A NOIVA-CADÁVER

Não, não se trata apenas de um desenho animado para adultos. Essa foi uma história que ouvi numa roda de família e que se passou lá nos confins de Minas Gerais. Esse tipo de história que marca a vida da gente para sempre. Não exatamente a minha, mas a vida de quem viveu essa loucura toda.
Uma certa família mineira morava numa certa cidadezinha mineira. Sabe aquele tipo de cidade pequenina, que cabe inteira numa foto? Era exatamente assim. Uma casa caiada de azul, com janelas e batente brancos, portãozinho baixo, um ipê no fundo do quintal e um varal cheio de roupas. Nessa casa viviam Dona Lalá , “Seo” Lulu e seus três filhos – Lelê, Lili e Lolô. Como os filhos eram pequenos e o casal tinha que passar o dia fora de casa trabalhando, logo que se mudaram, Dona Lalá tratou de arranjar uma empregada “de dormir” para tomar conta da cria. Ditoca, a empregada, tinha dezesseis anos quando começou a cuidar dos meninos. Era acanhada, bem roceira, mas cheia de carinho e cuidados para com as crianças. Não tinha grandes sonhos, senão o único de se casar com seu namorado, Zequinha, na igreja da cidade, de véu e grinalda, como se casam as boas moças-donzelas de lugares como esse.
Alguns anos se passaram e a vidinha daquelas pessoas continuava quase igual. Os meninos cresceram, o casal continuava dando duro para manter a casa funcionando. Tinham uma vida simples, mas não faltava nada naquela casa. Ditoca continuava trabalhando com a família, mas passou a se ocupar dos preparativos do casamento com Zequinha. Nesses anos todos,Dona Lalá ajudara muito com o enxoval de Ditoca e a menina se empenhava fazendo bordados e bainhas nas toalhas e biquinhos de mesa. Como Dona Lalá costurava muito bem, prometeu que faria o vestido de casamento de Ditoca, cujos olhos se enchiam de lágrimas cada vez que se imaginava entrando na igreja com um lindo vestido todo rendado.
Faltando alguns meses para o casamento, aconteceu uma desgraça. Ditoca voltava pra casa de seus pais no final de semana e, na escuridão do canavial, foi atropelada por um trator. O motorista nem percebeu que tinha atropelado uma pessoa; acreditou ser mais uma daquelas jaguatiricas safadas que andavam por lá, até porque o grito de Ditoca ao ser esmagada foi bem parecido com o das oncinhas. E assim era chegado o fim do sonho de Ditoca.
Todo mundo na casa se entristeceu. Ditoca havia se guardado donzela para Zequinha e sonhara dia e noite com seu casamento. Dona Lalá, inconformada, não se fez de rogada. Enquanto todo mundo ajeitava as coisas do velório, ela foi na loja de tecidos do “Seo” Ibrahim, comprou um rolo de tule branco rendado, sentou o traseiro na cadeira e se pôs a costurar. Após algumas horas estava pronto o vestido de noiva de Ditoca para que, se ao menos não havia conseguido realizar seu sonho em vida, ira ter com Deus pura como veio ao mundo e bem vestida para a festa no céu.
De fato Ditoca morreu tranqüila. E dizem que, na noite após seu enterro, vários moradores da cidadezinha viram um clarão branco no céu, parecido com um véu-de-noiva e que, se olhasse bem, dava pra ver a cara de Ditoca sorrindo, contente. Mas se Ditoca morreu feliz, o resto da casa não ficou não. Chegando do enterro, todos se assustaram com aquele enorme rolo de tule no meio da sala e vários retalhos do tecido rendado espalhados pelo chão da casa. Dona Lelé, irmã de Lalá, não pôs mais os pés na casa da família com medo de encontrar a finada Ditoca pelos corredores da casa. As crianças morriam de medo. E aqueles retalhos pareciam uma praga, pois mesmo vários meses após o evento, ainda se achava algum pedaço de tule pelo caminho.
Dona Lalá, católica ferrenha e crente de que havia feito o melhor pela finada, nem se abalava. Dava bronca nas crianças quando falavam que estavam com medo do espírito de Ditoca. Para ela isso era tudo bobagem, mas tudo aquilo causou tanta confusão, medo e insônia naquelas crianças que resolveram mudar de casa. Além disso, já corriam boatos que a causa estava mal-assombrada.
Já na casa nova, Dona Lalá fez questão de inspecionar que não havia sequer um resquício daqueles tules todos. E na correria da mudança, deixou lá na casa velha o rolo de tule bordado. Mas o tormento não havia acabado. Logo voltaram a aparecer pedaços de tule espalhados pela casa, colocando todos em pânico. Até Dona Lalá começou a ficar assustada.
