Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Wednesday, November 15, 2006

VOLVER (OU A LENDA DAS CAIXAS-PRETAS)


Semana passada fui ver o novo filme de Pedro Almodóvar, chamado “Volver”. Não, não sou comentarista, nem crítico de cinema. Falo dele apenas porque, além de belíssimo, trata das pendências do passado que muitas vezes guardamos em caixas-pretas, bem pretas, fazendo um sacrifício enorme para ocultá-las e que um dia se abrem.

Por isso resolvi colocar a letra de uma música do filme,com o mesmo nome, cantada por Estrella Morente:

“Yo adivino el parpadeo
de las luces que a lo lejos van
marcando mi retorno
son las mismas que alumbraron
con sus palidos reflejos
hondas horas de dolor
y aunque no quize el regreso
siempre se vuelve a su primer amor
la quieta calle, donde el eco dijo
tuya es mi vida, tuyo es mi querer
bajo el burlon, mirar de las estrellas
que con indiferencia, hoy me ven volver

Volver con la frente marchita
las nieves del tiempo, platearon mi sien
sentir que es un soplo la vida,
que 20 años no es nada
que febril la mirada
errante en la sombras te busca y te nombra

Vivir con el alma aferrada a un dulce recuerdo
que no ha de volver.

Tengo miedo el encuentro con el pasado
que vuelve a enfrentarse con mi vida
tengo miedo de las noches que pobladas
de recuerdos encadenan mi sufrir
pero el viajero que huye,
tarde o temprano detiene su andar
mas el olvido que todo destruye
haya matado mi vieja ilusion

Cual escondida la esperanza humilde
es toda la fortuna de mi corazon.”


Antes do filme, já pensava em escrever sobre as caixas-pretas em nossas vidas. Isso porque, nas últimas semanas, várias delas se abriram. As primeiras foram as dos aviões, após o acidente em Manaus. Foi nesse momento que minha mente, meus grilos-falantes se empolgaram de falar sobre as caixas, pretas ou não, nas quais ocultamos nossos segredos.

Todos nós, sem exceção, guardamos segredos. Às vezes nossos, às vezes de outros, às vezes para os outros, às vezes de nós mesmos. E quem não guardar segredos, que abra sua caixa!

Tenho uma amiga que passou por muitas dificuldades recentemente e que, no ápice delas, ocultou-se de mim, sem pedir ajuda. Nunca perguntei uma palavra sobre o que tinha ocorrido, não por falta de curiosidade e preocupação, mas por respeito à dor pela qual passava e pelo próprio peso da caixa. Sim, as caixas-pretas da vida são pesadas e, quase sempre, duras de abrir. Passado algum tempo, perguntou: “Você não vai perguntar nunca o que me aconteceu?” E então resolveu explicar todos os passos de uma trajetória que não foi nada fácil viver, quanto mais contar…

Um amigo descobriu que sua mulher o traiu logo no começo do casamento com um amigo dele. Com a descoberta, surgiu a possibilidade de que seu filho não fosse seu. Passou noites em claro pensando no que deveria fazer. Um teste de paternidade? Prensar a mulher contra a parede? Depois perdeu mais algumas noites pensando no que faria se descobrisse que não era o pai do garoto que criou como filho. O que faria? Contaria a ele com o risco de perdê-lo? Esconderia de todos, guardando no peito um misto de mágoa e medo? E se seu filho descobrisse? Como reagiria? Ainda não decidiu se quer ou não abrir essa caixa, simplesmente porque não sabe o que fazer com o seu conteúdo.


Um tempo atrás resolvi abrir uma caixa da minha vida. Na verdade ela já estava aberta, mas seu conteúdo estava embrulhado em retalhos do passado que compunham um quebra-cabeça de duas mil peças. Já tinha montado um pedaço enorme, mas faltavam algumas pecinhas que nunca quis mexer. Não gostei do que vi, mas enxergar toda a minha vida passada de um modo panorâmico acabou sendo uma experiência libertadora. É claro que estou falando em códigos! Eu abri essa caixa para mim, mas ainda me falta coragem para mostrá-la aos outros!

E é por isso que as caixas são pretas. Porque a maioria delas guarda o inominável, o indizível ou até mesmo o abominável. Mas nem todas são assim. Algumas são coloridas e nos revelam tons e belezas que realçam nossa existência. Outras são escuras por fora, mas cheias de matizes por dentro. E, seja qual for a cor, muitas vezes escolhemos abrir nossas caixas a algumas pessoas como forma de elo, de fidelidade, de cumplicidade.

O Tabú das caixas-pretas não está no seu conteúdo, mas na negação da sua existência. Como já disse, não há quem não tenha ao menos uma caixinha, onde se guardam medos, segredos ou mentiras.

