O MITO DE DONA FÊNIX


Olhem! É um pássaro? É um avião? Não, não. É apenas a Dona Fênix correndo de um lado pro outro. Levanta cedo, prepara o café, chama os filhos prum novo dia. Lava roupa, passa, cozinha, encera. Assim viveu Dona Fênix. Quem lhe deu esse nome tinha razão: trabalhava tanto, com tal afinco, que chegava morta ao final do dia. Mas como a ave mitológica, estava pronta pra uma nova batalha no dia seguinte. E não reclamava não. Era muito grata a Deus por ter braços fortes, boas pernas e disposição sobrando pra continuar na labuta.
Era uma mulher simples. Não tinha grandes sonhos, contentava-se com o pouco que Deus lhe dava e ainda assim achava que já era muito. Só tinha um desejo, e esse sim proferia a todos pra que ninguém esquecesse: quando morresse queria ser cremada e que suas cinzas fossem jogadas no mar. Os católicos da família a excomungavam: diziam que era pecado, uma violência com o corpo, que deveria ser enterrado. A facção espírita dizia que nos primeiros dias que se desencarna a alma está ligada ao corpo, e ela sofreria dores terríveis e depois ficaria atormentando os parentes com murmúrios incessantes. E ela nem ligava. Fingia que não ouvia e imaginava apenas sua alma flutuando pelo céu, do jeito que as cinzas estariam soltas pelo mar. E ainda achava ecológico, porque não ocuparia espaço em cemitérios, não gastaria com jardineiros e não correria o risco de ter sua cova vilipendiada.
Não que desejasse morrer; nem era esse assunto de todas as horas. Gostava muito da sua vida do jeito que era e pretendia viver muitos anos ainda. Mas lá pelos seus cinqüenta e algo, a mão da morte resolveu cravar sua foice no coraçãozinho de Dona Fênix. Dizem que foi bonita a sua morte. Estava na feira escolhendo tomates e, ao pegar o pacote de tomates bem madurinhos pra fazer o molho do macarrão, apertou a mão e os tomates contra o peito e caiu dura, pra trás, num golpe só. A dor deve ter sido tanta que os tomates ficaram esmagados em seu peito, parecendo que sangrava. A cara, apesar de espantada com a dor súbita, esboçava um ar de surpresa, como quem chega ao céu e se dá conta com um Deus ruivo, de cabelo moicano e botas de verniz.
A família ficou muito desolada. Mas já que morreu, trataram de cremá-la, como havia pedido. Foi uma confusão. Muitos comentários, muitas reclamações, mas Egberto, seu filho, decidiu que cumpriria o único real desejo de sua mãe em vida. E Teka, sua esposa, o apoiou. Passados alguns dias – uns quinze, creio eu – Egberto recebe um telefonema do crematório. Vixi! Tanta confusão, tanta tristeza, que havia esquecido as cinzas de Dona Fênix! Foram lá buscar. Era realmente uma sensação esquisita saber que sua mãe inteirinha estava lá, numa urna dourada. Nem tristeza dava. Era uma estranheza mesmo. Mas Egberto havia decidido que não jogariam as cinzas de sua mãe em qualquer lugar. Para desespero de Teka, Egberto resolveu deixar as cinzas em casa, na mureta da lareira, até que recebesse um “sinal” do lugar pra onde iria levar sua mãezinha.
Aquilo foi um tormento para Teka. Não conseguia ficar na sala sozinha porque morria de medo daquela urna. Se estivesse só em casa, passava correndo pela sala e fazia o sinal da cruz. E quando perguntava a Egberto sobre o que faria com as cinzas, ele se irritava e falava que ainda não havia recebido o tal “sinal”.
Teka começou a ter pesadelos com a urna. Sempre gostou muito de Dona Fênix, não era por culpa ou raiva ou remorso que sentia aquele desconforto todo. Apenas não queria ser obrigada a conviver com aquela urna, que além conter as cinzas da falecida, não combinava nadinha com a decoração da casa.
Seis meses se passaram e Dona Fênix ainda estava lá. Egberto nem se pronunciava e Teka decidiu por um fim nessa ladainha. No dia de aniversário do morte de Dona Fênix, Teka acordou mais cedo do que de costume e acordou Egberto, como se estivesse apavorada. Contou que havia sonhado com a falecida, pedindo que a levasse para o mar. Egberto caiu que nem um peixe. Entendeu que o sonho de Teka era o tal “sinal”...
- Mas espera um pouco... Ela não disse onde jogar?
- Ai meu amor... não sei direito.... – daí pensou que não queria passar mais seis meses com aquela urna em casa e lembrou que morria de vontade de conhecer Ilha Grande – Era algo assim Olho Grande, não-sei-o-que-lá-grande...
- Ilha Grande! É isso, Ilha Grande! Fomos pra lá uma vez quando eu era criança e ela adorou, sempre falava de lá com saudosismo. Vamos hoje mesmo pra lá!
