“ESTAMOS DE LADOS OPOSTOS”
(Frase de minha tia, de quase oitenta anos, há alguns dias, ao telefone, após a eleição democrática de Luís Inácio Lula da Silva.)
Eu nasci em uma família de classe média da zona norte de São Paulo. Meu avô se aposentou como um executivo de uma multinacional, mas não enriqueceu, porque preferiu fazer muitos filhos em duas famílias paralelas. Opa. Minto. Três. Tem essa terceira família que foi vista, mas jamais revelada.
Ele foi acusado de um roubo quando era operário de uma fábrica e ficou preso por 2 anos e foi torturado na época do Estado Novo. Ele não falava sobre isso, mas tinha ódio de polícia.
Ele faleceu em 1999 de um câncer de pulmão. Eu não me lembro de suas inclinações políticas, não consigo ouvir um nome de algum político saindo de sua boca. Então eu não sei imaginar o que ele pensaria desse momento político. Na minha ilusão de garoto novo que amava seu avô como um pai, eu prefiro acreditar que ele, como um homem ponderado e justo que era, não destilaria ódio e sua sensatez o faria votar em Lula, pensando que esse seria o melhor caminho para assegurar um Estado Democrático de Direito. Não um qualquer, mas o nosso. Brasil.
Meu avô me deu carinho, me amou como um filho. Quando minha avó faleceu, dormíamos eu e ele no mesmo quarto, cada um em sua cama, separadas por um móvel de cabeceira. Todas as noites rezávamos e ele se emocionava quando lembrava da minha avó e às vezes chorava. Ele não era um homem de demonstrar grandes afetos, mas a sua presença, seu cuidado, seus ensinamentos, foram fundamentais para que eu sobrevivesse. Ele me ensinou a fazer barba, engraxar sapatos, consertar coisas, furar paredes. Ele era um homem justo que colocava pessoas em situação de rua para sentar à sua mesa para comer.
Sua inteligência o levou a se tornar um homem de negócios, o tal do “bem sucedido”, sempre perfumado e bem vestido, Rolex no pulso, carro novo, motorista particular, inúmeras viagens para a Europa. Mas, de certo modo, esse avô estava só. Ele era diferente. Talvez tenha sido por isso que, quando ele se aposentou, nunca mais quis fazer nada de trabalho, doou todos os ternos, vendeu o Rolex e foi viver com sua “outra” família, numa casinha simples no subúrbio.
Eu comecei um texto pensando em discorrer sobre meus parentes e sobre a falta de visão política deles. Mas daí eu percebi que não há nada que eu possa fazer a esse respeito. E então veio à mente a história do meu avô, tentando refletir sobre o que “deu errado” a partir do meu avô até seus filhos e netos ou que talvez seja tudo uma ilusão do meu coração de menino e esse avô idealizado talvez nunca tenha existido de fato. Eu acho que jamais saberei.
Então eu me pego pensando sobre mim mesmo e me pergunto: porque não deu errado? Por que eu não segui essa trajetória comum, essa via “fácil” da visão turva? Em que momento da linha da vida eu passei a rejeitar esse valores conservadores, preconceituosos, por quais motivos eu não me tornei um bolsominion?
Eu costuma dizer, mesmo sem entender: “Eu caí no funil errado.” Se isso puder ser verdade, eu acredito.
Mas, voltando aos fatos, eu nasci e cresci transgressivamente. Eu nasci de uma mãe que era filha mais nova e mimada que engravidou aos 19 anos de um homem pobre que foi obrigado a casar para “honrar” essa moça. Eu passei a minha infância sendo ofendido, agredido e ridicularizado por tios homens machistas. Bastardo, gordo, viadinho. Sim, um garoto gordo e um pouco “criança-viada” que odiava ser parecido com o pai que fazia questão em dizer que não era seu pai, mesmo que fossem um a cara do outro.
Eu passei a vida toda sendo o menino bonzinho, intelectual, inteligente, prestativo, educado e subserviente pelo propósito único de me sentir amado. Ou menos banido. Mas a sensação de desencaixe era permanente. Por um tempo eu achei que a homossexualidade era o suficiente para explicar essa sensação de desencaixe. Havia sempre uma sensação de estar no lugar errado, de querer fugir, ir embora. Desde a infância eu criei e sustentei a fantasia de ser um “outro Marcelo”, rico, capaz, poderoso e que ajudava as pessoas com seu dinheiro quase infinito. Apenas uma fantasia.
O diploma de médico e todos os outros títulos que vieram em sequência, associado ao quanto somos moldados a desejar a vida de riqueza e luxo como condição intrínseca ao “ser médico”, me abasteceram por anos nesse universo de incompletude. Por anos eu representei me sentir vencedor pelo aspecto financeiro, social e profissional, mas no fundo, eu me sentia vazio e só. Mesmo em momentos de ápice do glamour, nas viagens, nos restaurantes caros., havia um momento em que tudo isso não valia nada e sobrava apenas uma enorme angústia.
Recentemente uma pessoa que conheci me disse algo assim: “quando você experimenta colocar molho na carne, você nunca mais vai querer carne sem molho e cada vez mais vai querer sofisticar o molho”. Ela disse isso como algo bom, que a busca por “coisas melhores” era infinita. Eu acho isso horrível. Minha alma justiceira tava doida para sair fazendo críticas a esse modelo outro, mas eu voltei para mim mesmo e olhei para como eu me comportava há 10 anos e percebi que eu já busquei molhos melhores. O resultado disso é sempre a insatisfação ou uma satisfação fulgaz.
O encontro e a vivência num terreiro de Candomblé me trouxeram essa transformação. Especificamente o momento da iniciação, deitado numa esteira, num quarto sem janela, eu-com-eu-mesmo, eu constatei que a gente precisava de realmente muito pouco para existir com inteireza.
E como Exu sempre tem razão, ele diz nesse provérbio yorubá: “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje”. Anos depois, meu Babalorixá diz, ao saudar Ori (minha cabeça): Xangô diz que irá te completar. Não só isso, ele vai te transbordar. Talvez você não compreenda isso hoje, mas um dia você irá entender.” Eu achei lindo o que ele disse e compreendi. E compreendi que Xangô me completa e me transborda a cada momento, a cada novo ritual, a cada dia que ele toma meu corpo para contar suas histórias míticas. E ele me transborda “trocando” os conceitos de um velho pensar, sobretudo o que não é meu de fato, isso vai deixando de ficar comigo. E ele também me transborda também e faz sobrar força, energia, vitalidade para quem estiver por perto.
Eu passei esse textão para dizer que eu votei em Lula para presidente.
E que eu votaria de novo. E de novo. E de novo.
Por uma simples razão: eu sou filho do Deus da Justiça.