Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Sunday, May 20, 2012

O VAMPIRO DA CODEPENDÊNCIA



Nesses últimos dias, dentro e fora dos meus ambientes de trabalho, fui assombrosamente invadido por coisas, histórias e pessoas que me levaram a pensar sobre a tal codependência. Caminhando pelos arredores de Googleland, encontrei no Wikipédia uma definição fina mesmo sobre o tal fenômeno: “é um tipo de amor nocivo e uma tendência a se comportar de forma extremamente passiva ou adotar formas de cuidado exagerado que impactam negativamente os relacionamentos e a qualidade de vida. Frequentemente envolve a colocação das próprias necessidades em segundo plano, sendo excessivamente preocupado com as necessidades de outros.” Fecha aspas ( sempre quis escrever isso). No mesmo texto, a codependência também recebe o sinônimo de “narcisismo ao contrário”.

Não acho que todos os familiares e cônjuges de dependentes de seja lá o que for sejam codependentes. Acho normal algum grau de preocupação, de aflição e sofrimento quando algum ente querido está passando por uma fase difícil; a anormalidade está em pessoas que, como a própria definição, deixam de viver as próprias vidas e cuidar dos seus problemas e se ocupam integralmente da vida do outro. E não é preciso ser codependente de drogados. É possível ser codependente de quase tudo nessa vida. Além disso, é muito frequente que o codependente, ao perder o seu “objeto”, substitua por outro igual ou pior ao anterior. Já vi mulheres colecionarem casamentos com alcoólatras e dependentes de outras drogas; já vi pessoas destruírem as próprias vidas tentando “resgatar” algum imbecil da sarjeta, da vagabundagem, ao invés de puxarem o carro.  E por que será que isso acontece? Até hoje não consegui entender, porque já vi diferentes motivos desembocarem no mesmo tipo de comportamento.

No filme “As Horas”, Clarissa Vaughn (Meryl Streep) passa o tempo todo querendo animar o depressivo amigo Richard (Ed Harris), até que ele diz pra ela: “Já sei por que você continua cuidando de mim e não quer que eu morra. Porque se eu morrer, você vai ter que olhar para a sua vida.” Claro, não sejamos simplistas. Eu imagino que se eu estivesse doente como o Richard, seria bom que pessoas queridas cuidassem de mim, mesmo que eu não quisesse. Mas será que seria bom para elas que deixassem de viver suas próprias vidas para ficar no meu encalço? Espero que não tenha codependentes ao meu redor.

Assim, o codependente é alguém que escolheu não fazer mais nada além de viver para o outro. E nisso, também acha que todas as pessoas ao redor também devem dançar essa valsa, facilitando o caminho para que a dupla maluca possa caminhar pela vida. É realmente um casamento macabro, uma escravidão, um martírio. Eu tenho sentimentos ambíguos sobre eles. Tem pena e tenho raiva. Tenho compaixão e tenho ódio. Mas tenho uma predominância de sentimentos negativos pela gravidade desse aprisionamento, pela impossibilidade da libertação que se instala.

Na vida profissional ou pessoal, sinto um profundo desgosto ao ver diversas pessoas que poderiam usar essa energia dispensada, desperdiçada para coisas produtivas, criativas, vivas, ao invés de passar a vida acendendo velas na ventania, enxugando gelo, procurando agulha em palheiro, enfim, jogando uma vida fora em prol de alguém que talvez não valha a pena. Não estou dizendo que não se deve ajudar os que precisam; estou dizendo que é preciso saber a hora de parar. Inclusive porque a supressão da ajuda pode criar muito mais motivação para a mudança do que a própria ajuda. Quando uma criança está começando a andar, ninguém a está ensinando. Estamos apenas estimulando-a e amparando-a, dando confiança, oferecendo cuidado, prevenindo acidentes. Mas a criança andará em qualquer tempo, porque está no seu instinto, na sua genética. Ao contrário, se dermos pouco estímulo, se mantivermos a criança embrulhada em colchas e cobertores, talvez ela se atrase; talvez ela nem ande. Do mesmo modo, se oferecermos a um adulto tudo o que ele precisa, sem esforço, sem que ele peça, sem que ele deseje, a sua vontade atrofiará e ele ficará mais e mais dependente, reforçando esse vínculo patológico.

E nesse balaio, quem é vítima e quem é algoz? Todo mundo e ninguém. Embaralhados numa interdependência ultra-patológica, perdem-se pelo caminho, eximem-se das suas responsabilidades. É como se um garçom que segura duas bandejas oferecesse ajuda a um outro garçom. Resultado: desastre.

Será que vale à pena dizer ao codependente que está perdendo tempo em sua vida? Luta inglória. Vale tentar destacar o “dependente”,  como um apêndice, na intenção de libertá-lo dessa escravidão? Vão sacrifício. Não existe cura para vampiros. A cura para o vampiro é a morte com o sol ou com balas de prata: a iluminação ou a morte física. Como nos filmes de vampiros e zumbis e quaisquer tipos de seres aprisionados e escravizados, a libertação quase nunca chega e só consegue realmente fugir quem ainda não foi aprisionado. Eu gostaria de conseguir libertar algumas pessoas, de poder salvar algumas vidas, das drogas, dos vícios, das porcarias dos relacionamentos. Mas definitivamente não tenho vocação para ser vampirizado.



