Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Tuesday, August 28, 2012

OS INÚMEROS TRABALHOS PARA SE TORNAR UM ANTROPÓLOGO.


Os Antropólogos falam de Epistemologia, de Anthropological blues, do Desencantamento de Weber, do Pessimismo sentimental. Doída e doida mesmo é a tarefa de se tornar um deles. Quando entrei no mestrado na Escola Paulista de Medicina, tudo foi bem mais fácil. Fiz um projeto, fiz prova, fiz lobby. Fácil entrar, difícil sair. Mas saí. O grande impulso para que eu curtisse a idéia de “ser cientista” foi ter conhecido a Antropologia e a pesquisa etnográfica. Foi amor à primeira vista. Tanto que mudei meu projeto, fiz entrevistas em profundidade, cheguei a acreditar que havia me tornado um pesquisador das Ciências Sociais. Cheguei a dar início a todo o trâmite para o doutorado. Fiz tudo de novo, mas emperrei numa coisa que é fundamental para mim hoje: faltava tesão, prazer. Acabei decidindo me enveredar pelo mundo da Antropologia. Queria (e ainda quero) estudar religiões afro-brasileiras.

Pedi a “bênção” para uma antropóloga muito querida, que foi minha co-orientadora no mestrado. Perguntei a ela se achava difícil eu conseguir entrar por não ser “uspiano”. Ela disse: “Não por não ser “uspiano”, mas por não ser antropólogo. E ela tinha razão. Não por preconceitos ou favoritismos; tornar-se antropólogo envolve uma magia. Não é uma magia exclusiva do antropólogo; a magia está em decifrar, em conhecer os códigos de linguagem daquele nicho. Mesmo que eu tenha feito pesquisas qualitativas, mesmo que eu tenha lido os autores deles e até eles próprios; eu não tenho domínio do complexo dialeto que falam os antropólogos. É como falar outra língua que não a materna: eu posso entender o que eles falam, assistir os filmes e ler os livros e revistas deles; eu posso saber rabiscar algumas coisas; mas o nativo saberá que eu não sou da sua pátria, porque falo com um sotaque de uma outra região. Nesse caso de um outro planeta do conhecimento, a psiquiatria.

Na minha primeira incursão como “pré-aluno”  da USP, tive a visão do inferno. Que coisa mais confusa é andar pela USP. Descobrir salas, achar pessoas. Um verdadeiro rito de iniciação. Aprender a se movimentar pelos labirintos da USP é um elemento de constituição da identidade do antropólogo. É uma verdadeira experiência de campo. Mas o meu desencantamento ainda não havia chegado. Fiz contato com professores, explicitei meu desejo e todos, quase em coro, pediram a mesma coisa: você tem que fazer um projeto. O primeiro deles, um professor muito respeitado das ciências sociais, me disse: “Você não sabe o que você quer.” E ele tinha razão. Estava querendo fazer uma viagem, de malas prontas, sem saber o destino. Comecei a ler, inclusive os livros dele e decidi o que queria. Fiz contato com um professor da Antropologia e, tentando um café amistoso, ele me ofertou a bandeja vazia: “Faça pelo menos um esboço de um projeto e depois a gente conversa.” Pedi sugestões de bibliografia e ele me disse: “Não vou sugerir nada. Quero ver o que você é capaz de produzir.”E foi isso que eu fiz. Li, reli, mandei. Ele criticou. Disse que meu projeto estava “pouco competitivo” para concorrer ao doutorado. Li mais coisas, corrigi o projeto segundo suas recomendações.



E chegou o dia da inscrição. Seis de agosto. Estava apreensivo, pois a inscrição tinha que acontecer naquele dia, pois estava de viagem marcada para o dia seguinte. Não podia faltar nenhum papel, nenhuma taxa; não podia perder a hora. E fiz tudo certinho. Difícil mesmo foi revisitar o “campo” da USP. Impossível encontrar o lugar para fazer as inscrições. Rua do Lago, Rua de cima, Rua do meio, Rua de baixo. Sobe escada. Desce escada. Sala 100. Sala 120. Sala 240. Moço, é lá. Senhor, é do outro lado. Quase perdi a hora da secretaria por pura divergência de informações. No meio do caminho descobri uma pedra. A pedra de ter que estudar para uma prova de conhecimentos específicos. E-L-I-M-I-N-A-T-Ó-R-I-A. Li os textos, sublimei a chatice de alguns e fiz minha prova após uma noite de plantão. Um “ensaio” relacionando os textos da bibliografia recomendada. Fiz. Fiz esforço para manter uma letra legível. Fiz um sacrifício para não dormir em cima da prova.

