XANGÔ, O REI QUE VIVE DENTRO DE MIM.
Quando eu conheci o
Candomblé, há mais de 20 anos, eu não entendia nada do seu funcionamento. Anos
depois, quando o rio da minha vida foi rumando ao encontro com esse grande mar,
eu passei a conhecer, um pouquinho a cada dia, seus ritos, suas tradições, seus
ensinamentos. Cada dia que passa, eu vejo que se abrem várias novas caixas de
segredos e saberes. Acho que não termina nunca. O Candomblé é um sacerdócio e,
mesmo que o seu adepto nunca se torne ou nunca receba um título sacerdotal, ele
inscreve um percurso sacerdotal, segue toda a vida aprendendo e, em algum
momento se torna, também, um transmissor de conhecimento. É um culto à troca,
ao intercâmbio, onde o maior valor, a maior moeda, é o aprendizado.
No momento em que eu decidi
levar adiante a minha iniciação, uma escolha que já havia feito antes mesmo do
meu nascimento, lá no Orun, eu me entreguei de cabeça e entreguei a minha
cabeça ao meu Orixá e à minha mãe de santo e não pairava nenhuma dúvida quanto
a estar no caminho corretíssimo. Quando nasci para Xangô e ele nasceu em mim,
confirmei essa certeza, certeza que se mantém até hoje. Foram meses de
restrições e cuidados, gastos, tempo, abdicações. Mas se me perguntarem, direi
que faria de novo e de novo e de novo.
E o que eu procurava com a
iniciação? A primeira coisa que buscava era esse encontro com a parte que
faltava, esse brilho de Xangô dentro do meu peito, essa onda de calor e energia
percorrendo cada milímetro do meu corpo e me reconectando a um DNA ancestral, à
minha ancestralidade. Sentir-me mais vivo ao acordar a minha ancestralidade em
meu corpo.
No aspecto psicológico,
encontrar-me com Xangô dentro de mim também trouxe um bálsamo para a minha
sensação de orfandade, de órfão de genitor vivo, de ausência de pai, de quase
uma vida inteira de rejeição e violência. Ter Xangô como pai faz com que eu não
precise ter um pai carnal. Ter Xangô como pai também traz uma brasa, um calor
de amor igualzinho ao amor que emanava do meu avô Armando, meu único pai carnal
na Terra. Um homem que me amou desde quando eu morava na barriga de sua filha
até o dia em que retornou à massa primordial. Um homem de verdade, como meu Pai
Xangô.
Ser do Candomblé, ser “do
santo”, não se resume apenas a uma religião ou culto. Ser de Candomblé imprime
um modo de viver e de enxergar a vida, uma forma específica de ver o mundo.
Isso não me torna melhor do que ninguém. Sou melhor para mim mesmo. Através da iniciação eu pude
revisitar meus medos, meus desejos, renovar minha fé, rever minhas escolhas e
melhorá-las. Acho que escolho melhor quase tudo em minha vida porque sinto ter
ampliado meu campo de visão, junto com a minha sensibilidade, como se esse meu
Pai colocasse grande holofotes a minha frente, tornando mais claro o meu
caminhar.
Não enriqueci materialmente,
mas o caminho da prosperidade material se abriu para mim, porque minhas
escolhas estão mais alinhadas com meus desejos, com meus sentimentos. Xangô não
permite que nada me falte, mas sempre com trabalho e luta.
Encontrei-me emocionalmente,
hoje, muito mais consonante com o que eu desejava para minha vida. É claro que
isso se deve, numa parte, ao meu amadurecimento emocional, mas eu não deixo de
pensar que Xangô abriu as portas para que me se sentisse livre para fazer
minhas novas escolhas.
Eu poderia passar horas,
dias, falando das benesses de Xangô e dos demais Orixás em minha vida, porque é
realmente uma lista interminável. Mas também há desafios. Pelos olhos do Rei eu
enxerguei as injustiças, as traições, as mentiras, as máscaras. Muitas
decepções com pessoas queridas e amadas. Xangô não me causou o sofrimento; ele
apenas abriu meus olhos mais cedo, porque essas decepções viriam, em algum
tempo. Com algumas dessas pessoas eu pude reescrever a forma de me relacionar e
reconstruir relações mais verdadeiras. Outras, infelizmente, morreram em vida
para mim com a queda de suas máscaras. O mais importante nisso tudo é que Xangô
estava comigo, ajudando-me a suportar esses dissabores, e pude ser mais forte
para suportar as dores de certos rompimentos. Assim como a justiça, o machado
de meu pai tem duas faces e minhas imperfeições e deslizes também foram
desvelados, para que eu tivesse, como tive, a chance de aprender e me redimir.
Sigo a vida de cabeça
erguida, celebrando minhas vitórias, refletindo sobre perdas e descaminhos.
Entre erros e acertos, tenho vivido, olhando a vida através das lentes mágicas
do Candomblé, desejando sempre clareza e discernimento. Eu que já releguei
minha fé no passado, mantenho hoje uma fé inabalável nos Orixás. Nada que
aconteça tirará de mim a confiança neles, aconteça o que acontecer.
Enquanto escrevia, começava a
reclamar sobre o “material humano” dentro do Candomblé e quase escorreguei
reclamando da perversidade das pessoas dentro da religião e no mundo. Apaguei
tudo, porque refleti e concluí que não podemos generalizar a humanidade pela
virulência de algumas pessoas. A maldade está no coração e na mente suja delas
e, como um feitiço, corre-se o risco de materializar e alastrar essa maldade
quando a generalizo para a humanidade, tornando-a ainda mais doente. E não
precisamos disso, nem eu ou o mundo.
Precisamos de boas palavras,
bons pensamentos. Precisamos tentar buscar a paz. Já faz algum tempo que tenho
deixado de seguir pessoas em redes sociais cujos pensamentos, comentários e
venenos não contribuem em nada para o meu bem viver. Deixar de seguir é a
ferramenta diplomática para deixarmos de lado as ideias tóxicas de pessoas que
não podemos excluir de nossas vidas num dado momento. Infelizmente, somos
contaminados com a ideia da fofoca, sob as vestes da lealdade. Eu nasci e
cresci num meio familiar de muita fofoca e aprendi a gostar dela. Mas Xangô tem
me ensinado que a fofoca atrai energia ruim para nossas vidas e age como o tal
feitiço que falei anteriormente. Quando espalhamos a fofoca, espelhamos
desgraça.
Todos os dias eu me esforço
para deixar de lado esse material contaminado da fofoca. Nem sempre sou
vitorioso, sou muitas vezes derrotado por mim mesmo, mas sigo tentando. Ao
fazermos isso, no Candomblé ou fora dele, acabamos nos deparando com um vazio,
uma sensação de não pertencimento, porque a energia da fofoca que atrela as
pessoas são nós disfarçados de laços, que vão pouco a pouco sufocando as boas
vibrações.
Quem me conhece, sabe como eu
penso. Quem conhece verdadeiramente meu coração, é capaz de compreender minhas
atitudes. Quem sabe da minha história, quem conhece o “mar de fogo” que
atravessei para chegar até aqui, livre e são, senhor das minhas escolhas, pode
ser capaz, se desejar, de compreender os meus passos. Aos 44 anos de vida, caio
cada vez menos na fábula da expectativa. Apenas sigo em frente, com o amparo
dos Orixás e com clareza na mente. Xangô ratificou em mim o desejo de ser livre
e independente. E é a ele, ao seu fogo permanente que aquece a minha jornada,
que dedico esse texto.
Te amo, Pai Xangô.