Sunday, May 06, 2012

“TUDO ACONTECE COM A ALDA!”


 Certa vez fui a uma reunião na casa de uma amiga.  O frio daquela noite justificava nosso aconchego, os queijos  e os vinhos, proporcionando um clima intimista.  E existe coisa mais intimista do que discutir peculiaridades  de nossas próprias análises?  Talvez até exista, mas com certeza isso é realmente muito intimista.

Discutimos tudo: horários prediletos,  decoração dos consultórios,  se deitava ou não no divã. Bia falou que preferia ir logo cedo ao analista, porque a mente estava “limpa”, pois não tinha passado pelas confusões cotidianas e ia direito ao ponto: ela mesma. Patrícia disse que gostava de ir no fim do dia, porque tinha muita dificuldade em acordar cedo. “Deus me livre – dizia – imagina chegar no meu analista com a cara amassada  de sono, o que ele vai pensar? Que passei a noite na gandaia?”.

E os preços? Ninguém ousou contar quanto pagava, mas especulou-se o quanto seria justo cobrar. Patrícia, estudante de psicologia, gabava-se por fazer análise com um “estrelão”,  muito conhecido no meio. “Além disso ele é um charme!” falava. Mas, na sua empolgação  com o conhecimento da psique humana, desatou a fazer elocubrações sobre técnicas psicanalíticas e criticar as histórias dos outros.

Débora,  recém-iniciada  na arte de ser analisada,  contou que sua analista  dava alguns exemplos da sua vida pessoal para ilustrar o que discutiam.  Patrícia deu um pulo da chaise: “O que? Que coisa mais antiética! Ela não tem neutralidade técnica!” Débora, em meio ao acesso de desvalorização ao analista alheio de Patrícia, alegou timidamente que talvez ela fizesse isso para ajudar a se soltar, pois como não tinha feito terapia nunca, tinha um pouco de dificuldade de falar de si. “Imagina! Que coisa maluca!”, arrebitava Patrícia.

Tentei explicar em vão a Patrícia que não vivemos em uma bolha, que os analistas não vivem em bolhas e são pessoas de carne, que respiram, arrotam, sofrem. Contei a ela que às vezes fico tocado com o sofrimento de alguns pacientes e que acho isso normal, porque não é porque somos terapeutas que devemos ser uma parede estéril, inanimada ao sofrimento do outro. Tenho uma amiga que disse que um terapeuta tem que ter amor para dar, porque uma boa análise é feita de muito amor. Concordo com ela. É preciso se apaixonar pelas histórias, pelas pequenas mudanças…. é como ver um filho crescer.

Fernando então disse que achava engraçado que sua terapeuta sempre tinha uma história em sua própria vida para exemplificar a cena vivida por ele ou encaixar no contexto.  Embora ele concordasse com a possibilidade dos exemplos, achava que às vezes sua terapeuta exagerava. “Cara, não é possível, tudo acontece com a Alda!” – gritou. E de seu grito indignado com a Alda, sua terapeuta que lhe roubava assuntos e histórias,  surgiu um silêncio, seguido imediatamente de uma gargalhada coletiva.  Todos desabaram com a Alda!

“Não é possível meu, tudo acontece com a Alda” – ele falou de novo. E voou cerveja da boca de um, queijo da boca de outro. Fernando valorizava o quanto sua terapeuta o havia ajudado.  Mas não conseguia aceitar a idéia de que ela tivesse tantas histórias e pior, as contasse!  Talvez a Alda tivesse mesmo que ficar com a boca fechada. Talvez ela não precisasse se tornar uma parede, um aparato indelével, depositário das impressões e emoções de Fernando.  Mas, de fato, ela poderia se poupar um pouco.  Não que as histórias não ajudem.  O problema é que os analisandos pagam para despejar  seu lixo nos analistas.  É neles que jogamos nossas culpas,  medos, cobranças, desesperos.  Precisamos de analistas que nos dêem colo. Seja como for esse colo, precisamos dele em muitos momentos. Alguém nos compreenda, que acredite em nossas histórias,  que respeite, até que uma “virada” aconteça o nosso modo de olhar a vida.  E é por isso, eu penso, e não pela tal impossível neutralidade, que Fernando gostaria que a Alda fosse muda. Talvez quizesse deitar no divã – já que o colo mesmo, seria difícil – e ficar ali, parado ou não, falando ou não,  pensando em sua própria vida.

A noite acabou, fomos embora. Mas a Alda se imortalizou em nossas mentes. A partir daquela noite, “Tudo acontece com a Alda” virou um símbolo, uma marca para representar as histórias mentirosas de uns. As intermináveis fábulas de outros.  Mas por que será que tudo acontece com a  Alda? Uma pergunta sem resposta.  Temos que agradecer a Alda,  o arquétipo das terapeutas  por tentar tornar nossa vida um pouco melhor. E tenho certeza que ela seria, se não aprontássemos  tanto.