Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Monday, December 18, 2017

EXTRAORDINÁRIO






Nesse último domingo assisti o filme “Extraordinário” (Wonder ,2017) no cinema. Confesso que nem tinha ouvido falar dele, de tão ocupado que andava. Só soube de sua existência ontem mesmo, quando meu marido pediu que eu pesquisasse sobre o que tratava o filme. Vi o trailler e encarei-o como daqueles “bonitinhos” e resolvemos assistir. O filme é lindo. Mais do que lindo; ele é capaz de fazer brotar emoções e lágrimas. Eu chorei muito durante o filme, mas vi outras pessoas chorando também, então não estava tão fora da curva de “emocionabilidade”. O mais interessante é que, embora o menino Auggie seja o principal personagem da trama, o filme não é só sobre ele. É um filme sobre pessoas. Pessoas todas envolvidas na trama com seus diferentes pontos de vista e com suas dores.

É claro que, enquanto assistia e chorava, eu conseguia refletir sobre cada um dos pontos que me faziam despertar tanta emoção. Embora eu não tenha nenhuma deformação física, eu me identifiquei com Auggie sofrendo bullying por ser “diferente”, leia-se gordo, na minha infância. Claro, hoje eu continuo gordo, isso não me afeta mais, mas me afetou muito e por muito tempo. Sei  que eu teria sofrido menos agressões e torturas se não fosse um gordo tão frágil e inseguro, cheio de medos  e desamparos . Lembro do pavor de passar no corredor polonês no recreio ou na entrada da escola; lembro do menino que tirava sarro do meu cabelão armado, o que me fez odiar tanto aquele cabelo; lembro desse mesmo menino chutando as minhas costas sem nenhum motivo, ou arremessando a mochila de longe, para acertar minha cabeça. Lembro bem que eu sentia medo e jamais conseguia responder ou reclamar. Tantas outras histórias que poderia contar aqui sobre como a escola era um lugar de terror para mim.

Ah, professores também fazem bullying. Lembro especificamente de três delas: Líria, do Colégio SAA, da primeira série, que deu um berro, com os olhos esbugalhados de ódio porque meu brinquedo havia quebrado e um colega cortou o dedo nele. Ela gritava e destilava um descontrole emocional que me causou vários pesadelos.  A segunda, que não lembro o nome, foi na quarta série do Colégio Quarup: fazia questão de, na frente de todos, fazer perguntas que expunham meus medos e fragilidades e sempre terminava com comentários jocosos que faziam a classe toda rir de mim. A terceira, no Colégio SAA novamente, era Regina, uma professora de Ciências. Uma torturadora, que decidia quando um aluno poderia ou não ir ao banheiro e me recordo que caguei nas calças uma vez porque ela resolveu não deixar que eu fosse no banheiro naquele momento.  Dessa eu me vinguei.  Numa atividade cultural da escola, fiz um cartaz com um cabelo de vassoura desfiada imitando o cabelo espigado dela, a cara dela com uma máscara de papel higiênico, aquele nariz enorme com uma verruga na ponta e aquela cara amarela de anemia. Não precisou nenhuma informação: escrevi abaixo daquela cara vil a frase “Você me conhece?”, igual ao programa do Bozo. A professora da atividade e toda a classe caíram na gargalhada e ela, a Regina do Mal, me olhava com ódio depois disso, mas nada pode fazer.

Via, a irmã de Auggie, tocou minha alma por outros motivos. A sua solidão naquela família, a falta da avó que havia falecido e era sua melhor amiga e o desejo de aniversário,  apagando as velas de 4 anos, pedindo um irmão. Inevitável eu lembrar que, por volta dessa idade, talvez um pouco mais velho, eu pedia a Deus que me desse uma irmãzinha. E que quando ela veio, era como se tivesse chegado um anjo para alegrar a minha vida e me proteger e ser uma razão para pensar que a vida não era tão horrível. Que era possível sobreviver sem a presença da minha avó Izolina, que havia me deixado,  vítima de um câncer. Que era possível suportar a sensação de abandono do meu avô Armando, que havia saído de casa para morar com sua outra família, limitando-se a visitas mensais. 

Com essa esperança, era mais fácil suportar aquela violência toda na escola, porque eu voltava para casa, para ver a minha irmã, que me trazia tanta luz. Antes mesmo do filme eu já andava reflexivo, porque ainda não estou recuperado das feridas recentes que esse assunto me trouxe. Nesse aspecto, eu ainda estou dolorido, ferido, sem condições de caminhar.

Via,  que num momento do filme se diz “filha única” sem ser, explicita a dor da sua alma por sentir-se só. Já faz um tempo que me chamo “órfão de pais vivos”, porque, por um lado, tive um pai ausente na maioria dos momentos da minha vida e, quando estava presente, era sempre de forma violenta, agressiva, desagradável. Aprendi a desejar a ausência dele. Aprendi a agradecer quando ele não estava em casa, quando ele não viajava conosco, quando ele passava as madrugadas fora. Nojo, repulsa e medo. Nada mais. Por outro lado, fui me  orfanizando da minha mãe ao longo do tempo. Demorei um tempo para perceber e aceitar que sua presença era invasiva e tóxica, atrasada e preconceituosa. Hoje, desejo sua presença cada vez menos, sem sentir falta ou culpa por estar longe. Fique ela, com sua igreja, seu Deus vingador , seus fiéis irmãos hipócritas amaldiçoando, em nome de Jesus, pessoas que não caibam em suas caixas comportamentais.

