Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Saturday, April 21, 2018

XANGÔ, O REI QUE VIVE DENTRO DE MIM.



Quando eu conheci o Candomblé, há mais de 20 anos, eu não entendia nada do seu funcionamento. Anos depois, quando o rio da minha vida foi rumando ao encontro com esse grande mar, eu passei a conhecer, um pouquinho a cada dia, seus ritos, suas tradições, seus ensinamentos. Cada dia que passa, eu vejo que se abrem várias novas caixas de segredos e saberes. Acho que não termina nunca. O Candomblé é um sacerdócio e, mesmo que o seu adepto nunca se torne ou nunca receba um título sacerdotal, ele inscreve um percurso sacerdotal, segue toda a vida aprendendo e, em algum momento se torna, também, um transmissor de conhecimento. É um culto à troca, ao intercâmbio, onde o maior valor, a maior moeda, é o aprendizado.

No momento em que eu decidi levar adiante a minha iniciação, uma escolha que já havia feito antes mesmo do meu nascimento, lá no Orun, eu me entreguei de cabeça e entreguei a minha cabeça ao meu Orixá e à minha mãe de santo e não pairava nenhuma dúvida quanto a estar no caminho corretíssimo. Quando nasci para Xangô e ele nasceu em mim, confirmei essa certeza, certeza que se mantém até hoje. Foram meses de restrições e cuidados, gastos, tempo, abdicações. Mas se me perguntarem, direi que faria de novo e de novo e de novo.

E o que eu procurava com a iniciação? A primeira coisa que buscava era esse encontro com a parte que faltava, esse brilho de Xangô dentro do meu peito, essa onda de calor e energia percorrendo cada milímetro do meu corpo e me reconectando a um DNA ancestral, à minha ancestralidade. Sentir-me mais vivo ao acordar a minha ancestralidade em meu corpo.

No aspecto psicológico, encontrar-me com Xangô dentro de mim também trouxe um bálsamo para a minha sensação de orfandade, de órfão de genitor vivo, de ausência de pai, de quase uma vida inteira de rejeição e violência. Ter Xangô como pai faz com que eu não precise ter um pai carnal. Ter Xangô como pai também traz uma brasa, um calor de amor igualzinho ao amor que emanava do meu avô Armando, meu único pai carnal na Terra. Um homem que me amou desde quando eu morava na barriga de sua filha até o dia em que retornou à massa primordial. Um homem de verdade, como meu Pai Xangô.

Ser do Candomblé, ser “do santo”, não se resume apenas a uma religião ou culto. Ser de Candomblé imprime um modo de viver e de enxergar a vida, uma forma específica de ver o mundo. Isso não me torna melhor do que ninguém. Sou melhor  para mim mesmo. Através da iniciação eu pude revisitar meus medos, meus desejos, renovar minha fé, rever minhas escolhas e melhorá-las. Acho que escolho melhor quase tudo em minha vida porque sinto ter ampliado meu campo de visão, junto com a minha sensibilidade, como se esse meu Pai colocasse grande holofotes a minha frente, tornando mais claro o meu caminhar.

Não enriqueci materialmente, mas o caminho da prosperidade material se abriu para mim, porque minhas escolhas estão mais alinhadas com meus desejos, com meus sentimentos. Xangô não permite que nada me falte, mas sempre com trabalho e luta.

Encontrei-me emocionalmente, hoje, muito mais consonante com o que eu desejava para minha vida. É claro que isso se deve, numa parte, ao meu amadurecimento emocional, mas eu não deixo de pensar que Xangô abriu as portas para que me se sentisse livre para fazer minhas novas escolhas.

Eu poderia passar horas, dias, falando das benesses de Xangô e dos demais Orixás em minha vida, porque é realmente uma lista interminável. Mas também há desafios. Pelos olhos do Rei eu enxerguei as injustiças, as traições, as mentiras, as máscaras. Muitas decepções com pessoas queridas e amadas. Xangô não me causou o sofrimento; ele apenas abriu meus olhos mais cedo, porque essas decepções viriam, em algum tempo. Com algumas dessas pessoas eu pude reescrever a forma de me relacionar e reconstruir relações mais verdadeiras. Outras, infelizmente, morreram em vida para mim com a queda de suas máscaras. O mais importante nisso tudo é que Xangô estava comigo, ajudando-me a suportar esses dissabores, e pude ser mais forte para suportar as dores de certos rompimentos. Assim como a justiça, o machado de meu pai tem duas faces e minhas imperfeições e deslizes também foram desvelados, para que eu tivesse, como tive, a chance de aprender e me redimir.

Sigo a vida de cabeça erguida, celebrando minhas vitórias, refletindo sobre perdas e descaminhos. Entre erros e acertos, tenho vivido, olhando a vida através das lentes mágicas do Candomblé, desejando sempre clareza e discernimento. Eu que já releguei minha fé no passado, mantenho hoje uma fé inabalável nos Orixás. Nada que aconteça tirará de mim a confiança neles, aconteça o que acontecer.

Enquanto escrevia, começava a reclamar sobre o “material humano” dentro do Candomblé e quase escorreguei reclamando da perversidade das pessoas dentro da religião e no mundo. Apaguei tudo, porque refleti e concluí que não podemos generalizar a humanidade pela virulência de algumas pessoas. A maldade está no coração e na mente suja delas e, como um feitiço, corre-se o risco de materializar e alastrar essa maldade quando a generalizo para a humanidade, tornando-a ainda mais doente. E não precisamos disso, nem eu ou o mundo.

Precisamos de boas palavras, bons pensamentos. Precisamos tentar buscar a paz. Já faz algum tempo que tenho deixado de seguir pessoas em redes sociais cujos pensamentos, comentários e venenos não contribuem em nada para o meu bem viver. Deixar de seguir é a ferramenta diplomática para deixarmos de lado as ideias tóxicas de pessoas que não podemos excluir de nossas vidas num dado momento. Infelizmente, somos contaminados com a ideia da fofoca, sob as vestes da lealdade. Eu nasci e cresci num meio familiar de muita fofoca e aprendi a gostar dela. Mas Xangô tem me ensinado que a fofoca atrai energia ruim para nossas vidas e age como o tal feitiço que falei anteriormente. Quando espalhamos a fofoca, espelhamos desgraça.

Todos os dias eu me esforço para deixar de lado esse material contaminado da fofoca. Nem sempre sou vitorioso, sou muitas vezes derrotado por mim mesmo, mas sigo tentando. Ao fazermos isso, no Candomblé ou fora dele, acabamos nos deparando com um vazio, uma sensação de não pertencimento, porque a energia da fofoca que atrela as pessoas são nós disfarçados de laços, que vão pouco a pouco sufocando as boas vibrações. 
Quem me conhece, sabe como eu penso. Quem conhece verdadeiramente meu coração, é capaz de compreender minhas atitudes. Quem sabe da minha história, quem conhece o “mar de fogo” que atravessei para chegar até aqui, livre e são, senhor das minhas escolhas, pode ser capaz, se desejar, de compreender os meus passos. Aos 44 anos de vida, caio cada vez menos na fábula da expectativa. Apenas sigo em frente, com o amparo dos Orixás e com clareza na mente. Xangô ratificou em mim o desejo de ser livre e independente. E é a ele, ao seu fogo permanente que aquece a minha jornada, que dedico esse texto.

Te amo, Pai Xangô.