Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Sunday, May 06, 2012

“TUDO ACONTECE COM A ALDA!”


 Certa vez fui a uma reunião na casa de uma amiga.  O frio daquela noite justificava nosso aconchego, os queijos  e os vinhos, proporcionando um clima intimista.  E existe coisa mais intimista do que discutir peculiaridades  de nossas próprias análises?  Talvez até exista, mas com certeza isso é realmente muito intimista.

Discutimos tudo: horários prediletos,  decoração dos consultórios,  se deitava ou não no divã. Bia falou que preferia ir logo cedo ao analista, porque a mente estava “limpa”, pois não tinha passado pelas confusões cotidianas e ia direito ao ponto: ela mesma. Patrícia disse que gostava de ir no fim do dia, porque tinha muita dificuldade em acordar cedo. “Deus me livre – dizia – imagina chegar no meu analista com a cara amassada  de sono, o que ele vai pensar? Que passei a noite na gandaia?”.

E os preços? Ninguém ousou contar quanto pagava, mas especulou-se o quanto seria justo cobrar. Patrícia, estudante de psicologia, gabava-se por fazer análise com um “estrelão”,  muito conhecido no meio. “Além disso ele é um charme!” falava. Mas, na sua empolgação  com o conhecimento da psique humana, desatou a fazer elocubrações sobre técnicas psicanalíticas e criticar as histórias dos outros.

Débora,  recém-iniciada  na arte de ser analisada,  contou que sua analista  dava alguns exemplos da sua vida pessoal para ilustrar o que discutiam.  Patrícia deu um pulo da chaise: “O que? Que coisa mais antiética! Ela não tem neutralidade técnica!” Débora, em meio ao acesso de desvalorização ao analista alheio de Patrícia, alegou timidamente que talvez ela fizesse isso para ajudar a se soltar, pois como não tinha feito terapia nunca, tinha um pouco de dificuldade de falar de si. “Imagina! Que coisa maluca!”, arrebitava Patrícia.

Tentei explicar em vão a Patrícia que não vivemos em uma bolha, que os analistas não vivem em bolhas e são pessoas de carne, que respiram, arrotam, sofrem. Contei a ela que às vezes fico tocado com o sofrimento de alguns pacientes e que acho isso normal, porque não é porque somos terapeutas que devemos ser uma parede estéril, inanimada ao sofrimento do outro. Tenho uma amiga que disse que um terapeuta tem que ter amor para dar, porque uma boa análise é feita de muito amor. Concordo com ela. É preciso se apaixonar pelas histórias, pelas pequenas mudanças…. é como ver um filho crescer.

Fernando então disse que achava engraçado que sua terapeuta sempre tinha uma história em sua própria vida para exemplificar a cena vivida por ele ou encaixar no contexto.  Embora ele concordasse com a possibilidade dos exemplos, achava que às vezes sua terapeuta exagerava. “Cara, não é possível, tudo acontece com a Alda!” – gritou. E de seu grito indignado com a Alda, sua terapeuta que lhe roubava assuntos e histórias,  surgiu um silêncio, seguido imediatamente de uma gargalhada coletiva.  Todos desabaram com a Alda!

“Não é possível meu, tudo acontece com a Alda” – ele falou de novo. E voou cerveja da boca de um, queijo da boca de outro. Fernando valorizava o quanto sua terapeuta o havia ajudado.  Mas não conseguia aceitar a idéia de que ela tivesse tantas histórias e pior, as contasse!  Talvez a Alda tivesse mesmo que ficar com a boca fechada. Talvez ela não precisasse se tornar uma parede, um aparato indelével, depositário das impressões e emoções de Fernando.  Mas, de fato, ela poderia se poupar um pouco.  Não que as histórias não ajudem.  O problema é que os analisandos pagam para despejar  seu lixo nos analistas.  É neles que jogamos nossas culpas,  medos, cobranças, desesperos.  Precisamos de analistas que nos dêem colo. Seja como for esse colo, precisamos dele em muitos momentos. Alguém nos compreenda, que acredite em nossas histórias,  que respeite, até que uma “virada” aconteça o nosso modo de olhar a vida.  E é por isso, eu penso, e não pela tal impossível neutralidade, que Fernando gostaria que a Alda fosse muda. Talvez quizesse deitar no divã – já que o colo mesmo, seria difícil – e ficar ali, parado ou não, falando ou não,  pensando em sua própria vida.

A noite acabou, fomos embora. Mas a Alda se imortalizou em nossas mentes. A partir daquela noite, “Tudo acontece com a Alda” virou um símbolo, uma marca para representar as histórias mentirosas de uns. As intermináveis fábulas de outros.  Mas por que será que tudo acontece com a  Alda? Uma pergunta sem resposta.  Temos que agradecer a Alda,  o arquétipo das terapeutas  por tentar tornar nossa vida um pouco melhor. E tenho certeza que ela seria, se não aprontássemos  tanto.


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