Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Monday, June 25, 2018

O EREMITA E SUAS EPIFANIAS



O Caboclo Sete Flechas foi a primeira entidade da Umbanda com quem me consultei. Há quase vinte anos, naquela casa estranha da Dona Jamile, a primeira mãe-de-santo que conheci. Com suas roupas brancas meio esfarrapadas, feitas com rendas sintéticas, usando aquele turbante estranho, “meio” árabe, ela dava passagem ao Caboclo Sete Flechas, com sua linguagem torta, seu palavreado que não era indígena, não era africano, nem português. Era, talvez, um tipo de “umbandês” que muitas vezes necessita de intérpretes. 

“Quando ele vem, lá do Oriente, ele vem com ordens de Oxalá, sua missão é muito nobre, espalhar a caridade e a seus filhos ajudar. Eu saravo Papai Xangô, Kaô, eu saravo Papai Oxalá, eu saravo Seu Sete Flechas ele é o nosso rei e o chefe desse kazuá”. 

Assim ele chegou naquela noite de sexta-feira. A filha de Dona Jamile fez a preleção do evangelho (que era a bíblia, na verdade) e, de repente, Sete Flechas estalava os dedos, para que ela parasse de ler. Lá estava a lição da noite, a sabedoria revelada através da bíblia, por um caboclo da Umbanda que usava turbante. 

E lá aprendi, pela primeira vez, a saudar uma entidade, batendo os punhos com os dele. Sete Flechas me disse que eu havia sido um eremita em várias vidas e que, nessas várias, eu largava a missão de curador e saía andando pelo mundo, procurando algo a mais, algo diferente. Até hoje não sei como isso acontece, mas aconteceu aquele dia: o caboclo leu a minha alma. E-r-e-m-i-ta. Era assim que eu me sentia. Secretamente, era assim que eu me denominava. Era desse modo que eu me via. Sem parada. Sem casa. Sem rumo. E ele disse que, por ter largado tantas vezes a missão de curador que eu passava por tantas dificuldades naquele momento, para terminar meus estudos. Mesmo que fosse metáfora ou fantasia, essa explicação serviu como um bálsamo para aquele peso que eu sentia. Ele me ofereceu uma explicação para a minha infelicidade. 

Sete Flechas terminava sempre a consulta perguntando: “Que quere yo, fio meu?”, que queria dizer “O que mais você quer de mim, meu filho?” e eu sempre respondia que não queria mais nada, e só queria agradecer. E ele partiu, dizendo que ia me ajudar. De fato, me ajudou muito. Hoje estou aqui, mais de vinte anos depois, vivo, formado, mestre, doutor, professor, muitas páginas de currículo, muitos diplomas. Mais que isso: sinto-me cada dia mais feliz e mais realizado. Mas isso não significa que não me sinta insatisfeito. Parece que essa insatisfação não acaba nunca. Não pensem que a minha insatisfação é de ganância, cobiça, esse afã tão comum entre colegas de profissão, essa avidez por acumular riquezas. Nada disso. É minha alma que permanece inquieta mesmo. 

Não é à toa que, ao concluir o mestrado, queria colocar na tese uma citação do Nietsche que não fosse pessimista. E eu encontrei: 

“Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, para atravessar o rio da vida - ninguém, exceto tu, só tu. Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar.Onde leva? Não perguntes, segue-o!”

Também ao concluir o texto do meu doutorado, uma música da aula de religião do meu tempo de ginásio, chamada “Caminheiro” não saía da minha cabeça: 

“Perdido, confuso, vazio, sozinho na estrada, tentando encontrar um caminho que seja o meu, não importa se é duro, terei que buscar. Caminheiro, você sabe, não existe caminho. Passo a passo, pouco a pouco e o caminho se faz.” 

Sou eremita mesmo. Há uma solidão no meu caminhar, há uma necessidade de continuar sempre andando, que jamais se esgota. A citação do filósofo, a música da aula de religião, as palavras do caboclo. Tudo se traduz numa necessidade de caminhar em busca de algo que eu não sei – ou não sabia - exatamente o que é. Até mesmo outras frases e canções que falem desse caminhar incessante me prendem, me capturam. Sou pego pelo arquétipo do eremita, do andarilho solitário. 

