Blog do Doutor Fofinho
"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.
Saturday, March 29, 2014
Para saber mais: http://desarquivandobr.wordpress.com
Tuesday, March 18, 2014
MEMÓRIAS AFETIVAS
Semana passada visitei pela segunda vez um restaurante brasileiro em Nova Iorque. Nunca fiquei tempo suficiente fora do Brasil para sentir falta da comida brasileira, e acho que, se morasse lá, não haveria algo que não soubesse cozinhar que fosse servido no tal restaurante. A vantagem de de sair de Manhattan e ir até o Queens é poder comer tudo de uma vez, sem sujar a louça de casa: picanha, feijoada, coxinha, pastel, pão de queijo e pudim de leite.
Mas a empreitada não se resumiu ao restaurante. Saímos de lá direto para o supermercado de produtos brasileiros, coisa muito, muito engraçada de se fazer na cidade. De repente, um Brasil de supermercado se abre à nossa frente: pão de queijo, sagu, acarajé, picanha, guaraná Antarctica, sabonete Phebo, paçoquinha, goiabada, queijo fresco, requeijão e Sonho de Valsa! Dentro do mercado, um monte de gente falando português, coisa que não é incomum nos dias de hoje. Em volta do balcão de lanches, brasileiros conversavam em alto tom de voz, apropriando-se do espaço com ares de boteco.
Ir a esse lugar não me causou quase nenhum impacto. Porque, como eu disse, não moro lá e já fui e voltei tantas vezes que não tenho tempo de sentir falta. Além disso, vejo que a maioria dos produtos que as pessoas procuram são encontrados em mercados americanos, até com uma qualidade muito superior. Qual a necessidade de comprar sabão em pó OMO, detergente Limpol e palha de aço Bombril? E feijão brasileiro? Já cozinhei arroz com feijão em Nova Iorque e posso garantir que ficou bem mais gostoso com o feijão de lá.
Logo depois aterrisei e pensei naquele brasileiro imigrante, vindo dos confins do Brasil, clandestino, sem saber falar uma palavra em inglês e que ficará anos prisioneiro da sua clandestinidade, impossibilitado de saber ler um letreiro "estrangeiro" na terra que ele escolheu ganhar a vida. Como um mineiro que conheci um tempo atrás, que mesmo após dez anos morando em Nova Iorque, não falava inglês e só frequentava restaurantes brasileiros, porque dizia não gostar da comida americana, mas a verdade é que mal sabia ler um cardápio.Para esse cara, encontrar óleo Mazola, molho de tomate Etti e desinfetante Pinho Sol salva a sua vida.
Mas não é só pra facilitar a vida prática do imigrante que essas coisas existem. Elas servem para ativar a nossa memória afetiva. Elas servem para trazer um pouquinho da lembrança do lugar, coisa ou pessoa que liga a nossa mente a uma determinada emoção. É claro que esse afeto nem sempre é positivo, e imagens, sabores e cheiros podem nos remeter a sensações desagradáveis presas em nossa memória.
Interessante é pensar que a memória afetiva pode ser apenas uma ilusão. Fazer bolo com o chocolate do Padre não necessariamente vai deixar um bolo mais gostoso. E nesse momento, a mente forja desculpas para manter o afeto daquela memória: não ficou bom porque o leite era de outra marca, porque o forno era diferente ou porque quem fazia mesmo o tal bolo era a Vó Fulana, e ninguém acerta como ela.
Nada de mal em preservar essa energia quando o afeto é bom ou quando essa ilusão nos auxilia à manutenção de um equilíbrio, mesmo que seja através da saudade. Mas o que acontece quando ele nos aprisiona, impedindo de crescer ou de seguir em frente? Nem sei dizer se há respostas ou outra "cura" para esse aprisionamento que não seja o próprio tempo, colocando novas experiências à mostra, como oportunidade de olhar a vida de outros pontos de vista.
Eu, particularmente, nem sei se quero me livrar dessas memórias e seus afetos. Tem alguns negativos sim, mas que consigo guardá-los numa caixinha, deixando-os dar uma volta vez ou outra. Mas quero manter o cheiro do bolo de laranja da minha tia, o frescor do vento batendo em meu rosto na minha primeira volta de bicicleta sem rodinhas, a sensação de segurar as orelhas de meus avós na estrada, indo para a praia, símbolo máximo do meu elo de amor com eles e o perfume no pescoço do amor da minha vida, no primeiro dia que nos vimos.
Imagens, cheiros, sensações, sabores, sons. Sentidos que dão sentido à minha existência, porque me constituíram, me compuseram.