O EREMITA E SUAS EPIFANIAS
O Caboclo Sete Flechas foi a primeira entidade da Umbanda com quem me consultei. Há quase vinte anos, naquela casa estranha da Dona Jamile, a primeira mãe-de-santo que conheci. Com suas roupas brancas meio esfarrapadas, feitas com rendas sintéticas, usando aquele turbante estranho, “meio” árabe, ela dava passagem ao Caboclo Sete Flechas, com sua linguagem torta, seu palavreado que não era indígena, não era africano, nem português. Era, talvez, um tipo de “umbandês” que muitas vezes necessita de intérpretes.
“Quando ele vem, lá do Oriente, ele vem com ordens de Oxalá, sua missão é muito nobre, espalhar a caridade e a seus filhos ajudar. Eu saravo Papai Xangô, Kaô, eu saravo Papai Oxalá, eu saravo Seu Sete Flechas ele é o nosso rei e o chefe desse kazuá”.
Assim ele chegou naquela noite de sexta-feira. A filha de Dona Jamile fez a preleção do evangelho (que era a bíblia, na verdade) e, de repente, Sete Flechas estalava os dedos, para que ela parasse de ler. Lá estava a lição da noite, a sabedoria revelada através da bíblia, por um caboclo da Umbanda que usava turbante.
E lá aprendi, pela primeira vez, a saudar uma entidade, batendo os punhos com os dele. Sete Flechas me disse que eu havia sido um eremita em várias vidas e que, nessas várias, eu largava a missão de curador e saía andando pelo mundo, procurando algo a mais, algo diferente. Até hoje não sei como isso acontece, mas aconteceu aquele dia: o caboclo leu a minha alma. E-r-e-m-i-ta. Era assim que eu me sentia. Secretamente, era assim que eu me denominava. Era desse modo que eu me via. Sem parada. Sem casa. Sem rumo. E ele disse que, por ter largado tantas vezes a missão de curador que eu passava por tantas dificuldades naquele momento, para terminar meus estudos. Mesmo que fosse metáfora ou fantasia, essa explicação serviu como um bálsamo para aquele peso que eu sentia. Ele me ofereceu uma explicação para a minha infelicidade.
Sete Flechas terminava sempre a consulta perguntando: “Que quere yo, fio meu?”, que queria dizer “O que mais você quer de mim, meu filho?” e eu sempre respondia que não queria mais nada, e só queria agradecer. E ele partiu, dizendo que ia me ajudar. De fato, me ajudou muito. Hoje estou aqui, mais de vinte anos depois, vivo, formado, mestre, doutor, professor, muitas páginas de currículo, muitos diplomas. Mais que isso: sinto-me cada dia mais feliz e mais realizado. Mas isso não significa que não me sinta insatisfeito. Parece que essa insatisfação não acaba nunca. Não pensem que a minha insatisfação é de ganância, cobiça, esse afã tão comum entre colegas de profissão, essa avidez por acumular riquezas. Nada disso. É minha alma que permanece inquieta mesmo.
Não é à toa que, ao concluir o mestrado, queria colocar na tese uma citação do Nietsche que não fosse pessimista. E eu encontrei:
“Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, para atravessar o rio da vida - ninguém, exceto tu, só tu. Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar.Onde leva? Não perguntes, segue-o!”
Também ao concluir o texto do meu doutorado, uma música da aula de religião do meu tempo de ginásio, chamada “Caminheiro” não saía da minha cabeça:
“Perdido, confuso, vazio, sozinho na estrada, tentando encontrar um caminho que seja o meu, não importa se é duro, terei que buscar. Caminheiro, você sabe, não existe caminho. Passo a passo, pouco a pouco e o caminho se faz.”
Sou eremita mesmo. Há uma solidão no meu caminhar, há uma necessidade de continuar sempre andando, que jamais se esgota. A citação do filósofo, a música da aula de religião, as palavras do caboclo. Tudo se traduz numa necessidade de caminhar em busca de algo que eu não sei – ou não sabia - exatamente o que é. Até mesmo outras frases e canções que falem desse caminhar incessante me prendem, me capturam. Sou pego pelo arquétipo do eremita, do andarilho solitário.
I still haven’t found what I’m looking for. Eu ainda não encontrei o que estou procurando. Cantam Cher ou Bono para mim.
Hoje, durante uma conversa com um amigo, essas memórias vieram à tona. Conversando sobre o Candomblé, sobre essa minha caminhada pela espiritualidade, ele “acordou” a minha memória. Ele chamou a minha atenção para o fato de que as minhas necessidades de busca, de curiosidade, de ímpetos, são lampejos, folguedos e explosões da minha memória ancestral. Depois de nossa conversa, fiz uma reflexão sobre essa longa caminhada nessa vida terrena. Brinquei, meio que falando sério, que devo ter saído da África muitas encarnações atrás, talvez arrancado, talvez fugido. Andei por tantos caminhos, embranqueci, diluí meu sangue negro por diversas vidas e trilhas. E de repente, eu me deparo com as religiões afro-brasileiras. Eu me lembro como se fosse hoje o primeiro dia que ouvi o som do atabaque no terreiro de Dona Jamile. Sem nenhum medo e com uma sensação de familiaridade inexplicável. Naquele momento eu pude entender tudo, ou quase tudo. Lembro de dizer para mim mesmo: “é aqui que eu quero ficar”. Esse “aqui” que não era aquele lugar, mas aquele lugar dentro de mim onde o som dos atabaques ecoava a minha própria alma.
Agora, emocionado enquanto transformo esses pensamentos em frases, sou capaz de enxergar, de me sentir acordado, como Paulo dizendo aos Coríntios: “estou acordado e todos dormem”. Estou acordado, estou vivo, estou são. É no Candomblé que me reconecto a minha ancestralidade, é pisando no chão de um terreiro, descalço, ao som dos atabaques, que ativo essa memória e me sinto vivo, eterno, imortal. Eterno e imortal como alma. Eterno e imortal como as memórias de todas as vidas vividas, minhas e de meus ancestrais. É “virado” em meu Orixá, que refaço os caminhos dessa ancestralidade, que reavivo cada sensação já vivida, guardada nesse pequeno cofre de memórias eternas.
Eu ainda não sei se eu me encontrei. Eu nem sei se esse encontro é definitivo ou se devo continuar andando pelo mundo, encontrando coisas e pessoas que reativam essa memória, que acordam minha pele, meu corpo, minhas células para a eternidade de uma vida sem vim, uma vida em espírito.
Hoje, numa madrugada de segunda para terça, na transição dos domínios de Exu e de Ogun, orixás que regulam os nossos caminhos, das encruzilhadas às estradas, escrevo, desabafo, me tranquilizo ao poder compreender que tudo o que sinto e vivo é apenas caminho, caminhar, estrada, trilha. Todo esse barulho da minha alma, da minha cabeça e do meu coração é apenas o barulho dos meus passos. Não sei para onde vou, não sei exatamente como caminharei. Tenho apenas a certeza de que devo continuar, porque Xangô e Oxum me levam, porque eles sabem o que eu ainda não sei, porque não foi revelado.
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