I still haven’t found what I’m looking for. Eu ainda não encontrei o que estou procurando. Cantam Cher ou Bono para mim. 

Hoje, durante uma conversa com um amigo, essas memórias vieram à tona. Conversando sobre o Candomblé, sobre essa minha caminhada pela espiritualidade, ele “acordou” a minha memória. Ele chamou a minha atenção para o fato de que as minhas necessidades de busca, de curiosidade, de ímpetos, são lampejos, folguedos e explosões da minha memória ancestral. Depois de nossa conversa, fiz uma reflexão sobre essa longa caminhada nessa vida terrena. Brinquei, meio que falando sério, que devo ter saído da África muitas encarnações atrás, talvez arrancado, talvez fugido. Andei por tantos caminhos, embranqueci, diluí meu sangue negro por diversas vidas e trilhas. E de repente, eu me deparo com as religiões afro-brasileiras. Eu me lembro como se fosse hoje o primeiro dia que ouvi o som do atabaque no terreiro de Dona Jamile. Sem nenhum medo e com uma sensação de familiaridade inexplicável. Naquele momento eu pude entender tudo, ou quase tudo. Lembro de dizer para mim mesmo: “é aqui que eu quero ficar”. Esse “aqui” que não era aquele lugar, mas aquele lugar dentro de mim onde o som dos atabaques ecoava a minha própria alma. 

Agora, emocionado enquanto transformo esses pensamentos em frases, sou capaz de enxergar, de me sentir acordado, como Paulo dizendo aos Coríntios: “estou acordado e todos dormem”. Estou acordado, estou vivo, estou são. É no Candomblé que me reconecto a minha ancestralidade, é pisando no chão de um terreiro, descalço, ao som dos atabaques, que ativo essa memória e me sinto vivo, eterno, imortal. Eterno e imortal como alma. Eterno e imortal como as memórias de todas as vidas vividas, minhas e de meus ancestrais. É “virado” em meu Orixá, que refaço os caminhos dessa ancestralidade, que reavivo cada sensação já vivida, guardada nesse pequeno cofre de memórias eternas. 

Eu ainda não sei se eu me encontrei. Eu nem sei se esse encontro é definitivo ou se devo continuar andando pelo mundo, encontrando coisas e pessoas que reativam essa memória, que acordam minha pele, meu corpo, minhas células para a eternidade de uma vida sem vim, uma vida em espírito. 

Hoje, numa madrugada de segunda para terça, na transição dos domínios de Exu e de Ogun, orixás que regulam os nossos caminhos, das encruzilhadas às estradas, escrevo, desabafo, me tranquilizo ao poder compreender que tudo o que sinto e vivo é apenas caminho, caminhar, estrada, trilha. Todo esse barulho da minha alma, da minha cabeça e do meu coração é apenas o barulho dos meus passos. Não sei para onde vou, não sei exatamente como caminharei. Tenho apenas a certeza de que devo continuar, porque Xangô e Oxum me levam, porque eles sabem o que eu ainda não sei, porque não foi revelado. 

Friday, June 15, 2018

ESPELHOS, PARA QUE TÊ-LOS?




