Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Tuesday, November 17, 2009

AS BRUXAS E OS FILHOS DELAS.


“Quem sai aos seus não degenera”. Faz tempo que tenho pensado nessa frase. Eu mesmo, chego a dizê-la, automaticamente, ao me referir a pessoas ou grupos de pessoas – sanguíneos inclusive – exemplificando como hábitos e comportamentos são “contagiados” através das gerações.

Desde o Pecado Original,quando Adão abocanhou a maçã e Eva engoliu a cobra, que todos os seus filhos, sendo filhos do pecado, são pecadores. Será mesmo que quem sai aos seus não degenera? Será que todo filho de bruxa é bruxinho? Acredito que não. Mas por que é que, de toda uma prole, alguns escapam e outros não?

De um lado, tenho verificado como a criação, certo modo de educação, as aprendizagens de comportamentos, as repetições, compõem um todo-rolo-compressor que impele o indivíduo a agir do mesmo modo que os outros do seu grupo. Mas existe algo de particular nesse “determinismo psíquico” que impede que alguns desses elementos grupais perpetuem essa “produção em massa” e permita que sigam caminhos díspares, únicos, diferentes daquela manada.

O psicanalista René Kaës diz que “o inelutável é que somos postos no mundo por mais de um outro, por mais de um sexo, e que nossa pré-história nos faz, muito antes do nascimento, o sujeito de um conjunto intersubjetivo cujos sujeitos nos têm e nos sustentam como os servidores e herdeiros de seus ‘sonhos e desejos irrealizados’ de suas repressões e de suas renúncias na rede de seus discursos, de suas fantasias e de suas histórias. De nossa pré-história tramada antes de nascermos, o inconsciente nos terá feito contemporâneos, porém só chegaremos a ser seus pensadores por ressignificação. Essa pré-história, de onde se constitui o originário, está arraigada à intersubjetividade”.

Enfim, está aí o fim. Somos produto de um produto mal feito. Irreparável. E o que é que acontece quando esse produto, vindo de uma fábrica de produtos defeituosos, foge a essa regra? O que é essa ressignificação, senão a possibilidade de fugir, minutos antes de ser compactado? É como se fizéssemos uma mistura de bolo e, minutos antes de levá-la ao forno, ela se derramasse pelo chão. Ainda é mistura, mas não será bolo. Carrega os ingredientes da mistura, mas não será mais o produto final objetivado. O que será dela? Ninguém saberá. Mesmo que seja recolhida, colocada novamente na assadeira e levada ao forno, pode ser que se torne bolo, mas certamente será um bolo diferente do original.

É muito fácil saber onde vai dar o óbvio, ou seja, o produto esperado da tal fábrica. Complexo é conseguir entender por onde passa a matéria prima para dar outro produto. E enquanto andam os ponteiros, tenho visto de tudo. Vejo pequenos seres, crianças, tendo sua individualidade massificada, mortificada pelos “pecados” de suas matrizes. Vejo crianças se tornando a cópia perfeita e infeliz das suas origens. Por outro lado, fico mais intrigado ao ver os que pulam foram dos barcos, aos que não cabem nas formas, que trilham diferentes trilhas. Não encontro resposta.

Em parte, acho que isso se deve a outras influências presentes na vida desse sujeito. Outras pessoas, outros ambientes, outros referenciais, que foram capazes de impactar, ao invés de compactar, traduzindo-se pela liberdade de “ser” do “ser”. Mas será que isso é suficiente? Será que eu consegui fugir porque recebi centelhas de liberdade do meu avô e pude transmitir isso à minha irmã? E por que será que meu irmão não conseguiu fugir? Terei sido eu o responsável pela libertação dela? E por que não fui capaz de fazer essa mesma coisa com ele? Será que o deixei tempo demais no forno?

E é então que volto a pensar no Daemon. Será que é a sua manifestação que impede que sejamos massacrados pelas formas transgeracionais? Será que é a nossa missão, através ou estimulados por essa força primeva, romper com esses ditames das malditas heranças?

Mas, assim como Camões teve que escolher entre Os Lusíadas e Dinamene, não há como fugir de algumas escolhas da vida. Às vezes não há dois caminhos, duas pessoas, duas coisas. Somos nós ou o outro, somos pela vida ou pela morte, pela limpeza ou pela sujeira. E tem vezes que somos só uma coisa. Não uma escolha, mas um único caminho que assegura a nossa integridade. O caminho da sobrevivência. Das vezes em que existe apenas um bote salva-vidas e somos nós ou o outro.

