoje, mas um dia você irá entender.” Eu achei lindo o que ele disse e compreendi. E compreendi que Xangô me completa e me transborda a cada momento, a cada novo ritual, a cada dia que ele toma meu corpo para contar suas histórias míticas. E ele me transborda “trocando” os conceitos de um velho pensar, sobretudo o que não é meu de fato, isso vai deixando de ficar comigo. E ele também me transborda também e faz sobrar força, energia, vitalidade para quem estiver por perto. 


Eu passei esse textão para dizer que eu votei em Lula para presidente. 

E que eu votaria de novo. E de novo. E de novo. 

Por uma simples razão: eu sou filho do Deus da Justiça. 

Monday, June 25, 2018

O EREMITA E SUAS EPIFANIAS



O Caboclo Sete Flechas foi a primeira entidade da Umbanda com quem me consultei. Há quase vinte anos, naquela casa estranha da Dona Jamile, a primeira mãe-de-santo que conheci. Com suas roupas brancas meio esfarrapadas, feitas com rendas sintéticas, usando aquele turbante estranho, “meio” árabe, ela dava passagem ao Caboclo Sete Flechas, com sua linguagem torta, seu palavreado que não era indígena, não era africano, nem português. Era, talvez, um tipo de “umbandês” que muitas vezes necessita de intérpretes. 

“Quando ele vem, lá do Oriente, ele vem com ordens de Oxalá, sua missão é muito nobre, espalhar a caridade e a seus filhos ajudar. Eu saravo Papai Xangô, Kaô, eu saravo Papai Oxalá, eu saravo Seu Sete Flechas ele é o nosso rei e o chefe desse kazuá”. 

Assim ele chegou naquela noite de sexta-feira. A filha de Dona Jamile fez a preleção do evangelho (que era a bíblia, na verdade) e, de repente, Sete Flechas estalava os dedos, para que ela parasse de ler. Lá estava a lição da noite, a sabedoria revelada através da bíblia, por um caboclo da Umbanda que usava turbante. 

E lá aprendi, pela primeira vez, a saudar uma entidade, batendo os punhos com os dele. Sete Flechas me disse que eu havia sido um eremita em várias vidas e que, nessas várias, eu largava a missão de curador e saía andando pelo mundo, procurando algo a mais, algo diferente. Até hoje não sei como isso acontece, mas aconteceu aquele dia: o caboclo leu a minha alma. E-r-e-m-i-ta. Era assim que eu me sentia. Secretamente, era assim que eu me denominava. Era desse modo que eu me via. Sem parada. Sem casa. Sem rumo. E ele disse que, por ter largado tantas vezes a missão de curador que eu passava por tantas dificuldades naquele momento, para terminar meus estudos. Mesmo que fosse metáfora ou fantasia, essa explicação serviu como um bálsamo para aquele peso que eu sentia. Ele me ofereceu uma explicação para a minha infelicidade. 

Sete Flechas terminava sempre a consulta perguntando: “Que quere yo, fio meu?”, que queria dizer “O que mais você quer de mim, meu filho?” e eu sempre respondia que não queria mais nada, e só queria agradecer. E ele partiu, dizendo que ia me ajudar. De fato, me ajudou muito. Hoje estou aqui, mais de vinte anos depois, vivo, formado, mestre, doutor, professor, muitas páginas de currículo, muitos diplomas. Mais que isso: sinto-me cada dia mais feliz e mais realizado. Mas isso não significa que não me sinta insatisfeito. Parece que essa insatisfação não acaba nunca. Não pensem que a minha insatisfação é de ganância, cobiça, esse afã tão comum entre colegas de profissão, essa avidez por acumular riquezas. Nada disso. É minha alma que permanece inquieta mesmo. 

Não é à toa que, ao concluir o mestrado, queria colocar na tese uma citação do Nietsche que não fosse pessimista. E eu encontrei: 

“Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, para atravessar o rio da vida - ninguém, exceto tu, só tu. Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar.Onde leva? Não perguntes, segue-o!”

Também ao concluir o texto do meu doutorado, uma música da aula de religião do meu tempo de ginásio, chamada “Caminheiro” não saía da minha cabeça: 

“Perdido, confuso, vazio, sozinho na estrada, tentando encontrar um caminho que seja o meu, não importa se é duro, terei que buscar. Caminheiro, você sabe, não existe caminho. Passo a passo, pouco a pouco e o caminho se faz.” 

Sou eremita mesmo. Há uma solidão no meu caminhar, há uma necessidade de continuar sempre andando, que jamais se esgota. A citação do filósofo, a música da aula de religião, as palavras do caboclo. Tudo se traduz numa necessidade de caminhar em busca de algo que eu não sei – ou não sabia - exatamente o que é. Até mesmo outras frases e canções que falem desse caminhar incessante me prendem, me capturam. Sou pego pelo arquétipo do eremita, do andarilho solitário. 

I still haven’t found what I’m looking for. Eu ainda não encontrei o que estou procurando. Cantam Cher ou Bono para mim. 