Nesses últimos dias, eu tenho pensado muito em espelhos. Cenas do passado, histórias sobre espelhos, mitos, preceitos religiosos. Até zapeando pelas fotos arquivadas em meu telefone celular, fico reparando no tanto de fotos que tenho fazendo poses, eróticas ou não, ao espelho. 
Esse deleite pelo espelho, diga-se, pela minha imagem nele refletida, tem sua razão de ser. Houve um tempo, num passado bem remoto, que eu fugia dele. Eu fugia de olhar-me ao espelho porque não gostava do que via. Primeiro por não gostar de mim, por me achar feio, por sentir-me uma cópia do meu genitor-rejeitador. Sentia raiva das pessoas que me chamavam pelo diminutivo de seu nome e sentia raiva de mim mesmo por ser uma cópia rejeitada dele. Também não me era possível gostar daquela imagem que colegas de escola e familiares caçoavam por ser gordo, por não saber andar descalço no barro ou no asfalto, por ter tetas grandes, por não ter coragem de tirar a camiseta na praia, do futebol forçado, suando de calor e dizendo que estava tudo bem. Talvez por último, por sentir medo de olhar para o espelho e enxergar-me gay. 
Da adolescência e dos espelhos, guardo arriscadas e anedóticas incursões pela sexualidade.
Lá pelos onze anos de idade, grandão que eu era, já estava apto a ficar sozinho em casa. Adorava quando minha mãe saía e podia bater sossegado as minhas punhetas, testando sensações diversas, fosse colocando pasta de dente no pinto ou sugando o pau punheteiro recém descoberto com o sugador de leite abandonado no armário do banheiro. Adorava observar como o pênis se deformava naquela bomba de vidro e nela acabava gozando, lambuzando toda aquela bomba. É engraçado como a “viadagem” mora dentro da gente, mesmo antes de sabermos que ela nos habita: anos depois, visitando sex shops nos arredores gays de Nova Iorque, me deparo com aquelas bombas de sucção peniana. 
Outras vezes me deliciava colocando roupas da minha mãe, como um maiô verde bandeira ou uma saída de banho amarela. Passava blush e batom, me divertia escondendo as bolas e pau por entre as pernas, subia no bidê e ficava dançando, diante do espelho, como uma Chacrete. Um dia, no auge da minha performance, a campainha toca. Quase despenco do bidê, saio correndo a esconder aquelas roupas e a arrancar as maquiagens. Abro a porta para minha tia e meus primos e, defensivamente, pela paranoia de ser flagrado ainda maquiado, digo que brincava de índio. Nunca soube se perceberam ou se acreditaram. 
Véspera de Santo Antonio na mesma época. Preparávamos quitutes para a festa junina na cozinha do sobrado. Era uma época que eu era super afeito aos livros de simpatias, e resolvi seguir uma delas. Perto da meia-noite, subo correndo ao quarto da minha irmã, que tinha um espelho grande na porta do armário. Quarto escuro, vela na mão e de frente para o espelho: assim era a simpatia para saber com quem iria me casar. De repente, tudo escurece a minha volta e surge o contorno de uma pessoa no espelho. Saio correndo e chego à cozinha pálido, assustado. Anos depois, meu primeiro namorado suspeita, quando lhe conto essa história, que o que me assustou foi ver uma silhueta masculina naquele espelho. E até que faz sentido. 
Quando nos iniciamos no Candomblé, somos proibidos de olhar ao espelho por um longo período. Alguns anos se passaram e sou um pouco mais capaz de refletir sobre alguns interditos existentes na religião e penso que essa questão do espelho parece muito mais um pensamento colonizado, “emprestado” da magia e da feitiçaria medieval europeia do que realmente um preceito trazido da África. Até porque não existiam espelhos na África. Enquanto escrevia, fiquei pensando sobre isso e cheguei a conversar com um “mais velho” do Candomblé, que concordou com minha opinião. Não existiam espelhos, mas o Abebê que as senhoras yabás empunham em suas maravilhosas danças, era feito de metal polido, que refletia imagens. 
De todo modo, o interdito do espelho permanece ainda em muitas casas de Candomblé. Algumas pessoas me disseram que isso se deve ao fato de que os espelhos são portais místicos que podem atrair energias ruins para aquele iniciado que está muito sensível. Mas eu penso que faz mais sentido pensar que, nesse período de resguardo estamos passando, por um luto de nós mesmos, da pessoa que éramos antes de nascermos para o orixá. Olhar para o espelho pode assustar, tanto por esse antigo ser que está indo embora quanto pelo novo que ainda desconhecemos. 
Eu me lembro que, durante o período em que estava recolhido para a iniciação, da sensação de estranheza que eu tinha em não ver nunca o meu rosto. Ficava imaginando como estariam minhas feições, minha cabeça raspada, eu com a cara lisa após tanto tempo usando barba. Certa noite me assustei ao deparar com um reflexo deformado de mim mesmo numa face metálica lisa do adereço de um orixá. E lembro quando me olhei ao espelho pela primeira vez após esse período. Eu tinha a mesma cara de antes, mas me enxergava modificado. Modificado de um jeito tal que sentia que era a primeira vez que me sentia inteiro. Eu uno, com meu orixá, com minha devoção, liso, cara limpa, sem pelos no corpo, roupas simples, dormindo numa esteira, num chão frio. Em meu pequeno diário de “bordo”, deixei essa pergunta que pairava em minha mente: “Quem serei eu após essa feitura?”
A imagem do espelho me fez pensar também na música “Índios”, do Legião Urbana: “nos deram espelhos, vivemos num mundo doente”. E fiquei pensando que, se não existiam espelhos na África e se os espelhos foram dados às orixás como símbolos da vaidade feminina, mesmo que possuam a conotação símbólica de olharmos para nós mesmos, será que precisamos mesmo deles? Sim, precisamos. Seja ele feito de lâminas de plástico dos supermercados populares, do metal polido das yabás, do reflexo produzido nas águas de mares e rios ou do cristal europeu mais caro e elegante, o espelho vai conter sempre essa dualidade, a possibilidade de enxergar-se e a possibilidade admirar-se, exageradamente ou não. 
Narciso acha feio o que não é espelho, disse Caetano. Narciso, extasiado com a própria beleza, mergulha nas profundezas do rio em busca de sua própria imagem e se afoga. A narcísica selfie, o espelho contemporâneo, aprisiona a quase todos. Fazer uma selfie, produzir-se em roupas e locais para mostrar-se a si e para si mesmo, mas também aos outros o quanto se é lindo e admirável, um espelho que aprisiona almas. 
Devo confessar que eu me perdi nesse labirinto de imagens que comecei a trilhar. Escrevendo, pensando, refletindo sobre o espelho, me distanciei de uma ideia inicial da qual nem me lembro mais, mas que foi o ponto de partida para traçar essas linhas. Talvez seja para poder lembrar sempre que os espelhos não são fidedignos e podem ser traiçoeiros. Espelhos de lojas, espelhos de cabeleireiros, são feitos deformados para tornarem ou fazerem com que as pessoas se sintam mais bonitas. Espelhos são usados em ambientes públicos e privados para criar a ilusão de ambientes maiores. Espelhos em motéis podem esconder câmeras de segurança e pode ter alguém lá, assistindo a sua performance erótica. 
Verdade ou vaidade? Nunca saberemos.