Como no filme “Anjo Malvado”, em que a mãe, segurando pelas mãos, à beira de um penhasco, seu “pequeno psicopata”, se vê na encruzilhada de salvar o filho mau ou deixá-lo morrer no penhasco, poupando sua dor futura e as dores a tantos outros que ele causaria. E ela “deixa partir”. Mas é como a mistura para bolo. Eu acho que deixei a mistura escorrer pelo ralo, mas tem uma parte de mim que morre junto.

Não, nem todos os filhos das bruxas são como elas. Mas quando são, que fiquem com elas. Pela eternidade.

Tuesday, November 03, 2009

ENVENENADORAS DE VIDAS


Estou aqui em Buenos Aires. É a segunda vez que passo por aqui. Gosto da cidade, gosto dos ares europeus, das construções que lembram Paris, das patisseries com sabores de Paris. É como estar em uma Paris mais rápida e muito mais barata. E, ao contrário de muitos brasileiros, me gustan los argentinos. Gosto do jeito que eles têm de falar, gosto dos cabelos compridos, gosto do polo-style com o qual se vestem.

Apesar de gostar muito de viver em São Paulo, Buenos Aires é, sem dúvida, muito mais bonita e elegante que a terra da garoa. Ai! E como comem melhor esses argentinos! Parrilla, empanadas, alfajores, azeitonas, bons vinhos. Os argentinos também são cheios de histórias. Histórias de colonização, guerras, culturas, influências étnicas. Mas também histórias pitorescas (ou pintorescas, como eles dizem).

Meu amigo argentino me contou uma das histórias policiais mais famosas da Argentina. Uma senhora que dava às suas amigas doces envenenados com cianureto para depois roubá-las. Yiya Murano (fala-se “chicha”), ou “a envenadora de Monsserrat”, como era conhecida. Que se sabe, morreram duas; mas, considerando que foi pega pela primeira vez nos anos oitenta e já tinha seus “sessentinha”, é de se supor que ela deve ter matado muita gente por aí.

Cumpriu dez anos de prisão e ainda é viva, tendo se tornado celebridade nacional e motivo de piadas em mesas de bêbados. Até encontrei um vídeo no YOUTUBE, com uma aparição de Yiya Murano no Programa de Mirtha Legrand, a não menos perua-hebe dos argentinos. No programa, Yiya leva um prato de doces de presente à Mirtha, que fica na dúvida cruel se come ou não come os docinhos (Creio não ter sido Yiya que levou os doces ao programa, porque duvido que a apresentadora os comeria ...)
(http://www.youtube.com/watch?v=wKMczwqVFKE)

Fiquei olhando para aquela vovozinha e tive a mesma sensação que muitos tiveram quando ela foi descoberta e que tanto dividiu a opinião pública: como seria aquela “avozinha” tão simpática capaz de crueldade tamanha? Não seria uma falsa acusação? Todo mundo pensa nas avozinhas que conhecemos: singelas, bondosas, fala mansa, olhos profundos. Não houve tempo para que eu desfrutasse da amável companhia de minha avó, mas creio que ela seria doce como Yiya, se ainda vivesse. Mesmo minha bisavó, conseguia ser assim, dócil, nos raros momentos de calmaria que lhe sobravam das disputas com o alemão virando sua cabeça (sim, o Alzheimer...).

Foi então que me lembrei da “máxima” proferida por uma instrutora quando passei pelo estágio de psicogeriatria durante a residência. Ela dizia que íamos ficar penalizados com muitos velhinhos abandonados e mal cuidados durante a internação, velhinhos que as famílias não queriam ver “nem pintados de ouro”. Ela dizia que, apesar de evocar um sentimento de compaixão, devíamos levar em conta que essas pessoas possuíam uma história, um passado e que muitas vezes, a solidão, o abandono, eram a colheita desse passado.

Então pensei nas várias “Yiyas” que conheço. Carinhas de anjo, feições amáveis, mas cheias de maldade e artimanhas em suas mentes. Coincidentemente, após ouvir a história de Yiya, assisti a um pedaço do desenho animado Shrek, onde a suposta Fada Madrinha não passa de uma bruxa má.

