EVANESCER
Evanescência é um substantivo feminino.
“Efemeridade; característica do que é evanescente, fugaz ou efêmero. Qualidade do que tende a se dissipar; que se altera ou se transforma.”
Nossa amizade tem 12 anos, 4 meses e algumas vidas passadas.
Eu sempre chamei você de Pilar, seu sobrenome. Porque esse nome representava, pra mim, a sua força. Embora pareça fálico. Mas eu não conheci ninguém mais tão fálica que você, mesmo sendo tão contra-fálica.
E mesmo antes de você ser internada, quando os médicos disseram que não havia mais nada, alguns meses antes você mjá iniciava seu processo de evanescência. Seu corpo foi se dissolvendo, pouco a pouco, na estrada do tempo.
Eu sei que você sentiu dores físicas e psíquicas, mas esse pilar encrustrado na sua alma de mulher selvagem fizeram você agarrar cada fio de vida com tanta força que às vezes parecia que nada estava acontecendo.
Dois meses atrás a gente se encontrou e você já estava “evanescida”. Muito magra, muito fraca, muito cansada, muito ocre. Mas a alma furacão da Pilar continuava cheia de vida e planos.
Mas há pouco mais de dez dias, quando soube que você estava internada, meu coração apertou por medo de que não desse tempo de te encontrar vida-em-seu-corpo.
Você me disse, como seu fosse uma ordem: “Está na hora do milagre”.
Mas o que mais me angustiou foi ler:
“Eu tô precisando de você.”
Eu que sou amedrontado pela morte, me vi num beco sem saída. Mas daí me atormentou o risco de não lhe abraçar mais carnalmente; e daí me veio a lembrança de que foi você, Pilar, que me tirou na cama no hospital e me ajudou a ir para meu primeiro banho de chuveiro após o meu coma.
Eu lhe devia isso.
E na quarta passada nos vimos, choramos, nos abraçamos, demos risadas, dormimos abraçados, com a Melzinha entre nós. Ela, sua eterna predileta, também evanescendo, respirava cansada, que nem você.
E eu cheguei a te fazer rituais de limpeza, cheguei a te dar um banho místico, porque o meu desejo era que você vivesse bem por mais um tempo e sofresse pouco. Mas a gente não pode ter tudo. Depois a Vovó Maria Conga veio e lhe benzeu, tirou toxinas do seu corpo. Sem (eu) saber, preparamos sua alma para que, suavemente, deixasse seu corpo descansar.
Uma vez você me pediu que se você estivesse doente e sofrendo, que eu lhe matasse e jogasse no mato para ser comida dos animais selvagens. Você sabe que eu não conseguiria fazer isso e o melhor presente que Orixá pode lhe dar foi lhe garantir o menor sofrimento possível e a evanescência.
E eu ainda lhe presenteei com uma terapia chinesa, queria lhe dar o tal milagre.
“Mano, você tá me dando tantos presentes!”
“Eu sei que você faria o mesmo”, respondi.
E eu cheguei a encomendar um mapa astral, porque eu queria saber que os planetas lhe ajudariam. E o astrólogo, um grande amigo, me disse, quase sussurrando, que você não demoraria muito a partir, por causa dos tais trânsitos de marte…
Talvez, como ele disse, se você trabalhar as raivas… não deu tempo. Mas quem seria você sem suas raivas? A raiva sempre foi o seu grande pilar, Pilar.
E então os dias foram passando e você foi indo embora do seu corpo, enquanto ele dissolvia. E, já no hospital, os médicos lhe ajudaram com a morfina, para que você deixasse seu corpo de fininho, sem perceber.
Eu falava pra quem perguntava de você:
“Ela está evanescendo”
E numa quarta-feira de noite, Iansan chegou, pegou você em espírito pelo braço e te levou para passear com o vento. E enquanto você partia, eu falava com uma amiga sobre você, saboreando um vinho tinto. Contei algumas das suas peripécias, falei das suas teimosias, exaltei a sua garra e a sua obstinação em estar viva.
E seu corpo evanesceu, “sem correr, bem devagar..”, caetaneando.
As filhas de Oyá evanescem e viram vento. E você, sua alma viva, livre e selvagem, estará sempre aqui, ali, em todo lugar.
Boa viagem, Pilar.
(Minha amiga Andrea Pilar Marranquiel evanesceu hoje, 27 de novembro de 2024, depois de lutar alguns anos, não contra o câncer, mas pela vida)