VOLVER (OU A LENDA DAS CAIXAS-PRETAS)

Semana passada fui ver o novo filme de Pedro Almodóvar, chamado “Volver”. Não, não sou comentarista, nem crítico de cinema. Falo dele apenas porque, além de belíssimo, trata das pendências do passado que muitas vezes guardamos em caixas-pretas, bem pretas, fazendo um sacrifício enorme para ocultá-las e que um dia se abrem.
Por isso resolvi colocar a letra de uma música do filme,com o mesmo nome, cantada por Estrella Morente:
“Yo adivino el parpadeo
de las luces que a lo lejos van
marcando mi retorno
son las mismas que alumbraron
con sus palidos reflejos
hondas horas de dolor
y aunque no quize el regreso
siempre se vuelve a su primer amor
la quieta calle, donde el eco dijo
tuya es mi vida, tuyo es mi querer
bajo el burlon, mirar de las estrellas
que con indiferencia, hoy me ven volver
Volver con la frente marchita
las nieves del tiempo, platearon mi sien
sentir que es un soplo la vida,
que 20 años no es nada
que febril la mirada
errante en la sombras te busca y te nombra
Vivir con el alma aferrada a un dulce recuerdo
que no ha de volver.
Tengo miedo el encuentro con el pasado
que vuelve a enfrentarse con mi vida
tengo miedo de las noches que pobladas
de recuerdos encadenan mi sufrir
pero el viajero que huye,
tarde o temprano detiene su andar
mas el olvido que todo destruye
haya matado mi vieja ilusion
Cual escondida la esperanza humilde
es toda la fortuna de mi corazon.”
Antes do filme, já pensava em escrever sobre as caixas-pretas em nossas vidas. Isso porque, nas últimas semanas, várias delas se abriram. As primeiras foram as dos aviões, após o acidente em Manaus. Foi nesse momento que minha mente, meus grilos-falantes se empolgaram de falar sobre as caixas, pretas ou não, nas quais ocultamos nossos segredos.
Todos nós, sem exceção, guardamos segredos. Às vezes nossos, às vezes de outros, às vezes para os outros, às vezes de nós mesmos. E quem não guardar segredos, que abra sua caixa!
Tenho uma amiga que passou por muitas dificuldades recentemente e que, no ápice delas, ocultou-se de mim, sem pedir ajuda. Nunca perguntei uma palavra sobre o que tinha ocorrido, não por falta de curiosidade e preocupação, mas por respeito à dor pela qual passava e pelo próprio peso da caixa. Sim, as caixas-pretas da vida são pesadas e, quase sempre, duras de abrir. Passado algum tempo, perguntou: “Você não vai perguntar nunca o que me aconteceu?” E então resolveu explicar todos os passos de uma trajetória que não foi nada fácil viver, quanto mais contar…
Um amigo descobriu que sua mulher o traiu logo no começo do casamento com um amigo dele. Com a descoberta, surgiu a possibilidade de que seu filho não fosse seu. Passou noites em claro pensando no que deveria fazer. Um teste de paternidade? Prensar a mulher contra a parede? Depois perdeu mais algumas noites pensando no que faria se descobrisse que não era o pai do garoto que criou como filho. O que faria? Contaria a ele com o risco de perdê-lo? Esconderia de todos, guardando no peito um misto de mágoa e medo? E se seu filho descobrisse? Como reagiria? Ainda não decidiu se quer ou não abrir essa caixa, simplesmente porque não sabe o que fazer com o seu conteúdo.
Um tempo atrás resolvi abrir uma caixa da minha vida. Na verdade ela já estava aberta, mas seu conteúdo estava embrulhado em retalhos do passado que compunham um quebra-cabeça de duas mil peças. Já tinha montado um pedaço enorme, mas faltavam algumas pecinhas que nunca quis mexer. Não gostei do que vi, mas enxergar toda a minha vida passada de um modo panorâmico acabou sendo uma experiência libertadora. É claro que estou falando em códigos! Eu abri essa caixa para mim, mas ainda me falta coragem para mostrá-la aos outros!
E é por isso que as caixas são pretas. Porque a maioria delas guarda o inominável, o indizível ou até mesmo o abominável. Mas nem todas são assim. Algumas são coloridas e nos revelam tons e belezas que realçam nossa existência. Outras são escuras por fora, mas cheias de matizes por dentro. E, seja qual for a cor, muitas vezes escolhemos abrir nossas caixas a algumas pessoas como forma de elo, de fidelidade, de cumplicidade.
O Tabú das caixas-pretas não está no seu conteúdo, mas na negação da sua existência. Como já disse, não há quem não tenha ao menos uma caixinha, onde se guardam medos, segredos ou mentiras.
É como a Caixa de Pandora: algo que incita a curiosidade mas que é preferível não tocar porque nela se encontram todos os males que têm um potencial enorme de nos destruir. É o medo do lado sombrio, obscuro que todos nós temos e é como se assumir esse lado nos dissolvesse. O legal da Caixa de Pandora é que, mesmo depois de aberta, mesmo depois de desgraçar a huminadade, só um coisa não foi destruída: a esperança. E é assim que caminhamos….