Hoje, durante uma conversa com um amigo, essas memórias vieram à tona. Conversando sobre o Candomblé, sobre essa minha caminhada pela espiritualidade, ele “acordou” a minha memória. Ele chamou a minha atenção para o fato de que as minhas necessidades de busca, de curiosidade, de ímpetos, são lampejos, folguedos e explosões da minha memória ancestral. Depois de nossa conversa, fiz uma reflexão sobre essa longa caminhada nessa vida terrena. Brinquei, meio que falando sério, que devo ter saído da África muitas encarnações atrás, talvez arrancado, talvez fugido. Andei por tantos caminhos, embranqueci, diluí meu sangue negro por diversas vidas e trilhas. E de repente, eu me deparo com as religiões afro-brasileiras. Eu me lembro como se fosse hoje o primeiro dia que ouvi o som do atabaque no terreiro de Dona Jamile. Sem nenhum medo e com uma sensação de familiaridade inexplicável. Naquele momento eu pude entender tudo, ou quase tudo. Lembro de dizer para mim mesmo: “é aqui que eu quero ficar”. Esse “aqui” que não era aquele lugar, mas aquele lugar dentro de mim onde o som dos atabaques ecoava a minha própria alma. 

Agora, emocionado enquanto transformo esses pensamentos em frases, sou capaz de enxergar, de me sentir acordado, como Paulo dizendo aos Coríntios: “estou acordado e todos dormem”. Estou acordado, estou vivo, estou são. É no Candomblé que me reconecto a minha ancestralidade, é pisando no chão de um terreiro, descalço, ao som dos atabaques, que ativo essa memória e me sinto vivo, eterno, imortal. Eterno e imortal como alma. Eterno e imortal como as memórias de todas as vidas vividas, minhas e de meus ancestrais. É “virado” em meu Orixá, que refaço os caminhos dessa ancestralidade, que reavivo cada sensação já vivida, guardada nesse pequeno cofre de memórias eternas. 

Eu ainda não sei se eu me encontrei. Eu nem sei se esse encontro é definitivo ou se devo continuar andando pelo mundo, encontrando coisas e pessoas que reativam essa memória, que acordam minha pele, meu corpo, minhas células para a eternidade de uma vida sem vim, uma vida em espírito. 

Hoje, numa madrugada de segunda para terça, na transição dos domínios de Exu e de Ogun, orixás que regulam os nossos caminhos, das encruzilhadas às estradas, escrevo, desabafo, me tranquilizo ao poder compreender que tudo o que sinto e vivo é apenas caminho, caminhar, estrada, trilha. Todo esse barulho da minha alma, da minha cabeça e do meu coração é apenas o barulho dos meus passos. Não sei para onde vou, não sei exatamente como caminharei. Tenho apenas a certeza de que devo continuar, porque Xangô e Oxum me levam, porque eles sabem o que eu ainda não sei, porque não foi revelado. 

Friday, June 15, 2018

ESPELHOS, PARA QUE TÊ-LOS?




