DIÁRIOS FUTEBOLÍSTICOS

Nasci Palmeirense. Coisa típica: família italiana, gente falando alto, macarronada de domingo e “parmera”, como diziam alguns dos meus tios. Dizem que meu tio chegou a começar a jogar no Palmeiras quando era jovem e que era amigo de uns jogadores famosos de cujos nomes não me lembro.
E, acreditando gostar de jogar futebol, vesti Kichutes, tive bolas de futebol e ensaiei alguns chutes nas aulas de educação física da escola. Extrema perda de tempo. Nunca acertava bola nenhuma, o único gol que eu fiz na vida foi “contra” e numa outra vez a bola chutada caiu no meio dos meus braços cruzados, enquanto olhava o céu, cansado, imaginando qual seria o grande desígnio de Deus que me fazia estar ali, naquele momento. O time adversário adorou: pênalti com um bem sucedido gol.
Logo percebi que meu negócio não era futebol. Eu tentei gostar de futebol e ser palmeirense porque era uma forma de estar mais perto do meu avô. Meus colegas de escola perceberam isso muito antes de mim. E passei a ficar para o “resto”, o “refugo” da divisão dos times. Eu, um asmático e outro mais gordo que eu. Éramos sempre os últimos, éramos aposta de quem “perderia” mais ao dividir os restos “infutebolizáveis”. Tinha outra coisa maligna. O medo de tirar a camiseta pra não mostrar os peitos de gordo, evitando ser caçoado. Só restava torcer para ficar do lado do time dos “com camisa”.
Não demorou muito tempo para eu entender tudo e descobrir a saída mais fácil: toda semana eu fazia minha mãe solicitar uma dispensa da educação física, “por motivos de força maior” ou por “indisposição”, entre outras alegações. Às vezes o professor reclamava, mas em geral, ele e os caras da minha classe davam graças a Deus. Eu também agradecia muito a Deus quando chovia e não havia quadra disponível. Era dia de prova ou de jogar “Stop” na sala.
Como o futebol é considerado um “jogo de homem”, ele pode ser utilizado como um método de tortura a homossexuais. Conheço alguns que gostam de futebol, mas a grande maioria tem pavor, principalmente de jogar. Alguns até assistem aos jogos da copa. Será dever cívico, o desejo de gostar ou o gosto reprimido? Talvez se o futebol não fosse tão intrinsecamente ligado ao bullying e à homofobia, muitos gays iriam gostar desse esporte. Deve ser por isso que eles mantém esses padrões de “qualidade”.
Um pretenso gérmen do meu gosto pelo futebol foi aniquilado já na tenra infância: após uma “conferência psicológica” de minha mãe com uma vizinha psicóloga que segundo (muito segundo mesmo) minha mãe, alegou que eu tinha um comportamento muito feminino, fui obrigado a jogar futebol num campo barrento num sábado à tarde com meu pai. Eu me senti o extraterrestre daquele filme “Inimigo meu”: um cara estranho, num lugar estranho, com um sujeito estranho, chutando uma esfera quase que totalmente estranha ao meu cotidiano. Tudo tão estranho para ambos, que nunca mais aconteceu.
Até a adolescência, eu ainda conseguia fingir que gostava de futebol no período da Copa do Mundo. Mas há muitos anos já não dou a mínima e, dependendo do clima, sinto um enorme prazer em torcer pelo time adversário, como o foi o caso da Copa de 2006, na final do Brasil com a França. Adorei gritar “Allez, France; allez les bleues” na janela do prédio e tocar “La Marseillaise”, só pra irritar os brasileiros. Mas a maior parte do tempo das Copas, prefiro um bom par de ear plugs e um comprimidinho roxo de Frontal de 1mg.
Mais recentemente, o futebol invadiu um pouco a minha vida: tenho sobrinhos que gostam de jogar bola e me pedem pra jogar com eles. Isso eu consigo fazer com certa maestria. Sou eu, um completo incompetente nas artes da bola fazendo e defendendo gols num interminável jogo com um bebê. Mas isso também não foi o suficiente para me futebolizar. Acho realmente que sou afutebolístico.
E se eu detesto futebol tanto assim, por que estou falando dele? A culpa é do Corinthians. No último domingo, a final da copa sei lá do quê, contra o Palmeiras. Num tremendo ato falho passivo-agressivo, fui almoçar na casa de corintianos vestindo uma blusa verde. Tudo bem; era da seleção de futebol da Irlanda, mas era verde. O almoço foi tranquilo. Dureza foi aguentar a “sobremesa”: passar pelas ruas e avenidas da cidade, em dia de final, trajando a tal camisa. Parada indigesta. Mas como Deus é brasileiro e deve ser corintiano, ou são-paulino, ou flamenguista ou qualquer outro time cujas camisas sejam pretas, encontrei uma camiseta da academia no banco traseiro do meu carro. E lá fui eu, aliviado, confiante, pelas ruas da cidade, com meu escudo corintiano.
Cheguei a minha casa, são e salvo. Para meu desgosto, meus amigos já estavam lá, vendo o maldito jogo. E o Corinthians ganhou. Fiquei feliz. Porque se tivesse perdido, a violência na cidade seria maior. Eu compreendo a paixão de muitos pelo futebol. Deve ser parecida com a minha pela Juliette Binoche, pela culinária, por Paris. Eu só não compreendo a violência, o desrespeito, o vandalismo e o medo que se espalha pela cidade antes, durante e principalmente depois do jogo.
E hoje, no Facebook, enquanto um montão de amigos corintianos bradava sua vitória, mandando os “bambis” (acho que é o apelido que dão aos são-paulinos) chuparem e a “porcada” (esses devem ser os palmeirenses) sentar, vi algumas tímidas declarações sobre o saco cheio de ouvir falar em futebol, sobre o incômodo em não “pertencer” à distinta classe de admiradores do esporte, entre outras reclamações. Deu pra ver que, mesmo que sejamos minoria, existimos. E não existimos apenas como gays que têm medo da bola; existimos como pessoas, gays ou não, homens e mulheres, com gostos diferentes e respeitando o alheio, o diferente, o ímpar.
No finalzinho do jogo, vi gente chorando de emoção, arrancando os cabelos, abraçando calorosamente seus amigos na arquibancada. Não invejo seus gostos; eu invejo a possibilidade que eles têm de exibi-los livremente; de caminhar pelas ruas, bradando os nomes de seus times, suas preferências, vaidosos, orgulhosos, por todas as cidades e países. Liberdade essa que não fica confinada a ambientes circunscritos e protegidos com seguranças; em ruas de alguns poucos bairros sofisticados da cidade; uma única vez por ano numa grande avenida – seja Carnaval ou Parada - onde somos alegorias, entretenimento, até mesmo para os corintianos.
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