MEMÓRIAS AFETIVAS
Semana passada visitei pela segunda vez um restaurante brasileiro em Nova Iorque. Nunca fiquei tempo suficiente fora do Brasil para sentir falta da comida brasileira, e acho que, se morasse lá, não haveria algo que não soubesse cozinhar que fosse servido no tal restaurante. A vantagem de de sair de Manhattan e ir até o Queens é poder comer tudo de uma vez, sem sujar a louça de casa: picanha, feijoada, coxinha, pastel, pão de queijo e pudim de leite.
Mas a empreitada não se resumiu ao restaurante. Saímos de lá direto para o supermercado de produtos brasileiros, coisa muito, muito engraçada de se fazer na cidade. De repente, um Brasil de supermercado se abre à nossa frente: pão de queijo, sagu, acarajé, picanha, guaraná Antarctica, sabonete Phebo, paçoquinha, goiabada, queijo fresco, requeijão e Sonho de Valsa! Dentro do mercado, um monte de gente falando português, coisa que não é incomum nos dias de hoje. Em volta do balcão de lanches, brasileiros conversavam em alto tom de voz, apropriando-se do espaço com ares de boteco.
Ir a esse lugar não me causou quase nenhum impacto. Porque, como eu disse, não moro lá e já fui e voltei tantas vezes que não tenho tempo de sentir falta. Além disso, vejo que a maioria dos produtos que as pessoas procuram são encontrados em mercados americanos, até com uma qualidade muito superior. Qual a necessidade de comprar sabão em pó OMO, detergente Limpol e palha de aço Bombril? E feijão brasileiro? Já cozinhei arroz com feijão em Nova Iorque e posso garantir que ficou bem mais gostoso com o feijão de lá.
Logo depois aterrisei e pensei naquele brasileiro imigrante, vindo dos confins do Brasil, clandestino, sem saber falar uma palavra em inglês e que ficará anos prisioneiro da sua clandestinidade, impossibilitado de saber ler um letreiro "estrangeiro" na terra que ele escolheu ganhar a vida. Como um mineiro que conheci um tempo atrás, que mesmo após dez anos morando em Nova Iorque, não falava inglês e só frequentava restaurantes brasileiros, porque dizia não gostar da comida americana, mas a verdade é que mal sabia ler um cardápio.Para esse cara, encontrar óleo Mazola, molho de tomate Etti e desinfetante Pinho Sol salva a sua vida.
Mas não é só pra facilitar a vida prática do imigrante que essas coisas existem. Elas servem para ativar a nossa memória afetiva. Elas servem para trazer um pouquinho da lembrança do lugar, coisa ou pessoa que liga a nossa mente a uma determinada emoção. É claro que esse afeto nem sempre é positivo, e imagens, sabores e cheiros podem nos remeter a sensações desagradáveis presas em nossa memória.
Interessante é pensar que a memória afetiva pode ser apenas uma ilusão. Fazer bolo com o chocolate do Padre não necessariamente vai deixar um bolo mais gostoso. E nesse momento, a mente forja desculpas para manter o afeto daquela memória: não ficou bom porque o leite era de outra marca, porque o forno era diferente ou porque quem fazia mesmo o tal bolo era a Vó Fulana, e ninguém acerta como ela.
Nada de mal em preservar essa energia quando o afeto é bom ou quando essa ilusão nos auxilia à manutenção de um equilíbrio, mesmo que seja através da saudade. Mas o que acontece quando ele nos aprisiona, impedindo de crescer ou de seguir em frente? Nem sei dizer se há respostas ou outra "cura" para esse aprisionamento que não seja o próprio tempo, colocando novas experiências à mostra, como oportunidade de olhar a vida de outros pontos de vista.
Eu, particularmente, nem sei se quero me livrar dessas memórias e seus afetos. Tem alguns negativos sim, mas que consigo guardá-los numa caixinha, deixando-os dar uma volta vez ou outra. Mas quero manter o cheiro do bolo de laranja da minha tia, o frescor do vento batendo em meu rosto na minha primeira volta de bicicleta sem rodinhas, a sensação de segurar as orelhas de meus avós na estrada, indo para a praia, símbolo máximo do meu elo de amor com eles e o perfume no pescoço do amor da minha vida, no primeiro dia que nos vimos.
Imagens, cheiros, sensações, sabores, sons. Sentidos que dão sentido à minha existência, porque me constituíram, me compuseram.
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