Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Saturday, March 29, 2014

#DESARQUIVANDO


Meu avô era um homem misterioso. Um homem sério, de poucas brincadeiras, mas que soube me dar carinho através de sua presença, de sua companhia e de seus ensinamentos. Ao longo dos anos, muita coisa de sua face misteriosa foi sendo revelada, ainda em vida: além da nossa família, ele ainda tinha mais duas paralelas. E um monte de amantes. Uma dessas famílias tive a oportunidade de conhecer e conviver, pessoas que respeito muito, apesar de conviver pouco hoje em dia. Mas sua “segunda" esposa, que como a minha avó foi esposa a vida inteira e ficou ao seu lado até o dia de sua morte, foi uma pessoa com quem convivi, de quem gostei e achei até a chamar de “vó”, para ira de alguns familiares. 


Por mais chocante que fosse essa revelação da secreta vida conjugal do meu avô, essa ainda não era sua parte mais misteriosa. Meu avô tinha uma profunda relação com a espiritualidade. Não falava disso com ninguém, não era panfletário sobre suas crenças e o máximo que tive de contato com sua fé era quando rezávamos todas as noites antes de dormir, enquanto ele morou comigo. Sobre a cabeceira da cama, alguns livros espíritas, um evangelho e a foto da minha avó Izolina. Sim, eu acredito que ele a amou, tanto quanto ele amou sua outra esposa, do mesmo jeito que ele amou tantas outras mulheres, algumas que até cheguei a conhecer. 


Mas ele guardava um outro grande segredo: numa época de sua vida em que havia trabalhado como operário numa fábrica, ele se envolveu com política. Chegou a ser preso e ficou um tempo desaparecido da família, porque havia sido acusado de “roubo”, coisa que era quase impossível de acreditar. Na cadeia, foi torturado, passou fome, mas sobreviveu. Nunca falava sobre isso, apenas manifestava, vez ou outra, o ódio que tinha da polícia, pela violência à qual havia sido submetido. 


Felizmente, meu avô voltou para casa. Inteiro, sem grandes sequelas físicas ou psíquicas. Desempregado e com a “ficha suja”, chegou a trabalhar novamente como engraxate pelas ruas da cidade para sustentar suas famílias. E assim o fez. O que será que ele fez para conseguir sobreviver? Assumiu a culpa do tal “crime”? Entregou amigos de uma luta política? Ninguém jamais saberá. Com seu corpo, foram enterradas tais memórias. O fato é que ele pode voltar para casa, viu filhos, netos e bisnetos nascerem. 


Quando lembro dessa história, paro pra pensar em quantas foram as pessoas que desapareceram nos porões da ditadura militar no Brasil. Quantos foram os pais e mães brasileiros que, como meu avô, foram presos, torturados e, muito pior que isso, nunca voltaram para casa? Quantos tiveram que fugir com o intuito de garantir a vida, deixando para trás família, filhos, pertences? Quantos foram torturados e submetidos a procedimentos médicos, maus tratos, choques e outros tipos de tortura pela simples razão de desejarem lutar contra a opressão e possuírem pontos de vista diferentes? 


Infelizmente, mais do que todas as pessoas que passaram por isso, existe um número incontável de pessoas que se mantém num limbo de ignorância e alienação sobre tais assuntos. Pessoas imersas num mundo de fantasias e mitos sobre os “comunistas”, os “vagabundos rebeldes” que “ameaçaram a paz e a ordem do país”. Apesar da incrível história do meu avô, muitos de minha família nem fazem idéia do que se passou com ele e vivem numa total alienação, alienação essa que vivi e compartilhei por anos. 


Pela memória do meu avô, pela memória de tanta gente que sofreu, que foi torturada, que morreu por um ideal, pelas músicas proibidas, pelos livros queimados ou recolhidos e, sobretudo, porque isso pode acontecer de novo, é preciso que essas histórias sejam contadas, reveladas, trazidas à tona. E é por esse motivo que apoio integralmente a abertura dos arquivos da ditadura civil-militar, a revisão da Lei da Anisitia e a punição dos torturadores, bem como a mudança de nomes de logradouros públicos que ainda ostentam e exaltam no coletivo a presença de ditadores e torturadores. 
Não apenas pelo resgate histórico e pelo respeito às vítimas do passado, mas pela importância de conhecermos mais e mais a história que governantes esconderam de nós para a manutenção da alienação das massas. 

