EXTRAORDINÁRIO
Nesse último domingo assisti o filme “Extraordinário” (Wonder ,2017) no cinema. Confesso que nem tinha ouvido falar dele, de tão ocupado que andava. Só soube de sua existência ontem mesmo, quando meu marido pediu que eu pesquisasse sobre o que tratava o filme. Vi o trailler e encarei-o como daqueles “bonitinhos” e resolvemos assistir. O filme é lindo. Mais do que lindo; ele é capaz de fazer brotar emoções e lágrimas. Eu chorei muito durante o filme, mas vi outras pessoas chorando também, então não estava tão fora da curva de “emocionabilidade”. O mais interessante é que, embora o menino Auggie seja o principal personagem da trama, o filme não é só sobre ele. É um filme sobre pessoas. Pessoas todas envolvidas na trama com seus diferentes pontos de vista e com suas dores.
É claro que, enquanto assistia e chorava, eu conseguia
refletir sobre cada um dos pontos que me faziam despertar tanta emoção. Embora
eu não tenha nenhuma deformação física, eu me identifiquei com Auggie sofrendo
bullying por ser “diferente”, leia-se gordo, na minha infância. Claro, hoje eu
continuo gordo, isso não me afeta mais, mas me afetou muito e por muito tempo.
Sei que eu teria sofrido menos agressões
e torturas se não fosse um gordo tão frágil e inseguro, cheio de medos e desamparos . Lembro do pavor de passar no
corredor polonês no recreio ou na entrada da escola; lembro do menino que
tirava sarro do meu cabelão armado, o que me fez odiar tanto aquele cabelo;
lembro desse mesmo menino chutando as minhas costas sem nenhum motivo, ou
arremessando a mochila de longe, para acertar minha cabeça. Lembro bem que eu
sentia medo e jamais conseguia responder ou reclamar. Tantas outras histórias
que poderia contar aqui sobre como a escola era um lugar de terror para mim.
Ah, professores também fazem bullying. Lembro
especificamente de três delas: Líria, do Colégio SAA, da primeira série, que
deu um berro, com os olhos esbugalhados de ódio porque meu brinquedo havia
quebrado e um colega cortou o dedo nele. Ela gritava e destilava um descontrole
emocional que me causou vários pesadelos.
A segunda, que não lembro o nome, foi na quarta série do Colégio Quarup:
fazia questão de, na frente de todos, fazer perguntas que expunham meus medos e
fragilidades e sempre terminava com comentários jocosos que faziam a classe
toda rir de mim. A terceira, no Colégio SAA novamente, era Regina, uma
professora de Ciências. Uma torturadora, que decidia quando um aluno poderia ou
não ir ao banheiro e me recordo que caguei nas calças uma vez porque ela
resolveu não deixar que eu fosse no banheiro naquele momento. Dessa eu me vinguei. Numa atividade cultural da escola, fiz um
cartaz com um cabelo de vassoura desfiada imitando o cabelo espigado dela, a
cara dela com uma máscara de papel higiênico, aquele nariz enorme com uma
verruga na ponta e aquela cara amarela de anemia. Não precisou nenhuma
informação: escrevi abaixo daquela cara vil a frase “Você me conhece?”, igual
ao programa do Bozo. A professora da atividade e toda a classe caíram na
gargalhada e ela, a Regina do Mal, me olhava com ódio depois disso, mas nada
pode fazer.
Via, a irmã de Auggie, tocou minha alma por outros motivos.
A sua solidão naquela família, a falta da avó que havia falecido e era sua
melhor amiga e o desejo de aniversário,
apagando as velas de 4 anos, pedindo um irmão. Inevitável eu lembrar
que, por volta dessa idade, talvez um pouco mais velho, eu pedia a Deus que me
desse uma irmãzinha. E que quando ela veio, era como se tivesse chegado um anjo
para alegrar a minha vida e me proteger e ser uma razão para pensar que a vida
não era tão horrível. Que era possível sobreviver sem a presença da minha avó
Izolina, que havia me deixado, vítima de
um câncer. Que era possível suportar a sensação de abandono do meu avô Armando,
que havia saído de casa para morar com sua outra família, limitando-se a
visitas mensais.
Com essa esperança, era
mais fácil suportar aquela violência toda na escola, porque eu voltava para
casa, para ver a minha irmã, que me trazia tanta luz. Antes mesmo do filme eu
já andava reflexivo, porque ainda não estou recuperado das feridas recentes que
esse assunto me trouxe. Nesse aspecto, eu ainda estou dolorido, ferido, sem
condições de caminhar.
Via, que num momento
do filme se diz “filha única” sem ser, explicita a dor da sua alma por
sentir-se só. Já faz um tempo que me chamo “órfão de pais vivos”, porque, por
um lado, tive um pai ausente na maioria dos momentos da minha vida e, quando estava
presente, era sempre de forma violenta, agressiva, desagradável. Aprendi a
desejar a ausência dele. Aprendi a agradecer quando ele não estava em casa,
quando ele não viajava conosco, quando ele passava as madrugadas fora. Nojo,
repulsa e medo. Nada mais. Por outro lado, fui me orfanizando da minha mãe ao longo do tempo.
