Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Saturday, October 06, 2007

ESBRUGA-ME A BEZUGA!


Lindalva. Filha de lavadeira-outrora-prostituta. Pai desconhecido no registro de nascimento. Desde muito cedo querendo saber quem era seu pai, coisa que a mãe jamais lhe dizia. Não dizia porque não sabia. E em sua mundana simplicidade de puta, analfabeta, criada largada e sem afetos, achava que não era importante, nem pra ela, nem pra ninguém.

E Lindalva não se aquietava. Mas o tempo passou e, como o tempo adestra algumas teimosias, ela parou de indagar à mãe sobre o progenitor. Mas o tempo não acalma todas as coisas e portanto não a fez desistir da busca. Digamos que se tornou mais sofisticada.

Quando ficava sozinha em casa, revirava coisas da mãe, gavetas, armários, envelopes. Não demorou chegar o dia em que encontrou uma pequena valise de couro, redonda como as que guardam chapéus. Como nunca a tinha visto, presumiu que era lá que sua mãe guardava os segredos da vida. Mas os segredos estavam bem guardados. A mala estava trancada. Sim, queria vascular o passado de sua mãe para desvendar o seu, mas não queria estraçalhar o cadeado, arrombando sua intimidade. Além disso, sua mãe não ia gostar do feito. Guardou a mala no mesmo cantinho do guarda-roupas e vasculhou mais alguns dias os cantos da humilde casinha, tentando em vão encontrar a chave.

Certo dia observava sua mãe quarando as roupas no terreiro, quando um raio de sol iluminou os lençóis brancos e o vestido azul da mãe reluzia ao vento, como um céu todo azul perdido num emaranhado de brancas nuvens saltitantes. Era a primeira vez que notava a sua mãe como mulher. Não a lavadeira, mas uma mulher jovem e bonita, porque aquele sol todo escondia-lhe as rugas, os maus-tratos impostos pela vida. Parecia tão jovem.

E o mesmo sol que abrilhantava aquela paisagem recaiu sobre o colo de sua mãe e iluminou a correntinha que trazia, pendendo, a tal chave... Era essa a chave. Como nunca havia notado ou perguntado dela? A mãe guardava o seu passado no melhor dos lugares, junto do peito. Por alguns dias observou se a mãe tirava a corrente. Jamais. Dormia e acordava com ela. Tomava banho, cozinhava e trabalhava com ela.

Certo dia esperou que a mãe dormisse e, com muito cuidado, desenlaçou a corrente do seu pescoço, apossando-se da chave. Agora não tinha tempo a perder. Catou a maleta, enfiou a chave e abriu a porta dos idos e desconhecidos tempos.

Dentro da mala encontrou um vidro de perfume seco, uma estola de plumas e uma foto de sua mãe mais jovem, em roupas íntimas, abraçada a um homem barbudo. Atrás da foto, uma dedicatória:

“Lisbela, minha bela, espero que venhas comigo a Portugal. Com amor, Manoel.”

Lindalva chorou de emoção. Teve uma certeza tão íntima e tão desesperada de que era esse tal Manoel o seu pai. E enquanto chorava, abraçando e beijando a foto, nem percebeu que a mãe havia levantando e, ao entrar no quarto, deparou com a filha mexendo em suas coisas.

- Lindalva, o que é isso ?!
- Mamãe, desculpe, mas agora eu sei de tudo... Por que nunca me contou sobre o meu pai?

Lisbela não sabia se chorava, se desmaiava ou se batia em Lindalva, mas no desespero resolveu que era melhor concordar que Manoel, o homem que tanto amou e partiu fosse o pai de Lindalva e não qualquer outro de seus clientes.

- Errrr... Desculpe minha filha, eu estava aguardando um momento em que você estivesse um pouco mais grandinha para entender, pois é uma longa história...
E percebendo a felicidade nos olhos da filha, sentiu tão grande alivio que se inspirou a contar uma longa história de amor, que seu pai era um homem casado em Portugal e que esteve no Brasil a trabalho, mas que foi embora para ficar com sua família. Disse que chegou a convida-la para ir com ele, mas ela não achou certo viver como amante e, quando ele partiu, percebeu-se grávida. Tentou contato com ele mas nunca obteve resposta.

Foi desse momento em diante que nasceu uma obsessão na mente de Lindalva: juntaria dinheiro para, quando crescesse, ir ao encontro de seu pai.

Comprou um porquinho, passou a ajudar a sua mãe com a lavagem das roupas, economizava nos doces, passeios e em tudo o mais que pudesse para que atingisse seu objetivo.

Por todos esses anos, seu interesse pelas coisas de Portugal foram crescendo: a música, as comidas, as danças. Chegou a pedir ajuda no Consulado de Portugal, mas não conseguiu localizar seu pai entre os milhões de manoéis em Portugal.

Lindalva completou vinte anos e durante todo esse tempo não fez nada que não fosse estudar, trabalhar e juntar dinheiro para ir atrás de seu pai. Fez poucos amigos, até porque ninguém tinha paciência com suas intermináveis histórias portuguesas. Não teve namorados, esquivava-se dos paqueras e não era adepta a eventos sociais. Sua mãe não levava sua história a sério, simplesmente porque achava que a filha nunca chegaria a juntar o dinheiro necessário para a viagem e, mesmo que conseguisse, jamais conseguiria encontrar Manoel, até porque após tantos, anos, poderia até ter morrido.