Mais recentemente, eu me orfanizei de meus irmãos. Eu tenho que confessar que foi uma escolha. Doída. Sofrida. Mas uma escolha como consequência de abandonos e decepções. Às vezes eu me pego sentindo saudades. Outras vezes me apanho sentindo dores. Dores dos machucados de relações poluídas, dores de decepções vividas, dores de expectativas frustradas. Esse filme trouxe isso  mais à tona, mas há algumas semanas já estava sentindo essas coisas. Sobretudo porque, já experimentava, antes mesmo de me recolher para minhas obrigações no Candomblé, as invasões desses sentimentos. Porque esse período de isolamento é propício, é um convite a essas reflexões sobre nossa vida. 

Durante esse recolhimento, Oxum e Iemanjá estiveram mais presentes,  me colocando frente aos  meus  espelhos d´alma e então foi impossível não espelhar tristezas e mágoas guardadas. Eu pude refletir sobre meus excessos nessas relações: meu excesso de expectativas, meu excesso de generosidade, querendo dar o que ninguém nem pediu, minha frustração por eles não serem o que desejava para eles. Um irmão mais velho, que recebeu precocemente atribuições de pai e cuidador, querendo o tempo todo dizer o que achava melhor que eles fizessem, sem enxergar que os caminhos deles também foram escolhas deles. Por outro lado, pude refletir sobre o quando esperava deles que eles fossem por mim como eu era por eles; que eles estivessem nas minhas datas especiais como eu estava nas deles e que, na verdade, eles nunca quiseram estar. Embora eu tenha impressões sobre os motivos pelos quais eles nunca estiveram, não seria justo eu julgar os seus não-quereres. É suficiente perceber que eles não estiveram e que eu me magooei com isso.

Eu não sei dizer se esse distanciamento será para sempre. Eu saberei  voltar atrás se perceber que sou capaz de conviver com menos dores, ainda que com cicatrizes. Por hora, não sou capaz de olhar para essas situações e fingir que não estou machucado. Seria um não eu, fingindo sentir  ou fingindo não sentir. Eu não preciso mais disso em minha vida.

Recentemente, uma irmã por parte de pai, agora adolescente, me procurou nas redes sociais e quis falar comigo, porque queria me conhecer. Uma menina linda e inteligente, com traços familiares. Eu sabia – ou desejava – que isso aconteceria um dia. E aconteceu. Mesmo sabendo quem era, esperei que ela me chamasse, se apresentasse  e dissesse o que queria: me conhecer, se aproximar, simplesmente por sermos irmãos. Eu ouvi e educadamente respondi a ela, que, embora ela não tivesse culpa disso, eu respeitava o desejo dela, mas não tinha nenhuma vontade de aprofundar alguma relação com ela, porque ela representaria uma espécie de ponte para um triste passado que eu não desejava reviver, ou convivência, contato e notícias desse pai que passou a vinda inteira me rejeitando, violentando e massacrando. Não desejo guerras, mas também não estou em idade de fingir cordialidades  com demônios. Eu poderia tê-la bloqueado de pronto, mas eu fiz questão de dizer isso a ela, para deixar claro que ele, seu nome que retirei do meu, suas riquezas, não me pertencem, de nada me servem.

Mas o filme não trouxe só agruras. Eu também chorei de felicidade. Chorei ao pensar nas pessoas que tive em minha vida, amigos e familiares, que deram e me dão amor e carinho e que amam do jeito que eu sou, pelo que eu sou, como eu sou. Pensei nas minhas queridas tias Lilian e Wilma, que tanto me ajudaram, me ampararam e me amaram, sem cobranças, sem chantagens, sem repressões. Passou um filme de todos os meus amigos queridos de toda uma vida, que fizeram o mesmo: simplesmente me amaram. E pensei, também com emoção, nesse meu companheiro, meu marido, que tem estado sempre ao meu lado, me apoiando, me amando, dando broncas, chamando a atenção para minhas falhas. Um presente que pedi a Deus.

Extraordinário. O nome do filme em português. Combina, porque ele diz, no começo do filme, que, embora tente parecer um garoto comum (“ordinary”) , ele sabe que é diferente. Em algum momento ele diz, porque vai se fazendo, um garoto “extra- ordinário”, não apenas no sentido especial que vai lhe sendo atribuído, mas de poder se tornar, de fato, extremamente comum, uma criança no meio de tantas outras. Em inglês, chamaram Wonder. Wonder é muito mais que extraordinário. Wonder significa maravilha, ou como diz o dicionário: “um sentimento de supresa misturado com admiração, causado por algo bonito, inesperado, não-familiar ou inexplicável”. 


Viver é extraordinário. A vida é Wonder.