O SAGRADO EM MIM
Eu sempre senti necessidade de buscar e vivenciar as coisas espirituais. Na infância, após a passagem de minha avó Izolina, eu me lembro de ficar tempos enormes fitando aquela enorme estrela no céu, imaginando que poderes infinitos vinham de lá e que eu era abastecido de suas energias. Era lá, naquela estrela distante, que morava um tipo de Deus que via tudo, sabia de tudo e atendia nossos pedidos. Em meu coração de menino saudoso daquela avó recém partida, sentia que eu a encontrava lá.
Meu avô Armando, enquanto morou comigo, possuía o hábito de ler o evangelho e rezar todas as noites, com a foto de minha avó ao lado de seus livros. Eu rezava com ele e me sentia extremamente seguro e protegido ao lado dele. Era como se ele próprio, com sua barba branca e seu jeito paciente, fosse meu anjo, meu deus.
Mesmo minha mãe, com seu equivocado catolicismo recheado de hipocrisias e incoerências, tentou, devo reconhecer, me aproximar de Deus. Comprava os livrinhos católicos com as orações para a noite, me levava na missa aos domingos e quase conseguiu me conduzir para a tal da crisma, mas eu fugi a tempo de cometer tal desperdício. Da fé católica eu preservo o amor ao Frei Orestes que me batizou e uma enorme admiração pelos monges beneditinos. Ainda frequento igrejas e as vejo como um templo sagrado, bastante propício a rezar quando necessário. Na minha conexão com o Candomblé, aprendi a conhecer e a admirar os segredos das tradições africanas escondidos nas igrejas, sobretudo na Bahia.
Minha tia Lilian, que também é minha madrinha, soube realmente exercer a função que é delegada a madrinhas e padrinhos: ela cuidou de mim, em vários aspectos, mas principalmente da minha espiritualidade. Ela, em silêncio e discretamente, nutriu em mim o gosto pelas coisas espirituais e por muitos anos me ensinou e me deu acesso a diversos ensinamentos, me presenteando com livros e fitas cassete de assuntos esotéricos. A cada tarô que minha mãe obrigava a me desfazer, tia Lilian comprava um novo para mim.
Num dado momento do meu processo de iniciação, pude acessar uma memória ancestral e me reconectar ao meu bisavô Luís e verificar que meu elo de ligação com o Candomblé e com as raízes africanas vinha pelas suas mãos espirituais. Era curioso como minha mãe se referia a ele como “macumbeiro” e “uma pessoa má”, alegando que ele teria feito magia para que meus avós não se casassem.
Quando meu avô Armando faleceu, me afastei de sua esposa, seus filhos e netos. Anos mais tarde, pude refletir o quanto ela gostava de mim, o quanto me acolheu como um verdadeiro neto e o quanto essas pessoas fizeram parte da minha vida de uma forma boa, afetiva. Resolvi encontra-los e fui recebido tão afetuosamente que me arrependi por ter me distanciado um dia. Mas a surpresa maior foi perceber que muitos deles possuíam ligações com os cultos afro-brasileiros e isso me trouxe uma sensação de pertença muito maior do que eu possuía com outras pessoas da minha família.
Ser gay e “macumbeiro” sempre pareceram coisas estranhas, caminhos desviantes de uma rota familiar. Por um momento pareciam “escolhas” para me diferenciar dessa origem familiar com a qual eu não me identificava. Mas a coisa é bem mais profunda. Porque do mesmo modo que ser gay não é uma escolha - porque a escolha não consiste em “ser”, mas assumir-se ou não, viver desejos e experiências em consonância com a sua natureza ou não - vejo da mesma forma a presença do Candomblé em minha vida: eu não escolhi e nem fui escolhido, porque esse ser escolhido também deixa esse rastro colonizado de ser “eleito”, à moda tão atual dos cristãos. Tratam-se de encontros. Encontros com a nossa verdadeira natureza e destino.
Após a minha iniciação no Candomblé, meus pensamentos se voltaram muito para o conhecimento da minha ancestralidade e essa sensação de “outsider” se dissipou. Cada pegada “afro” que encontro pelo caminho vai constituindo um mapa da minha espiritualidade, da minha conexão com o meu passado primordial e vai edificando células de completude da minha alma. Eu queria muito poder encontrar, no passo dessas pegadas, o ancestral negro que foi deixando essa herança espiritual através de gerações, chegando até mim e que posteriormente será continuada nos que estão chegando depois de mim. Minha mãe de santo, em nosso primeiro encontro para o jogo de búzios, disse: “Tem um negão aí dentro”, e eu sabia que era verdade. Sim, é verdade que existe esse negão, meu pai, meu rei Xangô que me habita e se expande a tal ponto que me transformo nele. Eu viro no “santo”. Eu viro no orixá. Não só no transe, mas na vida, eu viro esse orixá que mora dentro de mim. Ele contém, abarca, mantém a força, a potência dessa ancestralidade. Ele é um DNA vivo. E eu não sou apenas seu instrumento. Eu sou a continuidade, o continuum, a perpetuação dessa corrente de ancestralidade, desse fio interminável de seres e energias.
Essa grandiosa pertença, como já disse em algum texto anterior, não me torna melhor que ninguém, mais evoluído, mais sábio para o outro. Ela me faz ter força para seguir o meu caminho e faz com que eu me sinta melhor, comigo mesmo, mais inteiro, mais completo. Eu acumulo conhecimentos, como os seixos rolados que catava em rios e ruas de terra na infância, como as conchas do mar que encontrei na areia. Talvez eu desenvolva e acumule sabedoria através desses conhecimentos e experiências. Talvez cada dia que passe eu ame mais a vida e me sinta mais fortalecido para driblar os obstáculos. Talvez todo esse caminhar possa servir para ajudar algumas pessoas, ensinando passos e descaminhos por onde eu já tenha andado. Digo “talvez” porque é talvez mesmo. Porque tenho poucas certezas nessa vida. Cada vez menos.
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