“TUDO ACONTECE COM A ALDA!”
Discutimos tudo: horários prediletos, decoração dos consultórios, se deitava ou não no divã. Bia falou que preferia ir logo
cedo ao analista, porque a mente estava “limpa”, pois não tinha passado pelas
confusões cotidianas e ia direito ao ponto: ela mesma. Patrícia disse que
gostava de ir no fim do dia, porque tinha muita dificuldade em acordar cedo.
“Deus me livre – dizia – imagina chegar no meu analista com a cara
amassada de sono, o que ele vai
pensar? Que passei a noite na gandaia?”.
E os preços? Ninguém ousou contar quanto pagava, mas especulou-se o
quanto seria justo cobrar. Patrícia, estudante de psicologia, gabava-se por
fazer análise com um “estrelão”,
muito conhecido no meio. “Além disso ele é um charme!” falava. Mas, na
sua empolgação com o conhecimento
da psique humana, desatou a fazer elocubrações sobre técnicas psicanalíticas e
criticar as histórias dos outros.
Débora,
recém-iniciada na arte de
ser analisada, contou que sua
analista dava alguns exemplos da
sua vida pessoal para ilustrar o que discutiam. Patrícia deu um pulo da chaise: “O que? Que coisa mais
antiética! Ela não tem neutralidade técnica!” Débora, em meio ao acesso de desvalorização
ao analista alheio de Patrícia, alegou timidamente que talvez ela fizesse isso
para ajudar a se soltar, pois como não tinha feito terapia nunca, tinha um
pouco de dificuldade de falar de si. “Imagina! Que coisa maluca!”, arrebitava
Patrícia.
Tentei explicar em vão a Patrícia que não vivemos em uma bolha, que os
analistas não vivem em bolhas e são pessoas de carne, que respiram, arrotam,
sofrem. Contei a ela que às vezes fico tocado com o sofrimento de alguns
pacientes e que acho isso normal, porque não é porque somos terapeutas que
devemos ser uma parede estéril, inanimada ao sofrimento do outro. Tenho uma
amiga que disse que um terapeuta tem que ter amor para dar, porque uma boa
análise é feita de muito amor. Concordo com ela. É preciso se apaixonar pelas
histórias, pelas pequenas mudanças…. é como ver um filho crescer.
Fernando então disse que achava engraçado que sua terapeuta sempre
tinha uma história em sua própria vida para exemplificar a cena vivida por ele
ou encaixar no contexto. Embora
ele concordasse com a possibilidade dos exemplos, achava que às vezes sua
terapeuta exagerava. “Cara, não é possível, tudo acontece com a Alda!” –
gritou. E de seu grito indignado com a Alda, sua terapeuta que lhe roubava
assuntos e histórias, surgiu um
silêncio, seguido imediatamente de uma gargalhada coletiva. Todos desabaram com a Alda!
“Não é possível meu, tudo acontece com a Alda” – ele falou de novo. E
voou cerveja da boca de um, queijo da boca de outro. Fernando valorizava o
quanto sua terapeuta o havia ajudado.
Mas não conseguia aceitar a idéia de que ela tivesse tantas histórias e
pior, as contasse! Talvez a Alda
tivesse mesmo que ficar com a boca fechada. Talvez ela não precisasse se tornar
uma parede, um aparato indelével, depositário das impressões e emoções de
Fernando. Mas, de fato, ela
poderia se poupar um pouco. Não
que as histórias não ajudem. O
problema é que os analisandos pagam para despejar seu lixo nos analistas. É neles que jogamos nossas culpas, medos, cobranças, desesperos. Precisamos de analistas que nos dêem colo. Seja como for
esse colo, precisamos dele em muitos momentos. Alguém nos compreenda, que
acredite em nossas histórias, que
respeite, até que uma “virada” aconteça o nosso modo de olhar a vida. E é por isso, eu penso, e não pela tal
impossível neutralidade, que Fernando gostaria que a Alda fosse muda. Talvez
quizesse deitar no divã – já que o colo mesmo, seria difícil – e ficar ali,
parado ou não, falando ou não, pensando
em sua própria vida.
A noite acabou, fomos embora. Mas a Alda se imortalizou em nossas
mentes. A partir daquela noite, “Tudo acontece com a Alda” virou um símbolo,
uma marca para representar as histórias mentirosas de uns. As intermináveis
fábulas de outros. Mas por que
será que tudo acontece com a Alda?
Uma pergunta sem resposta. Temos
que agradecer a Alda, o arquétipo
das terapeutas por tentar tornar
nossa vida um pouco melhor. E tenho certeza que ela seria, se não
aprontássemos tanto.
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