Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Saturday, October 03, 2009

OS BAÚS DOS NOSSOS TESOUROS








“Eu vi um menino correndo
, eu vi o tempo brincando ao redor
 do caminho daquele menino,
eu pus os meus pés no riacho.
E acho que nunca os tirei.
O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei.” (Força Estranha, Roberto Carlos)

“ (…) Quando eu era menino, falava como um menino, sentia como menino.Quando cheguei a ser homem, desisti das coisas próprias de menino. Porque agora vemos como um espelho, obscuramente, e então veremos face a face; agora conheço em parte, e então conhecerei como sou conhecido. (…)” (Epístola de Paulo aos Coríntios)

“Se você pretende saber quem eu sou / Eu posso lhe dizer / Entre no meu carro e na estrada de Santos / Você vai me conhecer / Você vai pensar que eu nao gosto nem mesmo de mim /E que na minha idade / Só a velocidade anda junto a mim/ Só ando sozinho / E no meu caminho / O tempo é cada vez menor/ Preciso de ajuda, por favor, me acuda / Eu vivo muito só / Se acaso numa curva eu me lembro do meu mundo / Eu piso mais fundo,corrijo num segundo / Não posso parar.” (As curvas da estrada de Santos,Roberto Carlos)

Eu não sei se era bom ser menino, ser criança. Mas tenho algumas boas passagens em minha mente que talvez tenham eternizado uma sensação de que a infância é ou pode ser potencialmente boa. Eu me lembro quando viajava pela BR116 com meus avós. Era muito pequeno, mas ainda me vejo em pé, no meio deles, segurando a orelha de cada um, como se tivesse preso a fios de vida. Também me recordo do dia em que consegui andar de bicicleta sem rodinhas, pela primeira vez. Era uma Caloi azul-marinho. Foi em Peruíbe, lá pelo ano de 1979. Eu ainda sinto no peito aquela taquicardia boa, aquele vento na cara, aquela sensação de liberdade quando eu corria pela rua da casa de praia do meu avô, deixando todos para trás, como se não fosse voltar nunca mais.

Lá pelos meus seis ou sete anos, pedia para minha mãe que me desse uma irmãzinha. Quando minha mãe anunciou que estava grávida, não só fiquei cheio de felicidade como tinha a certeza que minha irmãzinha estava chegando. E era por isso que já tinha o nome dela guardado: “Luciana”, que quer dizer “Luz”. Acho que era isso que eu esperava: alguém que trouxesse luz para minha vida. Acho que era por isso que a amava tanto, era por isso que cantava “Como é grande meu amor por você” para ela dormir.

Como nem só de passado se vive, mais contemporaneamente, fui buscar meu afilhado Pedrinho no dia do seu aniversário para passear. Quem já me ouviu falar dele sabe o quanto o amo, e o quanto senti esse amor quando o vi pela primeira vez na maternidade. E meu coração derreteu quando ele veio ao meu encontro, pulou nos meus braços e encostou a cabeça no meu ombro, como se encontrasse acalanto, aconchego, amor.

Apesar da minha infância não ter sido integralmente boa, eu guardo essas memórias numa caixinha dourada do meu coração e, vez ou outra, em dias que as nuvens sombrias da angústia repousam sobre minha cabeça, abro essa caixinha para espantar a escuridão e, quando mesmo assim ela não se dissipa, escondo-me dentro dela e fecho a porta. Fico lá eu, sozinho, no meio de todo aquele brilho, como se fosse um útero sagrado.

Hoje, por conta da existência nos meus sobrinhos, Pedro e Felipe, acredito que se pode ter uma infância boa e faço de tudo para contribuir com as moedas de ouro na caixinha deles.

É engraçado como escrever, recontando as memórias tem poder sobre nossa alma. Eu estava disposto a escrever sobre a tristeza, sobre o vazio e a angústia e sobre os sem-teto, a mendicância, a miséria. Eu queria falar sobre as cores negras do mundo e sobre as nuvens rodeando minha cabeça. Mas bastou eu abrir a minha caixinha, e sentir de novo o vento batendo no meu rosto, que as nuvens se dissiparam e, de repente, vejo, nessa madrugada insone, o sol da luz da caixinha se abrindo em minha vida.