Não demorou muito tempo e Lindalva já tinha todo o dinheiro para sua grande empreitada. Nesses anos todos, a única coisa diferente que havia feito foi aprender a bordar e, quando já estava bem tarimbada, bordou um lindo coração em ponto-de-cruz escrito: “Te amo meu Pai. Lindalva.”

A mãe não teve tempo de esperar que Lindalva realizasse seu sonho e partiu com o coração vazio, segurando a chave de sua sonhada felicidade pendurada na correntinha. Foi enterrada com a valise e a chave no peito. Lindalva que não era boba nem nada, tratou de fazer uma copia da foto de “seus pais” para facilitar a busca de Manoel.

Não que Lindalva desejasse a morte de sua mãezinha, mas o fato é que sua partida significou para ela um “sinal” para que partisse.

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E então partiu Lindalva para Lisboa. Chegando a na cidade, suas lágrimas borraram a visão magnífica do Tejo e os raios de Sol ofuscavam seu foco. Quando se controlou, tratou de achar um lugar para ficar e se hospedou num hotel baratinho perto da alfândega. Como seu dinheiro era curto dedicou poucos dias a conhecer um pouco a cidade e logo tratou de arranjar um emprego de ajudante de cozinha num restaurante da Alfama. Ganhava pouco, trabalhava durante toda noite, mas ao menos o dinheirinho servia para pagar sua moradia e tinha o dia livre para procurar seu pai.

Em pouco tempo conseguiu arranjar um lugar um pouco melhor para morar, dividindo apartamento com outras moças que trabalhavam no restaurante. Já nos primeiros meses desistiu de contar sua história aos conhecidos, porque todos caçoavam de sua empreitada.

- Ora pois! como é que a gaja vai encontrar um Manoel sem nome de família, sem endereço no meio de tantos manoeis?

Era sempre o que ouvia. Mas seguiu sua busca, no serviço de registros, na polícia, no governo. Certo dia, Alfonso, um jovem jornalista lisboeta puxou conversa com ela, no ensejo de paquera-la e Lindalva lhe contou sua história. Lindalva continuava avessa às investidas amorosas, mas aceitou de bom grado a amizade de Alfonso, ainda mais quando ele ofereceu-lhe fazer uma matéria no jornal em que trabalhava, contando a sua história e publicando a foto de seu pai na reportagem.

Lindalva ficou muito entusiasmada com a idéia de Alfonso que conseguiu convencer o redator a publicar a matéria. Mas as expectativas de Lindalva se frustraram, já que, após a publicação, nada aconteceu.

Passados três meses, Lindalva recebeu uma carta. Ficou entusiasmada e abriu correndo o envelope. Dentro dele havia um cartão branco, que dizia: “Venhas encontrar-me amanhã no Largo do Rocio, às 15 horas. Manoel”.

A menina não se agüentava de emoção. Os minutos eram horas.
Nem conseguiu dormir de noite. Passou o dia em transe. E, chegada a hora, partiu para realisar seu sonho.

Chegando no Largo do Rocio, logo localizou a figura de Manoel. Estava bem mais velho, bem mais gordo, mas tinha certeza que era seu pai. Aproximou-se e chamou-o pelo nome.

- Senhor Manoel? Sou Lindalva. É um prazer encontrar o senhor. Nem imagina o quanto estou emocionada de encontrar o senhor, meu p....
- Então a gaja supõe que sou teu pai! Donde tiraste essa idéia?
- Mas senhor Manoel, minha mãe disse...
- E tu acreditaste no que disse aquela puta! Deve ser um plano teu e daquela infame, vir até aqui achando que tenho posses e que te daria fortunas para calar-te!

E Lindalva se partiu em xícaras. Sentiu-se quebrada como aquelas porcelanas fininhas de jogos de chá dos pobres. Como ele poderia dizer isso de sua finada mãe, que o amara tanto?

- Mas já que a mim vieste e vejo que és tão apetitosa quando a tua mãe... Se quiseres posso mostrar a ti o que a fazia tão satisfeita! – e falando isso apertou seu corpo com o dele, com força, aproveitando para fungar seus cabelos e sua nuca. - Aborda-me logo os tomates, rapariga! Esbruga-me a bezuga!

Soltou-se com força das garras do asqueroso Manoel e saiu correndo pela cidade. Lindalva ficou enojada. Aquele não podia ser o seu pai. Como sua mãe poderia ter se enganado? Será que era mesmo uma prostituta? Abriu a sacola, tirou o coração bordado com tanto carinho, olhou-o pela última vez e atirou-o ao Tejo.

Lindalva revolveu permanecer em Portugal. Continuava trabalhando, aprendeu a gostar daquele lugar. Não sabia dizer se Manoel era ou não seu pai, nem sabia se devia ou queria acreditar que sua mãe havia ou não sido uma prostituta. E não preciso nem dizer que resolveu aceitar o carinho e o amor de Alfonso, porque, de tudo o que passou, seu melhor aprendizado foi aprender a aceitar o amor de quem realmente deseja dar.

(Imagem: Leonie Barton, Wonderful Wise Women)

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