Pensava o que havia feito de errado para que o espírito de Ditoca estivesse perseguindo a família, mas não conseguia entender. Rezou missas pela alma da moça, chamou o padre para benzer a casa. Nada adiantou. Foi então que Dona Lalá resolveu dar o braço a torcer e foi procurar Dona Isaura, a benzedeira da cidade. Levou uns pedacinhos dos tules que encontrou pela casa e pediu conselho para a velha.
Morrendo de medo e se sentindo pecadora por buscar métodos alternativos à sua sagrada igreja, ficou mais apavorada ainda quando Dona Isaura se contorceu toda com os tules na mão, caiu no chão estatelada e, quando abriu os olhos esparramada no chão, vertiam lágrimas de seus olhos e começou a falar com uma voz de moça, diferente daquela voz rouca de velhice e cigarro de palha.
Dona Lalá tremia que nem vara verde, mas logo percebeu o que estava acontecendo. Mesmo apavorada, resolveu enfrentar o medo no intuito de resolver o problema. Dirigiu então a palavra ao espírito.
-É você Ditoca?
-Sim, Dona Lalá, sou eu.
-Mas o que você ta fazendo minha filha, ta deixando o povo apavorado! Me diz, eu fiz mal procê, foi? Você não gostou do vestido?
-Não era isso Dona Lalá... eu adorei o vestido. Mas não podia ir embora sem resolver duas coisas....
-Que coisas são essas, ora Virgem Maria? Não vai me dizer que você vai levar o Zequinha pra se casar no além?
-Não, nada disso. Então fala logo, credo-em-cruz!
-Primeiro eu queria agradecer à senhora. Não ia conseguir descansar em paz se não agradecesse pelo que a senhora me fez.
-Ah...E precisava fazer esse tumulto todo? Não podia aparecer num sonho, mandar uma menagem de outro jeito?
-É que falta a outra coisa.....
-E que coisa é essa?
-Eu preciso....
E nisso um vento forte bateu, derrubando o jarro de flores na cabeça de Dona Isaura, levando embora o espírito de Ditoca. Dona Isaura voltou a si e, não bastasse o susto todo, ainda ficou foi com um galo enorme na cabeça. Enquanto tomavam um café, Dona Lalá contava o ocorrido à velha, que de nada se lembrava.
-E bem na hora que ela ia falar a tal da segunda coisa..Tinha que bater o vento e derrubar o jarro? Só fez foi espantar o espírito da falecida. E agora?
-Nada nesse mundinho de meu Deus acontece por acaso, Lalá. Ela esperou vocÊ vir aqui para aparecer e contar isso, e eu acho que o resto é com você!
-Mas tenha a santa paciência, Dona Isaura! A gente quer fazer o bem e ainda leva na cabeça? Dou um vestido de presente e ainda saio devendo? Que será que falta eu fazer agora?
Dona Lalá foi pra casa, cheia de minhocas na cabeça. Ficou achando que nada daquilo era verdade, que a velha tinha fingido aquilo tudo só pra pregar uma peça em Lalá. Chegou a pensar até que tinha sido ela que mandara alguém jogar aqueles tules todos na sua casa. Chegando em casa, sentou-se na rede, no alpendre para pensar sobre tudo aquilo. E, já mais calma, ficou tentando montar o quebra-cabeças... Pensou, pensou, até que descobriu. Realmente Dona Isaura tinha razão. Nada daquilo era à toa, nem o jarro de flores que caiu na cabeça da velha. Realmente faltava algo e era isso que ia fazer.
Correu para o jardim, catou um chumaço de margaridinhas brancas e algumas mini-rosas, juntou tudo, fez um laço com fita de cetim. Já era tarde, mas respirou fundou e perdeu o medo de ir ao encontro de sua tarefa. Pulou o portão do cemitério, foi ter com o túmulo de Ditoca. Catou a pá do coveiro, cavou, cavou,cavou. Abriu o caixão, e lá estava ela, linda com o vestido, ainda intacto, mesmo passados vários meses. E suas mãos não estavam espalmadas, sobre o peito, como no velório. Elas se encontravam fazendo um buraquinho, e Dona Lalá entendeu o recado:
-Agora eu entendi. Noiva sem buquê não existe. Descansa em paz, Ditoca. Mas nem brinca de querer me convidar pra ser madrinha!
E lá foi Dona Lalá embora, toda realizada, por ter conseguido desvendar esse mistério. E foi pensando nessa história que parei para refletir sobre as dívidas que não saldamos, os compromissos que assumimos e não honramos, as promessas que não cumprimos. Tudo isso faz com que sintamos culpa e com isso, fiquemos presos no mundo, impossibilitados de voar. Talvez seja mais fácil libertar espíritos insatisfeitos ou mesmo pessoas vivas ao redor que nos cobram coisas – por vezes caras – mas que nos libertam delas. Acho que o mais difícil é entender os pesos e dívidas que nós mesmos nos impomos e o quanto é difícil nos darmos as chaves que abrem essas algemas.
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