ESTRANHOS MUNDOS NUM MUNDO ESTRANHO

Eu já fiz de tudo um pouco aqui em New York no que diz respeito a compras. Já visitei outlets, adentrei a maldita Century 21. Perdi pessoas queridas no labirinto barulhento e escuro da Abercrombrie&Fitch. Mas hoje passei por uma nova aventura. A primeira delas foi trocar uma bolsa para uma amiga na Burberry. A coitada pagou 800 dólares por uma bolsa de couro que desbotou em alguns pontos nos primeiros dias de uso. Após meses trocando emails com todos os setores da loja, finalmente conseguiu que a vendedora recebesse a bolsa para uma “avaliação”. Trouxe a bolsa comigo de São Paulo. Chegando na loja, a finíssima vendedora Sharon disse para mim: “Eu vou trocar a bolsa para ela. Mas você vê, esses pontos são os lugares onde a bolsa foi apoiada. Ela tem que tomar cuidado com qualquer superfície que a bolsa possa ser apoiada, porque pode realmente manchar. Bancos de carro, calças jeans, cadeiras e poltronas”. Entendi tudo. É uma bolsa para ficar em casa. Ou será que temos que comprar uma plataforma para que ela fique suspensa e calçar luvas de cashmere para por a mão nela? Vai entender. E pra terminar, o vendedor amigo da Sharon fala para mim: “Você pode limpá-la com baby wipes.” Ok, você venceu; baby wipes.
Andando pelas ruas após um delicioso almoço com amigos, conversamos sobre o quanto muitas pessoas ficam escravizadas ao consumo, impedindo inclusive que aproveitem uma infinidade de coisas legais em cidades incríveis como New York. Não estou criticando quem compra uma bolsa de 800 dólares; estou apenas pensando nas pessoas que fazem apenas isso: comprar, comprar e comprar. Tenho um conhecido que veio para cá e passou dez dias entrando e saindo de lojas, comprando, comprando e comprando. A única coisa que conseguiu fazer além disso foi ir ao Brazilian Day e ver o show da Ivete Sangalo. Uma amiga veio a New York pela primeira vez trazendo uma lista enorme de coisas a fazer e lugares a visitar. Em seu primeiro dia na cidade, resolveu ir visitar o Woodbury Commons. Gastou todo o dinheiro da viagem e passou os dias restantes a Mc Donald’s.
É lógico que isso não é um comportamento exclusivamente brasileiro, embora estejamos cada vez mais famosos nas terras do Tio Sam pelo nosso recente descontrole consumista. Todas as pessoas elegíveis a um cartão de crédito ou a um empréstimo da Fininvest podem padecer do mesmo mal, em qualquer lugar do planeta. E nem todo mundo se dará conta do quanto tempo perdeu experimentando roupas, entrando e saindo de lojas ou nas filas dos caixas. Não estou exatamente execrando as compras; tenho telhado de vidro. Mas por melhor e mais baratas que sejam as coisas por aqui, ainda não consigo compreender alguém ficar numa fila, na chuva, em plena Quinta Avenida, para entrar na porta da Abercrombie&Fitch ou na liquidação da BBG ou da Macy’s ou de onde seja.
Pensando no consumismo, lembrei de uma conhecida que colecionava bolsas de luxo e fazia de tudo para comprá-las, enviá-las ao Brasil através de amigos ou comprar de muambeiros. Não foi seu “bolsismo” que me veio à lembrança, mas uma conversa que ela teve em minha presença sobre o “seu” psiquiatra.
- Ah, é mesmo, você é psiquiatra! Que luxo! Acho que todo mundo precisa de um! O meu é o Dr. Fulano. Chiquérrimo! A consulta dele custa uns mil e quinhentos reais.
- Deve ser mesmo.
- E você, fulana? Quem é o seu psiquiatra?
- Ai, amiga, o meu é Dr. Ciclano.