O SAGRADO EM MIM



Eu sempre senti necessidade de buscar e vivenciar as coisas espirituais. Na infância, após a passagem de minha avó Izolina, eu me lembro de ficar tempos enormes fitando aquela enorme estrela no céu, imaginando que poderes infinitos vinham de lá e que eu era abastecido de suas energias. Era lá, naquela estrela distante, que morava um tipo de Deus que via tudo, sabia de tudo e atendia nossos pedidos. Em meu coração de menino saudoso daquela avó recém partida, sentia que eu a encontrava lá. 

Meu avô Armando, enquanto morou comigo, possuía o hábito de ler o evangelho e rezar todas as noites, com a foto de minha avó ao lado de seus livros. Eu rezava com ele e me sentia extremamente seguro e protegido ao lado dele. Era como se ele próprio, com sua barba branca e seu jeito paciente, fosse meu anjo, meu deus. 

Mesmo minha mãe, com seu equivocado catolicismo recheado de hipocrisias e incoerências, tentou, devo reconhecer, me aproximar de Deus. Comprava os livrinhos católicos com as orações para a noite, me levava na missa aos domingos e quase conseguiu me conduzir para a tal da crisma, mas eu fugi a tempo de cometer tal desperdício. Da fé católica eu preservo o amor ao Frei Orestes que me batizou e uma enorme  admiração pelos monges beneditinos. Ainda frequento igrejas e as vejo como um templo sagrado, bastante propício a rezar quando necessário. Na minha conexão com o Candomblé, aprendi a conhecer e a admirar os segredos das tradições africanas escondidos nas igrejas, sobretudo na Bahia. 