Para saber mais: http://desarquivandobr.wordpress.com 




Tuesday, March 18, 2014

MEMÓRIAS AFETIVAS


Semana passada visitei pela segunda vez um restaurante brasileiro em Nova Iorque. Nunca fiquei tempo suficiente fora do Brasil para sentir falta da comida brasileira, e acho que, se morasse lá, não haveria algo que não soubesse cozinhar que fosse servido no tal restaurante. A vantagem de de sair de Manhattan e ir até o Queens é poder comer tudo de uma vez, sem sujar a louça de casa: picanha, feijoada, coxinha, pastel, pão de queijo e pudim de leite. 

Mas a empreitada não se resumiu ao restaurante. Saímos de lá direto para o supermercado de produtos brasileiros, coisa muito, muito engraçada de se fazer na cidade. De repente, um Brasil de supermercado se abre à nossa frente: pão de queijo, sagu, acarajé, picanha, guaraná Antarctica, sabonete Phebo, paçoquinha, goiabada, queijo fresco, requeijão e Sonho de Valsa! Dentro do mercado, um monte de gente falando português, coisa que não é incomum nos dias de hoje. Em volta do balcão de lanches, brasileiros conversavam em alto tom de voz, apropriando-se do espaço com ares de boteco. 

Ir a esse lugar não me causou quase nenhum impacto. Porque, como eu disse, não moro lá e já fui e voltei tantas vezes que não tenho tempo de sentir falta. Além disso, vejo que a maioria dos produtos que as pessoas procuram são encontrados em mercados americanos, até com uma qualidade muito superior. Qual a necessidade de comprar sabão em pó OMO, detergente Limpol e palha de aço Bombril? E feijão brasileiro? Já cozinhei arroz com feijão em Nova Iorque e posso garantir que ficou bem mais gostoso com o feijão de lá. 

Logo depois aterrisei e pensei naquele brasileiro imigrante, vindo dos confins do Brasil, clandestino, sem saber falar uma palavra em inglês e que ficará anos prisioneiro da sua clandestinidade, impossibilitado de saber ler um letreiro "estrangeiro" na terra que ele escolheu ganhar a vida. Como um mineiro que conheci um tempo atrás, que mesmo após dez anos morando em Nova Iorque, não falava inglês e só frequentava restaurantes brasileiros, porque dizia não gostar da comida americana, mas a verdade é que mal sabia ler um cardápio.Para esse cara, encontrar óleo Mazola, molho de tomate Etti e desinfetante Pinho Sol salva a sua vida. 

Mas não é só pra facilitar a vida prática do imigrante que essas coisas existem. Elas servem para ativar a nossa memória afetiva. Elas servem para trazer um pouquinho da lembrança do lugar, coisa ou pessoa que liga a nossa mente a uma determinada emoção. É claro que esse afeto nem sempre é positivo, e imagens, sabores e cheiros podem nos remeter a sensações desagradáveis presas em nossa memória. 

Interessante é pensar que a memória afetiva pode ser apenas uma ilusão. Fazer bolo com o chocolate do Padre não necessariamente vai deixar um bolo mais gostoso. E nesse momento, a mente forja desculpas para manter o afeto daquela memória: não ficou bom porque o leite era de outra marca, porque o forno era diferente ou porque quem fazia mesmo o tal bolo era a Vó Fulana, e ninguém acerta como ela. 

Nada de mal em preservar essa energia quando o afeto é bom ou quando essa ilusão nos auxilia à manutenção de um equilíbrio, mesmo que seja através da saudade. Mas o que acontece quando ele nos aprisiona, impedindo de crescer ou de seguir em frente? Nem sei dizer se há respostas ou outra "cura" para esse aprisionamento que não seja o próprio tempo, colocando novas experiências à mostra, como oportunidade de olhar a vida de outros pontos de vista. 

Eu, particularmente, nem sei se quero me livrar dessas memórias e seus afetos. Tem alguns negativos sim, mas que consigo guardá-los  numa caixinha, deixando-os dar uma volta vez ou outra. Mas quero manter o cheiro do bolo de laranja da minha tia, o frescor do vento batendo em meu rosto na minha primeira volta de bicicleta sem rodinhas, a sensação de segurar as orelhas de meus avós na estrada, indo para a praia, símbolo máximo do meu elo de amor com eles e o perfume no pescoço do amor da minha vida, no primeiro dia que nos vimos. 

Imagens, cheiros, sensações, sabores, sons. Sentidos que dão sentido à minha existência,  porque me constituíram, me compuseram.