E então foram, no mesmo dia, rumo a Ilha Grande. Egberto, Teka e seu filhote de labrador, Astor. A viagem foi um tormento. Astor vomitou por todo o caminho e Teka tinha que se equilibrar entre cuidar de Astor e segurar as cinzas de Dona Fênix. No barquinho que levava à Ilha, Teka pensava, refletia, pensava de novo e não conseguia entender porque não havia escolhido o Guarujá, muito mais fácil para despachar as cinzas da sogra. Mas já estavam lá.
Foram recebidos por um local que os conduziria ao camping. Era uma enorme ladeira, um morro que parecia não ter fim. Teka xingava muito Dona Fênix nesse trajeto e perguntava a ela, olhando firme para a urna porque havia mimado tanto seu filho... Tudo bem que ele estava carregando a mochila nas costas, mas porque ela tinha que ficar carregando aquela urna!
Mas Egberto estava doido de felicidade. Ia andando na frente, saltitante, conversando com o cicerone. E foi então que contou ao homem que jogaria as cinzas da sua mãe na ilha. O homem parou, no meio da subida e olhou estatelado. Ficou inconformado, disse que era mau agouro, porque a ilha tinha sido presídio e muita gente sofreu naquele lugar. Que não ia fazer bem pra alma da falecida deixá-la por ali.
Egberto ficou pensativo e cabisbaixo. Perguntou a Teka se tinha certeza que era Ilha Grande que ela ouviu no sonho.
- Amor, eu te disse, não tenho certeza. Mas você disse que a sua mãe gostava daqui...Acho que ela não iria se importar....
- Não, não, não, Dona – interrompeu o cicerone – Se vocês colocam ela aqui, coisa boa não vai dar.
- Meu senhor, entendo sua preocupação, mas sinceramente não vejo problema... – disse Teka.
- Mas e se ele estiver certo? E se a alma da minha mãe ficar perturbada, vagando por aí? Vamos embora.
- Mas querido, não podemos ficar por aqui, passamos o final de semana e vamos levar as cinzas pra outro lugar numa outra oportunidade? Eu queria tanto conhecer a Ilha...
- Nós não viemos a passeio, Teka – respondeu Egberto em tom heróico. Vamos voltar agora.
- Então agora você leva essa merda dessa urna porque a mãe é sua!
- Não fale assim da minha mãe!
- Não estou falando dela! Estou falando desse troço enorme e desconfortável...e cafona....e... essa porcaria dessa urna que você comprou! Se não quer deixar as cinzas nessa merda dessa ilha, pelo menos trate de carregar...
- Vocês estão vendo? Isso é sinal de energias negativas.... – disse o cicerone.
- E o senhor faça o favor de não se intrometer além do que já se meteu! Isso é assunto de família.
E lá foram eles, descendo o morro. Desanimados, desconsolados. E como desgraça pouca é bobagem, começou a chover. Um baita toró. E aquele lindo morro, sem nem uma cabana para refúgio, se tornou um desfiladeiro escorregadio e lamacento. E foi assim o primeiro vôo da Fênix: Egberto tropeçou em Astor, caiu de bunda na lama e a urna voou com a tampa aberta, espalhando cinza por toda a ilha. Era um espetáculo bonito de se ver, aquela cinza toda se misturando com a água da chuva. E tinha raios de Sol, tinha até arco-íris. E então Egberto percebeu que Teka tinha razão. Dona Fênix realmente queria ficar ali. Era um “sinal”. Egberto ficou emocionado, abraçou Teka, apertou forte as suas mãos. Ficaram tão emocionados que esqueceram de Astor. Foi quando o cicerone, ao retomar a caminhada, percebeu a tragédia:
- Minha Nossa Senhora! O cachorro ta comendo as cinzas!
Egberto levantou correndo e foi ver a traquinagem. Dona Fênix agora era realmente um ser mitológico, metade vento, metade cachorro! Astor lambeu com muito gosto todo o resto das cinzas que havia na urna, porque a mistura com a água da chuva dava um aspecto de ração.
- E agora? O que vamos fazer? Será que vamos ter que ficar aqui até ele....até minha mãe sair de dentro dele? – perguntou Egberto, atônito.
E Teka não pensava em outra coisa senão uma boa desculpa para saírem de lá o quanto antes e botar fim nessa doideira. Foi então que encheu o peito de ar e de coragem e disse:
- Meu amor, vê como sua mãe nos deus os sinais corretos? Viemos até aqui, por indicação do meu sonho e quando decidimos ir embora, choveu e as cinzas caíram e a água da chuva vai levar sua mãe até o mar. Talvez o fato do Astor ter comido as cinzas tenha uma razão....
- E que diabos de razão é essa?
- Talvez ela queira que levemos um pedacinho dela conosco...Faz sentido pra você? E como ela quis ficar por aqui mesmo, aproveitamos e enterramos a urna perto do mar....
- É talvez você tenha razão...
E assim terminou a saga de Dona Fênix, livre agora, onde antes havia sido um presídio. Mas, como toda sogra que se preze, conseguiu dar um jeitinho de ficar perto do filhinho. Mesmo que seja dentro do bucho do cachorro!