- Não conheço.
- Ele não é muito famoso mesmo.
- E a consulta dele é cara? Não sei; ele é do meu convênio.
- Ai, meu Deus! Não te falaram que psiquiatra de convênio não presta?
- Sei lá, ele me atende bem, resolveu quando precisei.
- Não presta e pronto. É a mesma coisa que você comparar uma Louis Vuitton e uma bolsa da C&A. Não adianta.
- E qual antidepressivo que você toma? Eu estou tomando um ótimo agora. Meu médico manda importar do Canadá, porque ainda não chegou ao Brasil.
- Eu não estou tomando nada.
- Já falei, muda de psiquiatra! Tudo mundo precisa de um remedinho, não acha doutor?
- Nem sempre...
- Nada! Todo mundo tem que tomar alguma coisa.
Nem vou continuar reproduzindo a enfadonha conversa. Deu pra entender, não deu?
Eu acho muito legal e importante que o estigma da psiquiatria, da psicologia e dos terapeutas tenha diminuído a ponto das pessoas possuírem a liberdade de falar abertamente sobre seus tratamentos, necessidades e ajudas obtidas. Mas desde quando somos grife, marcas? Quando é que os nomes dos médicos - além da clara indicação de um profissional de confiança - e as marcas dos remédios viraram objetos de desejo e consumo? Quando é que nos transformamos em bolsas?
Somos artigos vendáveis e compráveis nesse imenso mercado-fábrica de futilidades preenchedoras de buracos da alma humana. Ternos e gravatas, aventais brancos exibindo os fiéis distintivos das instituições psiquiátricas. É claro que isso não acontece só com a psiquiatria. A grife médica em outras especialidades é obviamente mais antiga. Há alguns anos, fiz um cadastro para atender num grande hospital em São Paulo. No dia da entrega do crachá, houve uma celebração para a entrega do crachá, além de uma aula cretina sobre a missão da instituição e um monte de outros bla-bla-blás. E lá estava eu, de camisa xadrez laranja, bolsa carteiro, calças jeans e orelha furada, no meio de peruas maquiadas e perus engravatados. Um ex-amigo – que parecia amigo na época – praticamente desviou seu caminho de braços dados com uma diretora de sei-lá-o-que do hospital e só falou comigo quando estava sozinho, por óbvia vergonha. Como sua imagem impecável poderia estar associada a um tipo como eu?
Ou seja: o consumismo por psiquiatras não é apenas problema de quem os consome. A responsabilidade também é de quem se prostitui, se oferece, se vende como um pedaço de carne na vitrine desse açougue.
2 Comments:
Mon chère,
Fiquei com pena da sua amiga. Afinal de contas, ela terá de dar uma de "Mary Poppins". Assim, a bolsa terá vida longa e eterna.
Recentemente contemplei um adesivo no vidro traseiro de um BMW. Dizia: "we are at the top". Interessante, as pessoas atingem "o topo" ao adquirir coisas? Vivemos numa época dominada pelo consumo que nos devora como fagócitos.
Hoje fui assistir "O Artista". Lindíssimo. Li o comentário da Maureen Dowd no NY Times sobre o filme e fez mais sentido ainda.
http://www.nytimes.com/2011/12/07/opinion/dowd-silence-is-golden.html
Pensar sobre o que acontece ao nosso redor enriquece-nos. O problema é que às vezes não se pensa mais. Mergulha-se como temos feito em relação ao consumo.
PS: e na Tiffany, você já foi trocar algo?
Beijos!
E na Tiffany's, você foi trocar algo foi um ataque passivo-agressivo? Je rigole. Fui comprar alianças de casamento para uma amiga nossa. Eu não acho que minha amiga precise de pena. Todos nós somos pegos pela maldição consumista do Tio Sam vez ou outra. Mas ser pego é diferente de ficar preso. E isso eu tenho certeza de que ela não é!!!
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