O CANDOMBLÉ
* Foto: @pretophotobrasil
O Candomblé é uma sofisticada forma de culto e de cuidado. Quando eu era “mais pequenino” do que ainda sou em suas ciências, ouvi um sacerdote dizer que “a umbanda era para a caridade e o candomblé era para cuidar de si mesmo”. Na época eu respeitei aquelas palavras, mas algo me dizia que se tratava de um saber parcial. Faltava porque eu sentia que faltava mesmo e faltava porque essa mesma pessoa possuía a vivência limitada dos becos que havia frequentando.
Mesmo assim, há um pedaço do conhecimento desse sacerdote que é verdadeiro; existe sim uma dimensão individual do cuidado no Candomblé. Você pode chegar, acessar uma consulta ao jogo de búzios, você pode tomar banhos de folhas, fazer ebós e uma série de rituais propiciatórios para várias finalidades. Você pode até “invadir” um pouco mais esse território e assentar orixás, você pode até passar pelo processo de iniciação, a tal “feitura”, “raspar cabeça”, como dizemos popularmente.
Esse mesmo sacerdote nos contava, inúmeras vezes, quantos mil reais havia pago por esse ou aquele “feitiço” que consistiam, na verdade, em ensinamentos que deveriam ter sido ensinados e aprendidos oralmente, dentro de um terreiro de Candomblé.
O Candomblé não é uma “mercearia” de prestação de serviços mágicos individuais. Essa é a ótica da branquitude que foi se apropriando desse espaço e transformando a relação com o sagrado num produto a ser comprado e vendido, cada vez mais caro e mais inacessível a quem mais seria de direito.
Para além desse cuidado individual, o Candomblé é um lugar de e para a coletividade. Porque essa cura que o Candomblé promove é uma cura mais coletiva que individual, mais grupal do que solitária, mais generosa do que mercantil.
Ainda assim, você poderá “desfrutar” de vários desses processos mágicos que o dinheiro puder comprar e mesmo assim você não estará “dentro” do Candomblé. Você pode passar pelo processo de iniciação e ter um lindo assentamento para chamar de seu, e fios de contas portentosos, e paramentas belísimas, e até um nome sagrado; ainda assim você não estará fazendo parte. Porque você “comprou” um processo e talvez compre até um “diploma” de “ebômi” ou de “sacerdote”, porque decorreram anos a partir da sua iniciação, mas você não frequentou a “escola”. Comprar um diploma de graduação pode te fazer o “diplomado” perante uma multidão; mas você será, para si mesmo e para Orixá, um eterno mal aprendiz.
Uma vez testemunhei a saída de uma moça do meu terreiro. Ela, de cabeça erguida, chegou aos pés de meu Babalorixá e disse: eu agradeço por tudo, mas estou indo embora. Eu admiro o que vocês fazem, mas não dou conta, não consigo. Essa moça terá sempre meu respeito. Porque ela foi capaz de assumir que não era capaz de HONRAR aquele espaço como deveria. Veja, eu disse HONRAR.
Alguns sacerdotes falam desse tempo de “abianato”, o tempo de ser abian, o noviço, e conhecer aquela casa, aquela família. Mas eu penso que esse abianato pode durar anos e mesmo assim ser insuficiente para que aquela pessoa tenha um real despertar sobre o significado, sobre a importância, sobre o valor de pisar nesse espaço sagrado.
Não há livro, palestra ou apostila que ensine.
Esse texto não é um artigo científico; tampouco um ensaio filosófico. Esse texto é uma escrita que brotou da minha alma ao refletir sobre os acontecimentos desses últimos dias. Há poucos dias eu realizei, nesta casa de Candomblé, o Caruru de Ibeji e toquei, junto com meu Babalorixá, o primeiro xirê, após a inauguração do terreiro. E enquanto o xirê acontecia, um filme passou em minha mente. E eu estou dizendo isso porque, apesar de “não-filosófico”, preciso dizer que sou particularmente apaixonado pelo conceito de “ser afetado” de Favret-Saada (FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être Affecté”. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8. pp. 3-9), e eu posso dizer que eu fui afetado pelo Candomblé.
Você pode se sentir tocado numa cerimônia de Candomblé, pelo abraço de um Orixá. Mas ser tocado não significa ser afetado. Porque ser afetado significa ser transformado pela experiência e isso não necessariamente ocorrerá de forma imediata, mas por vezes em um longo processo. Eu fui afetado e meu modo de ver o mundo foi transformado pelo Candomblé.
Quando eu saí da umbanda e adentrei o Candomblé, minha rotina com as coisas espirituais se modificou, se intensificou. Uma amiga chegou a me criticar, dizendo: “Estou com raiva dessa sua nova religião, eu não consigo mais te encontrar”, simplesmente porque as pessoas não compreendem as longas horas que nos comprometemos com o culto. Muitas pessoas também não compreendem a natureza dos nossos relacionamentos com as pessoas do culto, com nossa família de santo, chamando-nos de “fanáticos”.
Hoje, conversando com uma pessoa que está para adentrar o Candomblé, ela me disse: “É um fardo que eu não gostaria de carregar, mas é minha missão e eu tenho que assumir”. E então eu dei a minha opinião: “Sim, a religião é trabalhosa, mas não a sinto como um fardo. Eu faço parte do grupo de pessoas que pensa que é uma honra servir aos nossos deuses e deusas; é uma honra louvar Orixá”
Eu já ouvi muitos sacerdotes dizerem que as pessoas que nascem com a missão de serem sacerdotes de religião de matriz africana são as pessoas que mais teriam “karmas a pagar”. Hoje eu penso que isso é uma grande falácia racista que é repetida por muitas pessoas que transformam o culto em um tipo de escravidão contemporânea.
Eu estou há dias escrevendo esse texto. E a cada linha me vêm outras novas lembranças de experiências vividas, e eu creio que ficaria escrevendo dias a fio e não terminaria de colocar meus pensamentos. Talvez eu escreva mais em outro momento.
Eu não desejo chegar a algum lugar com esse texto. Talvez, em seu ponto de partida, eu quisesse. Mas, ao longo dessa jornada, esse objetivo perdeu o sentido. Sobrou uma longa história, de um homem que tinha preconceito com as religiões de matriz africana e que, pouco a pouco, foi aprendendo e se transformando, a ponto de se tornar um fiel apaixonado pelas suas tradições. Xangô foi testemunha de tudo o que vivi nessa viagem para chegar até aqui e contar essas histórias para vocês.
Mas, se eu puder, a essa altura da minha vivência, ensinar algo, eu digo: HONREM o Candomblé. Honrem com suor e lágrimas esse culto que foi desenvolvido com tanta luta de muita gente que veio antes de nós. Sacerdotes, Sacerdotisas, Reis e Rainhas que, mesmo num contexto de extrema violência que foi a escravidão, conseguiram preservar um amálgama de ensinamentos que chegou até os dias de hoje.
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