Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Tuesday, September 30, 2008

MULHERES PERDIDAS NO JARDIM DE LESBOS


“Mais alva do que o leite
Mais suave que a água
Mais harmoniosa que a lira
Mais garbosa que o cavalo
Mais delicada que as rosas
Mais macia que o próprio manto
Mais preciosa que o ouro”
(Sappho, poeta grega)


Sappho era a poeta grega que habitava a ilha de Lesbos. Ela cultuava abertamente, em suas poesias, a beleza e o desejo por – como diria Renato Russo – meninos e meninas. É daí que surge, como apanágio da homossexualidade feminina, o termo “lésbica”, como referência à tal ilha. Há quem diga que os termos “sapa”, “sapatão”, não deriva da masculinização da mulher homossexual, por usar botas ou sapatos de homem, mas, na verdade, como uma aproximação do nome da poeta.

Sinonímias à parte, tenho pensando muito em Lesbos e Sappho, porque tenho visto muitas mulheres, como chamei no titulo dessa discussão, “perdidas no jardim de Lesbos”. Histórica e cientificamente, parece que as mulheres carecem menos de definições sobre ser ou não ser homossexual quando comparadas ao sujeito homem; isso porque, dizem os números, elas transitam com muito mais facilidade e liberdade entre os “dois mundos”. Entretanto, não são essas – as que transitam entre “coves and masts” – o foco dessa discussão.

Acredito que existem muitas mulheres perdidas numa etapa muito anterior ao movimento pendular da orientação feminina. Perdidas estão nesse jardim, uma espécie de labirinto mítico que impõe uma impossibilidade de visualização, antes mesmo da indecisão. Verdes colunas e mosaicos de plantas se impõem pelo caminho, impedindo que a mulher perceba aonde está, o que quer, o que realmente deseja, enroscando-se em padrões de comportamento socialmente aceitos e apropriados, como arbustos e espinhos de uma densa plantação ornamental.

Dessa forma, o jardim é uma “ante-sala” da ilha de Lesbos, como os aeroportos das cidades que visitamos. Chegamos em Paris, estamos em Paris, mas, enquanto não passamos pela imigração no aeroporto Charles de Gaulle, estamos num “limbo” Brasil-França. O jardim de Lesbos é a imigração da homossexualidade feminina. A diferença é que o turista acredita estar na França quando ainda não passou pela imigração e já se porta como “turista” e a mulher no labirinto não percebe ter chegado à ilha de Lesbos, presa aos homens e à heterossexualidade como arbustos e espinhos do denso jardim.

É claro que existem muitos homens presos em algum jardim, de alguma ilha, cujo nome desconheço. Mas acho que o homem e a homossexualidade masculina já são muito mais faladas, pesquisadas, comentadas e especuladas. Isso porque, na minha opinião, a necessidade do homem mostrar que “dá no couro”, que transa, que namora, entre outras demonstrações da masculinidade, é muito mais supervisionada socialmente, enquanto que o homoerotismo feminino, não apenas passa desapercebido, como muitas vezes é incentivado e reverenciado pelos homens.

Qual é o principal sonho erótico de um homem? Ver sua mulher transar com outra ou transar com duas mulheres ao mesmo tempo... O homoerotismo feminino é aceito e incentivado, desde que esteja a serviço da satisfação sexual heterossexual masculina. Quando uma mulher assume publicamente sua homossexualidade, não raras vezes é vista como alguém que passou por um grande decepção amorosa ou que “não foi bem comida”, como dizem muitos homens. Agora, quando um homem assume sua homossexualidade, tal fato é visto como erro na criação, sem-vergonhice ou descaramento.

E por que decidi escrever sobre essas mulheres, perdidas nesse jardim tão obscuro? Simplesmente porque tive um sonho. Via a cena acontecendo, como se meus olhos fossem uma câmera, um “reality show” do jardim de Lesbos. Via uma mulher linda, exuberante, perambulando assustada pelo jardim e que, a cada minuto, se enroscava em arbustos e espinhos que, ao tentar se desvencilhar deles, via rostos masculinos. Soltava-se, dava uns passos e via tenras maças vermelhas em galhos e, ao morde-las, alucinava seios e vaginas, cuspindo e vomitando. Corria, cansada e se deparava com um rio. Nele, via sua imagem refletida e, não exatamente apaixonada, como no mito de Narciso, sentia uma confiança, uma serenidade, permitindo-se beber dessa água. A água a entorpecia, caía, sonolenta no gramado e acordava amparava nos braços de uma musa, que sabia ser a própria Sappho. Beijavam-se e a mulher saía correndo por Lesbos, não como fugitiva, tampouco presa ao jardim, mas numa corrida para a liberdade.

Sou um amante da liberdade e assim o era Sappho. Acho que as pessoas podem e merecem ser livres, e foi pensando nas pessoas que tanto padecem nessas prisões circusntanciais, luto, sonho, almejo que, a cada dia, haja mais gente, homens e mulheres, libertos dos padrões obscuros e mortuários da nossa sociedade.

Sunday, September 28, 2008

TRANSGENERALIDADES...


