A MENINA FRÁGIL E A MOTOQUEIRA INTRÉPIDA

Andava pela rua na ensolarada tarde paulistana e me deparei com uma cena bizarra. Comum, mas bizarra: um moço na casa dos vinte e poucos anos “gritando baixinho” com uma menina, mais ou menos da mesma idade. Prováveis estudantes universitários, talvez alunos de um dos cursos de medicina mais concorridos do país. Ele, autoritário, peito estufado, deitando impropérios. Ela, cara de choro, de vítima, perdida, tipo cachorro sarnento. Não tive pena dela. Tive raiva. Raiva de ver cenas como essa, pelas ruas, nos dias de hoje. Detesto ver gente discutindo em público, principalmente quando o motivo da discussão é a vida privada, relacionamento. Raiva por imaginar o que será desse casal no futuro ou o que será dessas duas pessoas no futuro, se eles não se tornarem um casal. Será que ele baterá nela? Será que ela viverá, assim, sempre submissa, ostentando olhos roxos e dizendo que bateu a cara na maçaneta? Ou será que ele já bate nela? Será que ela um dia se libertará e dará uma sapatada na cabeça dele? Será que ela vai adquirir sífilis porque transou sem camisinha com ele e ele, que comeu várias outras, também sem camisinha, infectou-a? Tudo isso passou pela minha cabeça em reles segundos. Fui ao banco, fiz meus depósitos. Saí do banco, eles ainda estavam lá. Na esquina, na mesma posição.
Uma quadra adiante, parados no farol,vejo um “casal circunstancial”: um motoboy e uma motoqueira. Ele, com sua mochila, seu capacete, sua jaqueta California Racing, maneiras grosseiras. Ela, com sua scooter, seu capacete cor-de-rosa, pedindo informações a ele. Ele, cortez, conduziu-a até o endereço desejado. Saiu em disparada, assim que o sinal abriu. Ela saiu logo atrás, postura valente, jeito independente. E cada vez mais vejo mulheres assim: conversando de igual para igual com os homens, indo à luta, montadas em carros, bicicletas, motos ou vagões de metrô. Tenho orgulho delas. E também tenho orgulhos “deles”, que cuidam, que orientam, que ajudam, que compartilham.
Essas histórias, ambas observadas numa mesma tarde, são apenas uma fotografia. Pode ser que nada do que imaginei estivesse acontecendo com aquele casal. Pode ser que ele estivesse “p” da vida porque descobriu que ela o traiu ou que abortou um filho seu. Idem para o casal de motoqueiros. Pode ser que ele tenha se oferecido para guiá-la porque era um estuprador e queria aproveitar a chance de esfolar mais uma vítima. Pode ser, pode não ser. Quem vai saber? Exceto se esses casais se tornarem páginas de noticiário policial, ninguém vai saber.
Mas fiquei com vontade de ver o mundo mudando. Fechei meus olhos e imaginei um mundo onde as pessoas não violentadas, não são agredidas. Imaginei o quanto tempo as pessoas perdem brigando, xingando, humilhando e sendo humilhados. O ser humano é tóxico.
Mesmo que haja motivo para discutir, e muitas vezes há, que não seja no meio da rua, que não seja ofendendo ou sobrepujando o outro; somos (em tese) seres capazes de raciocinar, de compreender e até perdoar. Eu não acredito no perdão polido, não acredito em gente que perdoa tudo, que não sente raiva ou inveja nunca. Perdoar toma tempo, um tempo individual, particular, íntimo. Perdoar é deixar partir as pedras pesadas que carregamos, tornando-nos mais leves.
Tive vontade de dar uma sapatada na cabeça do moço estúpido e dar um chacoalhão pelos braços na menina sonsa. Será que adiantaria? Provavelmente não. Gente sonsa precisa de tempo para se libertar dos grilhões; é como o perdão; não há como antecipar esse tempo, porque esse tempo também é dela. O que a tornou tão sonsa e submissa? Um pai violento, uma mãe omissa? Depressão, síndrome do pânico, anemia? Resta a curiosidade e a esperança de ver dias melhores.
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