Nesses últimos dias, eu tenho pensado muito em espelhos. Cenas do passado, histórias sobre espelhos, mitos, preceitos religiosos. Até zapeando pelas fotos arquivadas em meu telefone celular, fico reparando no tanto de fotos que tenho fazendo poses, eróticas ou não, ao espelho. 
Esse deleite pelo espelho, diga-se, pela minha imagem nele refletida, tem sua razão de ser. Houve um tempo, num passado bem remoto, que eu fugia dele. Eu fugia de olhar-me ao espelho porque não gostava do que via. Primeiro por não gostar de mim, por me achar feio, por sentir-me uma cópia do meu genitor-rejeitador. Sentia raiva das pessoas que me chamavam pelo diminutivo de seu nome e sentia raiva de mim mesmo por ser uma cópia rejeitada dele. Também não me era possível gostar daquela imagem que colegas de escola e familiares caçoavam por ser gordo, por não saber andar descalço no barro ou no asfalto, por ter tetas grandes, por não ter coragem de tirar a camiseta na praia, do futebol forçado, suando de calor e dizendo que estava tudo bem. Talvez por último, por sentir medo de olhar para o espelho e enxergar-me gay. 
Da adolescência e dos espelhos, guardo arriscadas e anedóticas incursões pela sexualidade.
Lá pelos onze anos de idade, grandão que eu era, já estava apto a ficar sozinho em casa. Adorava quando minha mãe saía e podia bater sossegado as minhas punhetas, testando sensações diversas, fosse colocando pasta de dente no pinto ou sugando o pau punheteiro recém descoberto com o sugador de leite abandonado no armário do banheiro. Adorava observar como o pênis se deformava naquela bomba de vidro e nela acabava gozando, lambuzando toda aquela bomba. É engraçado como a “viadagem” mora dentro da gente, mesmo antes de sabermos que ela nos habita: anos depois, visitando sex shops nos arredores gays de Nova Iorque, me deparo com aquelas bombas de sucção peniana. 
Outras vezes me deliciava colocando roupas da minha mãe, como um maiô verde bandeira ou uma saída de banho amarela. Passava blush e batom, me divertia escondendo as bolas e pau por entre as pernas, subia no bidê e ficava dançando, diante do espelho, como uma Chacrete. Um dia, no auge da minha performance, a campainha toca. Quase despenco do bidê, saio correndo a esconder aquelas roupas e a arrancar as maquiagens. Abro a porta para minha tia e meus primos e, defensivamente, pela paranoia de ser flagrado ainda maquiado, digo que brincava de índio. Nunca soube se perceberam ou se acreditaram. 
Véspera de Santo Antonio na mesma época. Preparávamos quitutes para a festa junina na cozinha do sobrado. Era uma época que eu era super afeito aos livros de simpatias, e resolvi seguir uma delas. Perto da meia-noite, subo correndo ao quarto da minha irmã, que tinha um espelho grande na porta do armário. Quarto escuro, vela na mão e de frente para o espelho: assim era a simpatia para saber com quem iria me casar. De repente, tudo escurece a minha volta e surge o contorno de uma pessoa no espelho. Saio correndo e chego à cozinha pálido, assustado. Anos depois, meu primeiro namorado suspeita, quando lhe conto essa história, que o que me assustou foi ver uma silhueta masculina naquele espelho. E até que faz sentido. 
Quando nos iniciamos no Candomblé, somos proibidos de olhar ao espelho por um longo período. Alguns anos se passaram e sou um pouco mais capaz de refletir sobre alguns interditos existentes na religião e penso que essa questão do espelho parece muito mais um pensamento colonizado, “emprestado” da magia e da feitiçaria medieval europeia do que realmente um preceito trazido da África. Até porque não existiam espelhos na África. Enquanto escrevia, fiquei pensando sobre isso e cheguei a conversar com um “mais velho” do Candomblé, que concordou com minha opinião. Não existiam espelhos, mas o Abebê que as senhoras yabás empunham em suas maravilhosas danças, era feito de metal polido, que refletia imagens. 
De todo modo, o interdito do espelho permanece ainda em muitas casas de Candomblé. Algumas pessoas me disseram que isso se deve ao fato de que os espelhos são portais místicos que podem atrair energias ruins para aquele iniciado que está muito sensível. Mas eu penso que faz mais sentido pensar que, nesse período de resguardo estamos passando, por um luto de nós mesmos, da pessoa que éramos antes de nascermos para o orixá. Olhar para o espelho pode assustar, tanto por esse antigo ser que está indo embora quanto pelo novo que ainda desconhecemos. 
Eu me lembro que, durante o período em que estava recolhido para a iniciação, da sensação de estranheza que eu tinha em não ver nunca o meu rosto. Ficava imaginando como estariam minhas feições, minha cabeça raspada, eu com a cara lisa após tanto tempo usando barba. Certa noite me assustei ao deparar com um reflexo deformado de mim mesmo numa face metálica lisa do adereço de um orixá. E lembro quando me olhei ao espelho pela primeira vez após esse período. Eu tinha a mesma cara de antes, mas me enxergava modificado. Modificado de um jeito tal que sentia que era a primeira vez que me sentia inteiro. Eu uno, com meu orixá, com minha devoção, liso, cara limpa, sem pelos no corpo, roupas simples, dormindo numa esteira, num chão frio. Em meu pequeno diário de “bordo”, deixei essa pergunta que pairava em minha mente: “Quem serei eu após essa feitura?”
A imagem do espelho me fez pensar também na música “Índios”, do Legião Urbana: “nos deram espelhos, vivemos num mundo doente”. E fiquei pensando que, se não existiam espelhos na África e se os espelhos foram dados às orixás como símbolos da vaidade feminina, mesmo que possuam a conotação símbólica de olharmos para nós mesmos, será que precisamos mesmo deles? Sim, precisamos. Seja ele feito de lâminas de plástico dos supermercados populares, do metal polido das yabás, do reflexo produzido nas águas de mares e rios ou do cristal europeu mais caro e elegante, o espelho vai conter sempre essa dualidade, a possibilidade de enxergar-se e a possibilidade admirar-se, exageradamente ou não. 
Narciso acha feio o que não é espelho, disse Caetano. Narciso, extasiado com a própria beleza, mergulha nas profundezas do rio em busca de sua própria imagem e se afoga. A narcísica selfie, o espelho contemporâneo, aprisiona a quase todos. Fazer uma selfie, produzir-se em roupas e locais para mostrar-se a si e para si mesmo, mas também aos outros o quanto se é lindo e admirável, um espelho que aprisiona almas. 
Devo confessar que eu me perdi nesse labirinto de imagens que comecei a trilhar. Escrevendo, pensando, refletindo sobre o espelho, me distanciei de uma ideia inicial da qual nem me lembro mais, mas que foi o ponto de partida para traçar essas linhas. Talvez seja para poder lembrar sempre que os espelhos não são fidedignos e podem ser traiçoeiros. Espelhos de lojas, espelhos de cabeleireiros, são feitos deformados para tornarem ou fazerem com que as pessoas se sintam mais bonitas. Espelhos são usados em ambientes públicos e privados para criar a ilusão de ambientes maiores. Espelhos em motéis podem esconder câmeras de segurança e pode ter alguém lá, assistindo a sua performance erótica. 
Verdade ou vaidade? Nunca saberemos.