Demorei um tempo para perceber e aceitar que sua presença era invasiva e tóxica,
atrasada e preconceituosa. Hoje, desejo sua presença cada vez menos, sem sentir
falta ou culpa por estar longe. Fique ela, com sua igreja, seu Deus vingador ,
seus fiéis irmãos hipócritas amaldiçoando, em nome de Jesus, pessoas que não
caibam em suas caixas comportamentais.
Mais recentemente, eu me orfanizei de meus irmãos. Eu tenho
que confessar que foi uma escolha. Doída. Sofrida. Mas uma escolha como
consequência de abandonos e decepções. Às vezes eu me pego sentindo saudades.
Outras vezes me apanho sentindo dores. Dores dos machucados de relações
poluídas, dores de decepções vividas, dores de expectativas frustradas. Esse
filme trouxe isso mais à tona, mas há
algumas semanas já estava sentindo essas coisas. Sobretudo porque, já
experimentava, antes mesmo de me recolher para minhas obrigações no Candomblé,
as invasões desses sentimentos. Porque esse período de isolamento é propício, é
um convite a essas reflexões sobre nossa vida.
Durante esse recolhimento, Oxum
e Iemanjá estiveram mais presentes, me
colocando frente aos meus espelhos d´alma e então foi impossível não
espelhar tristezas e mágoas guardadas. Eu pude refletir sobre meus excessos
nessas relações: meu excesso de expectativas, meu excesso de generosidade,
querendo dar o que ninguém nem pediu, minha frustração por eles não serem o que
desejava para eles. Um irmão mais velho, que recebeu precocemente atribuições
de pai e cuidador, querendo o tempo todo dizer o que achava melhor que eles
fizessem, sem enxergar que os caminhos deles também foram escolhas deles. Por
outro lado, pude refletir sobre o quando esperava deles que eles fossem por mim
como eu era por eles; que eles estivessem nas minhas datas especiais como eu
estava nas deles e que, na verdade, eles nunca quiseram estar. Embora eu tenha
impressões sobre os motivos pelos quais eles nunca estiveram, não seria justo
eu julgar os seus não-quereres. É suficiente perceber que eles não estiveram e
que eu me magooei com isso.
Eu não sei dizer se esse distanciamento será para sempre. Eu
saberei voltar atrás se perceber que sou
capaz de conviver com menos dores, ainda que com cicatrizes. Por hora, não sou
capaz de olhar para essas situações e fingir que não estou machucado. Seria um
não eu, fingindo sentir ou fingindo não
sentir. Eu não preciso mais disso em minha vida.
Recentemente, uma irmã por parte de pai, agora adolescente,
me procurou nas redes sociais e quis falar comigo, porque queria me conhecer.
Uma menina linda e inteligente, com traços familiares. Eu sabia – ou desejava –
que isso aconteceria um dia. E aconteceu. Mesmo sabendo quem era, esperei que
ela me chamasse, se apresentasse e
dissesse o que queria: me conhecer, se aproximar, simplesmente por sermos
irmãos. Eu ouvi e educadamente respondi a ela, que, embora ela não tivesse
culpa disso, eu respeitava o desejo dela, mas não tinha nenhuma vontade de aprofundar
alguma relação com ela, porque ela representaria uma espécie de ponte para um
triste passado que eu não desejava reviver, ou convivência, contato e notícias
desse pai que passou a vinda inteira me rejeitando, violentando e massacrando. Não
desejo guerras, mas também não estou em idade de fingir cordialidades com demônios. Eu poderia tê-la bloqueado de
pronto, mas eu fiz questão de dizer isso a ela, para deixar claro que ele, seu
nome que retirei do meu, suas riquezas, não me pertencem, de nada me servem.
Mas o filme não trouxe só agruras. Eu também chorei de
felicidade. Chorei ao pensar nas pessoas que tive em minha vida, amigos e
familiares, que deram e me dão amor e carinho e que amam do jeito que eu sou,
pelo que eu sou, como eu sou. Pensei nas minhas queridas tias Lilian e Wilma,
que tanto me ajudaram, me ampararam e me amaram, sem cobranças, sem chantagens,
sem repressões. Passou um filme de todos os meus amigos queridos de toda uma
vida, que fizeram o mesmo: simplesmente me amaram. E pensei, também com emoção,
nesse meu companheiro, meu marido, que tem estado sempre ao meu lado, me
apoiando, me amando, dando broncas, chamando a atenção para minhas falhas. Um
presente que pedi a Deus.
Extraordinário. O nome do filme em português. Combina,
porque ele diz, no começo do filme, que, embora tente parecer um garoto comum (“ordinary”)
, ele sabe que é diferente. Em algum momento ele diz, porque vai se fazendo, um
garoto “extra- ordinário”, não apenas no sentido especial que vai lhe sendo
atribuído, mas de poder se tornar, de fato, extremamente comum, uma criança no
meio de tantas outras. Em inglês, chamaram Wonder. Wonder é muito mais que
extraordinário. Wonder significa maravilha, ou como diz o dicionário: “um
sentimento de supresa misturado com admiração, causado por algo bonito,
inesperado, não-familiar ou inexplicável”.
Viver é extraordinário. A vida é Wonder.
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