Minha tia Lilian, que também é minha madrinha, soube realmente exercer a função que é delegada a madrinhas e padrinhos: ela cuidou de mim, em vários aspectos, mas principalmente da minha espiritualidade. Ela, em silêncio e discretamente, nutriu em mim o gosto pelas coisas espirituais e por muitos anos me ensinou e me deu acesso a diversos ensinamentos, me presenteando com livros e fitas cassete de assuntos esotéricos. A cada tarô que minha mãe obrigava a me desfazer, tia Lilian comprava um novo para mim. 

Num dado momento do meu processo de iniciação, pude acessar uma memória ancestral e me reconectar ao meu bisavô Luís e verificar que meu elo de ligação com o Candomblé e com as raízes africanas vinha pelas suas mãos espirituais. Era curioso como minha mãe se referia a ele como “macumbeiro” e “uma pessoa má”, alegando que ele teria feito magia para que meus avós não se casassem. 

Quando meu avô Armando faleceu, me afastei de sua esposa, seus filhos e netos. Anos mais tarde, pude refletir o quanto ela gostava de mim, o quanto me acolheu como um verdadeiro neto e o quanto essas pessoas fizeram parte da minha vida de uma forma boa, afetiva. Resolvi encontra-los e fui recebido tão afetuosamente que me arrependi por ter me distanciado um dia. Mas a surpresa maior foi perceber que muitos deles possuíam ligações com os cultos afro-brasileiros e isso me trouxe uma sensação de pertença muito maior do que eu possuía com outras pessoas da minha família. 


Ser gay e “macumbeiro” sempre pareceram coisas estranhas, caminhos desviantes de uma rota familiar. Por um momento pareciam “escolhas” para me diferenciar dessa origem familiar com a qual eu não me identificava. Mas a coisa é bem mais profunda. Porque do mesmo modo que ser gay não é uma escolha - porque a escolha não consiste em “ser”, mas assumir-se ou não, viver desejos e experiências em consonância com a sua natureza ou não -  vejo da mesma forma a presença do Candomblé em minha vida: eu não escolhi e nem fui escolhido, porque esse ser escolhido também deixa esse rastro colonizado de ser “eleito”, à moda tão atual dos cristãos. Tratam-se de encontros. Encontros com a nossa verdadeira natureza e destino. 

Após a minha iniciação no Candomblé, meus pensamentos se voltaram muito para o conhecimento da minha ancestralidade e essa sensação de “outsider” se dissipou. Cada pegada “afro” que encontro pelo caminho vai constituindo um mapa da minha espiritualidade, da minha conexão com o meu passado primordial e vai edificando células de completude da minha alma. Eu queria muito poder encontrar, no passo dessas pegadas, o ancestral negro que foi deixando essa herança espiritual através de gerações, chegando até mim e que posteriormente será continuada nos que estão chegando depois de mim. Minha mãe de santo, em nosso primeiro encontro para o jogo de búzios, disse: “Tem um negão aí dentro”, e eu sabia que era verdade. Sim, é verdade que existe esse negão, meu pai, meu rei Xangô que me habita e se expande a tal ponto que me transformo nele. Eu viro no “santo”. Eu viro no orixá. Não só no transe, mas na vida, eu viro esse orixá que mora dentro de mim. Ele contém, abarca, mantém a força, a potência dessa ancestralidade. Ele é um DNA vivo. E eu não sou apenas seu instrumento. Eu sou a continuidade, o continuum, a perpetuação dessa corrente de ancestralidade, desse fio interminável de seres e energias. 

Essa grandiosa pertença, como já disse em algum texto anterior, não me torna melhor que ninguém, mais evoluído, mais sábio para o outro. Ela me faz ter força para seguir o meu caminho e faz com que eu me sinta melhor, comigo mesmo, mais inteiro, mais completo. Eu acumulo conhecimentos, como os seixos rolados que catava em rios e ruas de terra na infância, como as conchas do mar que encontrei na areia. Talvez eu desenvolva e acumule sabedoria através desses conhecimentos e experiências. Talvez cada dia que passe eu ame mais a vida e me sinta mais fortalecido para driblar os obstáculos. Talvez todo esse caminhar possa servir para ajudar algumas pessoas, ensinando passos e descaminhos por onde eu já tenha andado. Digo “talvez” porque é talvez mesmo. Porque tenho poucas certezas nessa vida. Cada vez menos.