Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Wednesday, February 01, 2023

Sobre Reality Shows

Eu não SIGO o tal reality show da tal emissora. Eu já assisti algumas vezes para dar uma xeretada, mas aquilo nunca me prendeu. 

Belial: “Demônio adorado pelo povo de Sidon. O inferno jamais recebeu espírito mais dissoluto, mais sórdido, mais imbuído do vício pelo próprio vício. Sua alma é hedionda” – Foto: Reprodução / Dicionário Infernal

O único período em que eu “assisti” diariamente foi quando estava na UTI. Não era um desejo, era apenas um barulho da TV que me distraía, diariamente, das 14h até a hora da madrugada que meus olhos se fechassem. Às vezes  eu tentava enxergar, sem óculos, sem poder me mexer e com a vista embaçada, o que eles falavam e faziam. Eu lembro de algumas cenas de “provas” que se configuravam para mim em cenas de tortura. 


Lembrar mesmo, eu lembro da Festa da Coca-Cola. E lembro ter chorado de sede e de desejo por esse objeto de amor, tão distante, preso numa TV pendurada no alto da parede de um quarto de UTI.


Há alguns anos, eu resolvi participar de um reality show de culinária. Estava eu, empolgado com minha quituteria, pensando em abrir restaurante e vendo minhas receitas sendo reproduzidas por um montão de gente. Eu achei que ia ser divertido passar quinze dias confinado num hotel para a gravação do tal programa. 


Eu fui ingênuo e me lasquei. 


Um colega participante, sujeito de coração bom, disse uma vez entre nós: eles não provaram a nossa comida para saber que cozinhamos bem. O que eles querem aqui é o conflito. 


E essa é a verdade.


Seja qual for o tema do reality, culinária, gente pelada, atores falidos trancafiados, o objetivo é sempre o mesmo: ganhar audiência através da incitação ao sadismo, ao conflito, a polarizações. Não há poesia, não há arte, não há verdade num  reality: só há um sádico modo de conduzir a edição do que foi dito, visto, feito, seja percebido de uma forma que gere guerra, rivalidade, divisão.  Não há nada de realidade num reality. 


A única realidade é a trágica consequência na vida de muitos e um ou dois eleitos para cada temporada. 


Eu fiquei míseros dois dias trancafiado e ganhei uma enxaqueca que perdurou mais de 24 horas, insônia e, mesmo quinze dias após a minha saída, tive sintomas de estresse pós-traumático e pesadelos com os jurados me humilhando enquanto eu usava o avental sujo que ganhei e a panela wok vagabunda da China com o nome do programa. E fiquei mais de um mês sem cozinhar, chegando a pensar que não cozinhava bem. Tenho dois amigos excelentes cozinheiros que passaram pela mesma experiência de reality e ficaram meses em crise com a sua profissão, por se acharem incapazes. 


Algum tempo depois, fui convidado para participar de um reality show de uma outra emissora. 


Eu disse para a produtora: “Minha temporada de participação em reality shows está encerrada para esta encarnação.”


E ela: “E você tem alguém pra indicar?”


E eu: “Nem meu pior inimigo”


E por que é que eu resolvi escrever sobre isso hoje? Não é de hoje que inevitavelmente vejo comentários das pessoas sobre o tal reality. Torcidas, comentários, memes e, principalmente violência. Violência nos julgamentos, nos comentários, nos ditos cancelamentos, intolerância, preconceito. Quando assistimos um filme, uma peça de teatro ou outra forma de expressão artística, há um personagem representado por um ator ou atriz que, terminada sua obra, sua filmagem, seu espetáculo, “deixa de ser” o personagem e continua sua vida. É claro que, dependendo da intensidade do personagem, o ator ou atriz pode vivenciar abalos em sua homeostase. Há também, em alguns momentos, pessoas que confundem o personagem com o ator ou atriz e faz elogios ou críticas ao encontro-lo (a) na rua. Mas são momentos, são passageiros. 


Eu não me aventurarei em conceitos profundos sobre o que é arte, mas, para mim, não há nada de arte ou artístico num reality show, mesmo que seja protagonizado por artistas. Há, em minha  opinião, pessoas que até podem trabalhar como artistas, mas são colocadas em caixotes de confinamentos e, como marionetes editáveis, são-lhe impingidos personagens, exaltando suas qualidades ou vulnerabilidades, onde até suas falas são editadas. 


Não, eu não estou defendendo ninguém. Estou apenas dizendo que as falas daquelas pessoas confinadas são distorcidas para a construção de personagens que atendam ao sadismo e à violência de seus espectadores. Não só deles, mas também de outros tipos de espectadores que possam se identificar com um ou outro personagem. Porque para cada sádico existe, pelo menos, um masoquista. MAs é a violência - violentar e ser violentado, agredir, ser agredido, se vingar e todos esses sentimentos que são despertados no espectador, que movimentam a bilionária máquina dos reality shows. 


Assista quem quiser assistir. Encare como quiser encarar.