Pedi a bênção ao meu desejado futuro orientador. Ele me desejou boa sorte. Dois dias depois, compareço ao curso dele, para participar como ouvinte. Quatro horas e meia de discussão de artigos. Não havia lido os artigos, o que me colocava anos-luz de distancia daquela conversa toda. Não que eu não tivesse entendendo o que estava sendo dito. Mas era todo aquele problema do domínio da linguagem. Um aluno, digo, um aluno exemplar estendia uns oito livros sobre a mesa. Todos grifados. E, ao discutir os artigos, citava outros e mais outros e mais outros. Falava da página tal do Geertz, da página tal e tal do Lévi-Strauss. Na vida universitária e num seriado americano, isso se chama “geek”, outrora “nerd”; na psiquiatria isso é autismo de alto funcionamento, vulgo Asperger. Mas também tinha gente dormindo. Também tinha gente com cara de que não estava entendendo nada. E gente que achava que estava entendendo e viajava  à deriva na nau antropológica. Uma psicanalista, também aluna de primeira viagem, resolveu opinar sobre o texto que não leu. Foi bastante instrutivo observar a cara de observadores antropológicos dos professores e dos outros antropólogos observando aquele fenômeno estranho. Mas como ouvi de um ator numa peça de teatro uma vez, “a impulsividade é um dom; feliz de quem a tem.”

Saí cansado da aula. Fazem muitos anos que não fico na posição passiva de aluno. Principalmente num curso noturno. E mesmo antes desse evento, já era muito compreensivo com o sono dos alunos em minhas aulas, porque como eu mesmo explico: “eu durmo até nas aulas que gosto.” Mas graças ao bom Deus eu consegui não dar o vexame de dormir na minha primeira aula no curso e nem roncar de olho aberto, coisa que faço com relativa frequência. Saí de lá “alunizado”, querendo ler textos, participar dos grupos cibernéticos e das experiências de campo.

E hoje, em plena segunda-feira, o resultado da prova. Passei o dia entrando na internet para ver se o resultado havia saído. Ao contrário do que as pessoas todas pensaram e torceram por mim, mas que no fundo eu desconfiava depois da aula de quinta-feira, eu não passei. Não conseguia acessar a lista de aprovados pela internet aqui no hospital psiquiátrico. Por um momento fiquei parado, encolhido na cama do conforto médico, ensimesmado, encolhido, com medo. Pedi ao meu companheiro que olhasse para mim em casa. E já soube a resposta quando recebi a mensagem dele: “Xii”. “Xii”  quer dizer “fudeu”, na língua nativa. Depois ele me fez um afago cibernético: “Tá tudo muito confuso aqui. Estou te mandando a lista por email para você ver se é a certa.” É lógico que era. Reprovado. Agora, só no ano que vem.

Por um momento, tive um impulso de procurar bater em outras portas. Na PUC, na Universidade Federal da Bahia, na Unicamp, na Psicologia da própria USP. Mas voltei atrás. É lógico que ficou muito mais fácil voltar trás ao ver que a mensalidade do doutorado na PUC custa 1.800 reais. Puta que pariu! E que só para fazer a inscrição, há uma taxa de quase 300. Mas também cheguei à conclusão que, em qualquer porta que bater, terei que passar por esses mesmos estágios: contatos, projetos, provas, leituras, avaliações e até mensalidades. Pelo menos, eu já estou dentro da tribo. Já sei onde ficam as salas, compreendo os dialetos e, acima de tudo e ao menos por enquanto, estou sentindo prazer com o que estou fazendo. E que seja “eterno enquanto dure.” E ainda posso crer nos búzios, que me disseram que “não apenas dará tudo certo, como farei um excelente trabalho”. 

Thursday, August 16, 2012

A MORTE QUE PODE SER BOA: REFLETINDO SOBRE A NOSSA SENHORA DA BOA MORTE.



Dizem que Xangô tem medo da morte. Dizem que até abandona seus filhos e entrega-os aos cuidados de outro Orixá quando a morte deles se aproxima. Esse deve ser um dos motivos pelos quais a morte me apavora. Não me apavora em si a idéia de morrer, a finitude, o meu fim. Acho que me assusta a idéia da morte do outro, de ver o outro morrendo, de perder o outro. E isso, Freud e Xangô explicam. Perdi minha avô aos três anos de idade e aos cinco, meu avô foi embora de casa para morar com sua outra família. Perdi, na tenra idade, meus verdadeiros pais e esteios para viver no mundo. Essas perdas deixaram marcas profundas na minha personalidade e um importante reflexo dessas marcas é a minha evitação da morte.