É como a Caixa de Pandora: algo que incita a curiosidade mas que é preferível não tocar porque nela se encontram todos os males que têm um potencial enorme de nos destruir. É o medo do lado sombrio, obscuro que todos nós temos e é como se assumir esse lado nos dissolvesse. O legal da Caixa de Pandora é que, mesmo depois de aberta, mesmo depois de desgraçar a huminadade, só um coisa não foi destruída: a esperança. E é assim que caminhamos….

VOLTA PRO MAR, OFERENDA!


Não, a frase não é minha. Nem sei de quem é. Mas sei quem me disse a primeira vez*. E serve para mandarmos de volta aquilo que vem até nós e, definitivamente, não desejamos. Adorei o conceito. É limpo, lúcido. Mas confesso que entrei em conflito com Yemanjá, posto que uma oferenda, na acepção máxima dos cultos afro-brasileiros, é algo muito sagrado que é oferecido aos deuses.

Daí mesmo que se travou um conflito duplo. Pois, tentando percorrer o raciocínio da frase e descontando a nobreza do conceito de uma oferenda, pensei que essa tal "oferenda" que rejeitamos é algo que Yemanjá não quis, que ela recusou, como aqueles pentinhos de plástico azuis que as pessoas lhe oferecem em seu dia. E, uma vez que ela devolveu é porque não gostou. Portanto, como podemos querer que algo que foi rejeitado por ela volte para o mar? Acho que ela não ficará satisfeita.

Resumindo, esse "embrulho" do qual queremos distância é uma oferenda rejeitada por Yemanjá e, como nem ela, nem nós desejamos, fica perdida no vai-e-vem das ondas, empurrado pra cá e pra lá. Chamar de "carrego" seria mais apropriado.

Feitas as explicações conceituais e com as devidas desculpas aos deuses todos, ainda assim o conceito é magnífico. Serve para despachar tudo aquilo que queremos longe: cheiro ruim, pessoas, situações. "Volta pro mar, oferenda!". Bradamos em tom forte, guerreiro.

Um dia, uma amiga disse que se beijarmos uma pessoa muito feia no primeiro dia do ano, beijaremos pessoas lindas o resto do ano.Respondo: "Volta pro mar, oferenda!". Quem precisa beijar uma pessoa feia? Concordo com Vinícius ao dizer que lhe perdoassem as feias, uma vez que a beleza era fundamental. E quem foi que disse que precisamos beijar pessoas feias, como se só restasse essa alternativa. Existe uma outra: na ausência de belas, não beijamos.

Tenho um amigo que estava comentando que uma colega de trabalho está apaixonada por ele. Mas tem vários problemas: ela é feia como o Cão, chata como a Aracy de Almeida, irritante como o Chacrinha, doida como a Bruxa do Mar. E fica insistindo em sair com ele! "Volta pro mar, oferenda!". Percebem? Diante da massacrante realidade da vida, não existe melhor verbete!

E entre os grupos sociais então? Quantas dessas malquistas oferendas temos que suportar, cumprimentar, sorrir pra elas? Incontável. Que voltem todas elas para o mar, malditas oferendas!!!

Penso novamente em Yemanjá. Lembro-me ter ido uma vez a uma festa de Yemanjá na Praia Grande. Tinha amigos assiduous frequentadores de Umbanda e Candomblé que falavam dessa festa com grande entusiasmo e devoção. Tomei coragem e fui. Que coisa horrível. Barraquinhas, barraconas, cabaninhas, cabanonas. Armações do luxo ao lixo representando os centros espíritas de diversos lugares. A maior concentração de macumbeiros do globo. Então fiquei olhando as pessoas, em bandos, levandos oferendas à Yemanjá. Flores e mais flores, pentinhos azuis de plástico, perfumes e… dúzias de cumbucas de manjar branco!!! Lembro ter pensado naquela época que Yemanjá deveria arrancar seus lindos cabelos só de ver poluírem tanto o seu mar. Que pensam que ela é? Uma lixeira? Uma exorbitância de comida e quinquilharias para que ela arraste todo o lixo das costas das pessoas e leve tudo para o fundo do mar? Acho um desrespeito. Tenho certeza que ela ficaria mais feliz se pegassem aquela comida toda e alimentassem as milhares de bocas famintas espalhadas pelo mundo.

Sem falar no IBAMA. No SOS-Mata Atlântica. No Disque-Mananciais. Não há culto ou credo que justifique tamanha poluição.

Mas o mundo é isso: um “bololô” de contradições. Acho triste poluir o mar, mas como podemos suportar o lixo desagradável que nos rodeia? Pensei numa Yemanjá-Sideral, com roupas metálicas, um bastão radioativo nas mãos desintegrando todo esse dejeto.