Estou aqui em Manhattan, cheio de coisas estranhas acontecendo. Ontem andava de metrô com meu amigo Marcelo e lembrei da origem do meu nome. “Martelo”, ele disse. “Vindo de Marte”, retruquei. Noves fora, um martelo vindo de marte é um marciano teimoso. Um dia me disseram que eu tinha vindo de outro planeta e que, na outra vida, havia abandonado o ofício de curador para sair andando pelo mundo, feito um eremita. É engraçado como sempre tive essa sensação “estrangeira” e como fez sentido quando ouvi tudo isso da boca de um espírito.

Sempre gostei de caixinhas. Tenho várias delas, mas a mais bonita de todas é uma chinesa, de marchetaria, que herdei de uma tia. E já faz alguns anos, guardo moedas de todos os lugares por onde passo, dentro dela. E toda vez que venho a Nova Iorque, saio catando moedas de um centavo que encontro pela rua. Tenho paixão por moedas. Não como itens de coleção, nem pelo dinheiro que elas valem. Gosto de tê-las na mão, gosto de contá-las e perder a conta várias vezes. Gosto do barulho que elas fazem no bolso da calça. Cheguei aqui há três dias, e já estava achando estranho não encontrar moedas pela rua. Ontem à noite, encontrei umazinha, no chão do bar onde fomos ver o show da Emilie Simon. Interpretei como um sinal de sorte. Verdade ou não, fiquei muito feliz ao vê-la tão de perto e poder falar com ela no final.

Hoje estava andando pela rua, numa parte feia e suja da cidade. Atravessei com farol aberto, na frente dos meus amigos, chegando ao outro lado da rua. Pensei: “nossa, não estou achando nenhuma moeda ultimamente”. Bati o olho numa coluna de ferro do viaduto e encontrei, num buraquinho, umas vinte moedas de um centavo. Olhei para os dois lados, como quem atravessa a rua e enchi a mão com as moedas. Saí feliz e contente com o presente que recebi da vida.

Outro dia falei do meu pai, Xangô. Talvez seja ele que tenha me dado o martelo... Mas ao falar de caixinhas, riquezas, moedas e amor, sinto que devo falar de minha mãe, Oxum. Lembro-me que, já faz alguns anos, fui a uma “saída de santo” num terreiro de candomblé. Não conhecia nada daquilo, mas fiquei maravilhado ao ver aquela senhora, vestida com panos dourados luxuosos, rodando com uma gamela na cabeça. E após a dança, “Dona” Oxum se sentou num banco de madeira e se pôs a servir de vatapá os seus súditos. Ajoelhei-me diante dela e pedi a bênção, como foi recomendado. E ela tomou minhas mãos, beijando-as, serviu-me do vatapá e me presenteou com um ovo cozido. Todos os frequentadores do centro ficaram surpresos e me saudaram por ter recebido esse presente da Deusa. Na época, entendi apenas como um sinal de sorte. Era como se ela me dissesse que aquela fase difícil iria passar. E, de fato, passou. Passado algum tempo, achei que ela quis dizer que o amor estava pra chegar. Não apenas o amor carnal, mas o amor próprio, o resgate da minha própria vida através desse amor. E, certamente, tudo isso aconteceu. Depois concluí, como ouvi de muitos, que ela dava os ovos aos seus filhos. Na época eu não a reconheci como minha mãe, mas ela me reconheceu como filho. No final, acho que esse ovo teve múltiplos significados. Acho que ele é igualzinho à minha caixinha, que guarda uma moeda-gema em seu interior.

Acho que somos “ovos-caixinhas” e podemos nos sentir duros, cascudos e até sujos por fora, mas somos, no fundo, ouro puro de amor por dentro.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Adorei, meu amigo enchedor de tesouros de caixinhas!!!
Alexa!

7:18 AM PDT  

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