Sim, eu evito a morte. Ajudo amigos, apoio pessoas que precisam, mas basta a doença e a iminência da morte chegarem, minha alma paralisa. Rezo pelos doentes e moribundos, mas não consigo ir visitar alguém num hospital. Nunca assisti a um enterro e vi apenas alguns velórios. Para dar pêsames a alguém, só depois de muito tempo da morte, porque falar da morte me dói. Sou péssimo companheiro nos momentos da dor da perda, porque sou capaz de chorar mais que o próprio enlutado. Choro nos filmes onde morrem as pessoas; sim, choro em todos.

E, pensando nas horripilâncias que a morte me causa, parei para pensar no motivo pelo qual fui buscar a morte numa festa popular baiana. Descobri a Festa da Nossa Senhora da Boa Morte na internet, pesquisando, há cerca de um ano, equivalentes nacionais para a Santa Muerte mexicana, para fazer uma postagem num momento em que várias pessoas queridas estavam perdendo familiares. E acabei encontrando essa linda festa, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, organizada há cerca de 200 anos por uma Irmandade fundada por negras alforriadas, com o principal objetivo de zelar pelo enterro nos negros escravos.

A parte religiosa da festa tem duração de três dias. No primeiro dia, a anunciação da morte, ocorre o cortejo com procissão da Nossa Senhora Adormecida pela cidade, saindo da Igreja da Ajuda até a Igreja da Irmandade, entoando hinos religiosos em louvor a Nossa Senhora, em homenagem às antigas Irmãs falecidas. Nesse dia, elas saem de branco, carregando castiçais iluminados. No segundo dia, ocorre o cortejo fúnebre e as Irmãs saem vestidas com bata branca e torço branco, longas saias negras plissadas e um xale preto e vermelho. Esse é o dia do verdadeiro luto, ao som de marchas fúnebres com a fanfarra da cidade. No terceiro e último dia, ocorre a Assunção de Nossa Senhora, levada aos céus por Jesus. As irmãs saem de vestidas das roupas típicas das baianas, mas pretas, com o lado vermelho dos xales à mostra, guias, contas, pérolas, anéis e pulseiras. A Assunção da Nossa Senhora da Boa Morte é o desfecho desejado: encontrar o caminho de um feliz descanso nos braços do Cristo.

Em cada dia de festa, as Irmãs ofertam aos fiéis um prato diferente: uma oferenda a cada dia da semana: pão, peixe e vinho no primeiro dia, feijoada, cozido, caruru e por aí vai. A parte profana da festa é o Samba de Roda, conduzido pelas irmãs, na Irmandade, em suas casas. Mas esse ano a parte profana não ocorreu, pela morte da irmã mais velha, denominada a Juíza Perpétua da Irmandade. Aos 106 anos, abriu seus braços para a Boa Morte uma semana antes da Festa. E, como disseram todos os habitantes da cidade, estávamos num momento muito especial, porque aquele era um luto verdadeiro e não apenas uma representação alegórica numa festa. Mas, mesmo que ela não tivesse morrido, o símbolo da Morte, do Luto, estava lá. E isso me fez realmente pensar sobre o luto.

Estranho que, alguns dias antes, na viagem de New York a São Paulo, conversava com a minha irmã sobre a morte: de quem iríamos cuidar, quem iria cuidar de mim quando eu estivesse muito velho, meu desejo de ser cremado e minhas cinzas jogadas em qualquer lugar, no mar, no mato, numa samambaia. Era a Boa Morte anunciando sua chegada.

Nos últimos anos, tenho reafirmado meus votos com minha religiosidade, com minha fé e tenho percorrido, passo a passo, uma estrada de reconciliação com as coisas espirituais. Mas, logo atrás dessa religação, vou religando os fios que me distanciavam das coisas reais da vida e da família, desatando nós, compreendendo coisas, descobrindo outras. Eu ainda não sei definir se meu esclarecimento é mais espiritual ou mais psicológico; só tenho a certeza de que tem um pouco de cada coisa, se é que são de fato coisas diferentes. E nesse cortejo, nesse passo a passo por uma cidade tão antiga quanto o próprio Brasil, sou capaz de me reconciliar com a Morte. Sou capaz de chorar as perdas, daqueles que morreram, dos amigos que partiram, pedir para aqueles que sofrem suas aflições poderem usufruir da dádiva de morrer em paz. Deixar a espírito da Boa Morte invadir minha alma, enterrar as dores, as mágoas, as dúvidas e as dívidas.

Eu ainda não sei direito o que sobra em mim depois de deixar a morte morrer bem. Um boa morte é aquela em que se morre de verdade, podendo renascer para uma nova vida, que não precisa ser eterna, mas que pode ser considerada eterna, ao passo que somos eternos andarilhos, caminhando de encontro à morte desde o primeiro dia que chegamos ao mundo.  Estou triste. Estou de luto. Vai um pedaço de mim nessa morte; e nesse “gap”, nesse “mourning”, fica um vazio, um sei-la-o-quê, até se anunciarem as boas novas.