Traveca, travecão, transsexual, travesti, Drag Queen, cross-dresser, transgênero. Outro dia estava pensando em como são corajosas essas pessoas que, por vontade, por necessidade ou seja lá por que for, cruzam essa ponte que leva a um outro lado, que pode ser desconhecido ou já muito conhecido e desejado. Acho que é preciso mais coragem para se travestir, se “montar”, mudar ou assumir um mudança exterior de sexo - que muitas vezes já é internalíssima - do que para assumir uma orientação sexual.

Claro, claro, cada qual com a sua cruz. E parecido com o que disse algum poeta que ouvi por aí (“cada um sonha seu sonho à sua maneira”), a dor de cada um pertence a cada um. E, desse modo, cada pessoa sofre seu quinhão para resolver seus problemas ou tomar suas decisões. Mas, realmente, tenho a sensação de que essa ponte é muito mais comprida do que muitas outras.

Sobre os transgêneros, na verdade não estou querendo falar deles. Quis apenas dar linha pra essa pipa, porque essa palavra, além da “cunha” que designa um grupo de pessoas (…), me fez pensar hoje sobre o “trans” em nossas vidas… Não quero falar do “trans” que tem estado tão em moda... o “transgênico”. Como todo bom comilão que sou, pouco me importa se é trans, não-trans, bio, ômega 3,4,5 ou 6... Morro de infarto, morro feliz com a boca cheia.

Decidi falar do “trans” como uma “troca”, um estado de transferência, de transitoriedade. Como disse uma amiga ao elaborarmos um plano diabólico-infantil – como os planos infalíveis do Cebolinha para derrotar a Mônica – uma pequena traquinagem de dois adultos-crianças: “adoro essas pequenas transgressões”.

Todas as pessoas, por mais rígidas que sejam, têm uma porção “trans” em seu interior. Recentemente viajei com um amigo que, apesar de manter sua vida sob códigos de conduta muito rígidos, não se fez de rogado ao dizer que não havia necessidade de comprar bilhete de metrô na pequena cidade do leste europeu, simplesmente porque “ninguém conferia”.

Um outro conhecido contou um dia que, para se vingar de um colega de trabalho, durante uma viagem de negócios, pendurou a placa de “favor arrumar o quarto” na porta da vítima, para que ele fosse acordado nas primeiras horas da manhã. E, como se não bastasse, ligou várias vezes de um orelhão público para o quarto do cara para acordá-lo durante a madrugada…

Tem gente que precisa se álcool ou outra droga pra liberar sua porção “trans”. Na vida “real”, cotidiana, trava tudo, esconde, guarda, prende, mocofa... Daí vem o álcool, a maconha, a cocaína e, com elas, vem todas as verdades,as feras, os demônios, os medos e as coragens... Tudo que não podia ou não devia ser dito, e por vezes tudo o que deveria para por fim a certos fantasmas ou atrocidades...

Além dos psicotrópicos, a adversidade também pode fazer nossos “trans” saírem para passear. É o exemplo do filme “Ensaio sobre a cegueira”, inspirado na obra de Saramago, no qual uma cegueira contagiosa leva toda uma sociedade ao caos e à deturpação, fazendo que o “trans” mais profundo e selvagem desabroche das pessoas na luta pela sobrevivência.

Se Freud estivesse vivo, talvez diria que esse “trans” é o império do “Id”, a coisa selvagem em nós, a fera que tudo quer e nunca dorme, sempre rondando a mente e a vida em busca das satisfações mais imediatas. Sim, o “trans” tem muito disso: o agressivo, o suprimido, o reprimido. Mas nem sempre precisa representar algo negativo. Pode significar a transgressão que leve à libertação, que rompa bloqueios e estigmas. Pode significar a transformação para um novo estado de equilíbrio. Como para passar de um ponto seguro a outro que sustenta a corda bamba, é preciso passar por ela e por todas as suas turbulências para sustentar-se, manter-se de pé e, finalmente, atingir o outro ponto.

Uma vez, visitei uma cave de champagne da França. A guia da visitação, para explicar o processo de produção de grandes garrafas de champagne, que são feitas por encomenda, chamou de transvasage o ato de entornar várias garrafas pequenas no bocal dessa grande, porque, segundo ela, não é possível produzir diretamente uma garrafa grande de champagne, pois isso comprometeria os processos de fermentação, gerando uma bebida de má qualidade. E é assim a vida, a existência: não há como chegar ao topo sem percorrer cada um de seus degraus. O homem não voa.

Da mesma forma, é preciso, muitas vezes, conhecer o abismo, o porão, o bolor. E não bastasse conhece-lo, faz-se necessário que o revisitemos diversas vezes. A viagem não é boa, mas a vantagem é que já conhecemos o caminho. Essa é uma forma de “trans” que não consegui encontrar no dicionário a palavra correta, que não significa retrocesso, derrota, recaída. É apenas uma revisita, como visitamos os mortos no cemitério, para nos certificarmos que eles estão mesmo mortos. Ou não.

Enfim, é preciso entender e aceitar que somos “trans”; que a alma é transmutante; que a vida é transitória; que o pensamento e os desejos se transvestem para ludibriar nossa razão, nossas limitações, com a única finalidade de realizar os desejos mais profundos da existência.