AS BRUXAS E OS FILHOS DELAS.

“Quem sai aos seus não degenera”. Faz tempo que tenho pensado nessa frase. Eu mesmo, chego a dizê-la, automaticamente, ao me referir a pessoas ou grupos de pessoas – sanguíneos inclusive – exemplificando como hábitos e comportamentos são “contagiados” através das gerações.
Desde o Pecado Original,quando Adão abocanhou a maçã e Eva engoliu a cobra, que todos os seus filhos, sendo filhos do pecado, são pecadores. Será mesmo que quem sai aos seus não degenera? Será que todo filho de bruxa é bruxinho? Acredito que não. Mas por que é que, de toda uma prole, alguns escapam e outros não?
De um lado, tenho verificado como a criação, certo modo de educação, as aprendizagens de comportamentos, as repetições, compõem um todo-rolo-compressor que impele o indivíduo a agir do mesmo modo que os outros do seu grupo. Mas existe algo de particular nesse “determinismo psíquico” que impede que alguns desses elementos grupais perpetuem essa “produção em massa” e permita que sigam caminhos díspares, únicos, diferentes daquela manada.
O psicanalista René Kaës diz que “o inelutável é que somos postos no mundo por mais de um outro, por mais de um sexo, e que nossa pré-história nos faz, muito antes do nascimento, o sujeito de um conjunto intersubjetivo cujos sujeitos nos têm e nos sustentam como os servidores e herdeiros de seus ‘sonhos e desejos irrealizados’ de suas repressões e de suas renúncias na rede de seus discursos, de suas fantasias e de suas histórias. De nossa pré-história tramada antes de nascermos, o inconsciente nos terá feito contemporâneos, porém só chegaremos a ser seus pensadores por ressignificação. Essa pré-história, de onde se constitui o originário, está arraigada à intersubjetividade”.
Enfim, está aí o fim. Somos produto de um produto mal feito. Irreparável. E o que é que acontece quando esse produto, vindo de uma fábrica de produtos defeituosos, foge a essa regra? O que é essa ressignificação, senão a possibilidade de fugir, minutos antes de ser compactado? É como se fizéssemos uma mistura de bolo e, minutos antes de levá-la ao forno, ela se derramasse pelo chão. Ainda é mistura, mas não será bolo. Carrega os ingredientes da mistura, mas não será mais o produto final objetivado. O que será dela? Ninguém saberá. Mesmo que seja recolhida, colocada novamente na assadeira e levada ao forno, pode ser que se torne bolo, mas certamente será um bolo diferente do original.
É muito fácil saber onde vai dar o óbvio, ou seja, o produto esperado da tal fábrica. Complexo é conseguir entender por onde passa a matéria prima para dar outro produto. E enquanto andam os ponteiros, tenho visto de tudo. Vejo pequenos seres, crianças, tendo sua individualidade massificada, mortificada pelos “pecados” de suas matrizes. Vejo crianças se tornando a cópia perfeita e infeliz das suas origens. Por outro lado, fico mais intrigado ao ver os que pulam foram dos barcos, aos que não cabem nas formas, que trilham diferentes trilhas. Não encontro resposta.
Em parte, acho que isso se deve a outras influências presentes na vida desse sujeito. Outras pessoas, outros ambientes, outros referenciais, que foram capazes de impactar, ao invés de compactar, traduzindo-se pela liberdade de “ser” do “ser”. Mas será que isso é suficiente? Será que eu consegui fugir porque recebi centelhas de liberdade do meu avô e pude transmitir isso à minha irmã? E por que será que meu irmão não conseguiu fugir? Terei sido eu o responsável pela libertação dela? E por que não fui capaz de fazer essa mesma coisa com ele? Será que o deixei tempo demais no forno?
E é então que volto a pensar no Daemon. Será que é a sua manifestação que impede que sejamos massacrados pelas formas transgeracionais? Será que é a nossa missão, através ou estimulados por essa força primeva, romper com esses ditames das malditas heranças?
Mas, assim como Camões teve que escolher entre Os Lusíadas e Dinamene, não há como fugir de algumas escolhas da vida. Às vezes não há dois caminhos, duas pessoas, duas coisas. Somos nós ou o outro, somos pela vida ou pela morte, pela limpeza ou pela sujeira. E tem vezes que somos só uma coisa. Não uma escolha, mas um único caminho que assegura a nossa integridade. O caminho da sobrevivência. Das vezes em que existe apenas um bote salva-vidas e somos nós ou o outro.
Como no filme “Anjo Malvado”, em que a mãe, segurando pelas mãos, à beira de um penhasco, seu “pequeno psicopata”, se vê na encruzilhada de salvar o filho mau ou deixá-lo morrer no penhasco, poupando sua dor futura e as dores a tantos outros que ele causaria. E ela “deixa partir”. Mas é como a mistura para bolo. Eu acho que deixei a mistura escorrer pelo ralo, mas tem uma parte de mim que morre junto.
Não, nem todos os filhos das bruxas são como elas. Mas quando são, que fiquem com elas. Pela eternidade.