Volto eu a pensar nos tempos da residência médica. Lembro de um grande professor meu, que explicava, ao discutirmos o caso clínico de uma paciente do hospital, cuja mãe era tida como possuidora de poderes mágicos e conhecida como “feiticeira” em seu país de origem, que a bruxa, a feiticeira, na Psicologia Analítica, era como a inversão do arquétipo da Grã-Sacerdotisa, que simbolizava a capacidade de ser uma boa mãe.

E é curioso como essas “mães perversas” são representadas em nosso imaginário, como a Madrasta da Branca-de-Neve, a Bruxa do Mar do Popeye, a Bruxa de João e Maria... Yiya Murano: você é a lenda urbana argentina das mães perversas e pestilentas.

Podemos rodar o mundo. Todos os países, cidades, nações, culturas. Sempre haverá mães-bruxas. Sempre haverá Yiyas espalhadas por aí. Graças a Deus, a humanidade não está perdida. Ainda acho que existem mães-nao-yiyas espalhadas por aí, a edificar a mente e cultivar a vida, e a dar vida a seus filhos.

É PRECISO QUEBRAR ALGUMAS VIDRAÇAS


Na última sexta-feira, estava trabalhando no hospital. Entrei na sala privativa, corri em direção ao armário de medicamentos. Aquele armário de ferro, com paredes de vidro, usado em hospitais. A chave não estava lá. Perguntei à secretaria onde estava a chave porque precisava pegar lá alguns medicamentos. Ela disse que a chave estava sumida há dois dias e recomendou que eu fosse em outro lugar buscar a medicação. Expliquei que não tinha cabimento eu sair de lá caçando remédios pelos outros ambulatórios e creio que esse problema deveria ter sido resolvido antes.

E então veio a “solução imediata”: resolvi quebrar o vidro do armário. Ela disse que eu não deveria fazer isso, que era o cúmulo. Eu disse que o cúmulo era ter o remédio trancado, sem poder dá-lo à paciente.

Voltei ao armário, saquei uma garrafa térmica velha e enfiei vidro adentro. Saquei o medicamento que precisava, entreguei à paciente e voltei lá pra juntar os cacos. Não estava com raiva, não estava vivendo um “dia de cão”. Uma médica que estava por perto assistiu toda a cena, perplexa, como se tivesse presenciado um assalto ou uma pancadaria.

A faxineira do local colocou luvas de borracha e começou a catar os cacos com a mão. Pedi que ela parasse, porque, se ela se machucasse, eu seria culpado. Ajoelhei, catei os cacos todos, limpei o armário. Guardei os vidros em lugar seguro. Enquanto catava, me veio à mente que talvez pudesse ter chamado o chaveiro. Mas depois meu pensamento se reformulou, pensando que, não eu, mas alguém deveria ter chamado o chaveiro há dois dias.

Santidades pessoais à parte, ninguém, exceto os pacientes de um serviço público, iriam sofrer de fato com a falta da chave. Muito mais fácil deixar um “désolé” para o “pobre coitado” que vai ficar sem remédio do que se encarregar e resolver o problema da chave.

E essa história toda me fez pensar sobre como precisamos, vez ou outra, quebrar vidraças, arrombar portas, pular muros para conseguir resolver um problema. Ninguém quer fazer isso. Só os impulsivos e descontrolados, que muitas vezes fazem, mas não sabem o que buscam. Eu sabia o que queria ao quebrar a vidraça. E acho que, quando temos certeza do que queremos, coisa que nem sempre é tão simples, devemos “arrebentar” as porteiras que estão barrando nosso caminhar.

Eu fiz uma boa ação. Não só pela minha paciente, mas por outros pacientes e outros médicos que precisarão usar aquele armário. É claro que muitas vidraças que temos que quebrar não são tão “fáceis”. Vidros cortam, cacos perfuram dedos e se escondem nas frestas do chão, nas linhas da mão.

Hoje pedi à secretária que chamasse o vidraceiro para consertar o armário. Ela disse que não iria chamar, que se eu quisesse, que fizesse isso eu mesmo. Disse a ela que chamasse o vidraceiro, que era um conhecido meu e que era eu quem ia pagar pelo vidro, nem ela, nem a instituição. Quebrar vidraças tem dessas coisas. Temos que nos responsabilizar pelos cacos, pelos estragos que provocamos. Mas fica a marca, o aviso, de que somos capazes de quebrá-las.