OS INÚMEROS TRABALHOS PARA SE TORNAR UM ANTROPÓLOGO.
Os Antropólogos falam de Epistemologia, de Anthropological
blues, do Desencantamento de Weber, do Pessimismo sentimental. Doída e doida
mesmo é a tarefa de se tornar um deles. Quando entrei no mestrado na Escola
Paulista de Medicina, tudo foi bem mais fácil. Fiz um projeto, fiz prova, fiz
lobby. Fácil entrar, difícil sair. Mas saí. O grande impulso para que eu
curtisse a idéia de “ser cientista” foi ter conhecido a Antropologia e a
pesquisa etnográfica. Foi amor à primeira vista. Tanto que mudei meu projeto,
fiz entrevistas em profundidade, cheguei a acreditar que havia me tornado um
pesquisador das Ciências Sociais. Cheguei a dar início a todo o trâmite para o
doutorado. Fiz tudo de novo, mas emperrei numa coisa que é fundamental para mim
hoje: faltava tesão, prazer. Acabei decidindo me enveredar pelo mundo da
Antropologia. Queria (e ainda quero) estudar religiões afro-brasileiras.
Pedi a “bênção” para uma antropóloga muito
querida, que foi minha co-orientadora no mestrado. Perguntei a ela se achava
difícil eu conseguir entrar por não ser “uspiano”. Ela disse: “Não por não ser
“uspiano”, mas por não ser antropólogo. E ela tinha razão. Não por preconceitos
ou favoritismos; tornar-se antropólogo envolve uma magia. Não é uma magia
exclusiva do antropólogo; a magia está em decifrar, em conhecer os códigos de
linguagem daquele nicho. Mesmo que eu tenha feito pesquisas qualitativas, mesmo
que eu tenha lido os autores deles e até eles próprios; eu não tenho domínio do
complexo dialeto que falam os antropólogos. É como falar outra língua que não a
materna: eu posso entender o que eles falam, assistir os filmes e ler os livros
e revistas deles; eu posso saber rabiscar algumas coisas; mas o nativo saberá
que eu não sou da sua pátria, porque falo com um sotaque de uma outra região.
Nesse caso de um outro planeta do conhecimento, a psiquiatria.
Na minha primeira incursão como
“pré-aluno” da USP, tive a visão
do inferno. Que coisa mais confusa é andar pela USP. Descobrir salas, achar
pessoas. Um verdadeiro rito de iniciação. Aprender a se movimentar pelos
labirintos da USP é um elemento de constituição da identidade do antropólogo. É
uma verdadeira experiência de campo. Mas o meu desencantamento ainda não havia
chegado. Fiz contato com professores, explicitei meu desejo e todos, quase em
coro, pediram a mesma coisa: você tem que fazer um projeto. O primeiro deles,
um professor muito respeitado das ciências sociais, me disse: “Você não sabe o
que você quer.” E ele tinha razão. Estava querendo fazer uma viagem, de malas
prontas, sem saber o destino. Comecei a ler, inclusive os livros dele e decidi
o que queria. Fiz contato com um professor da Antropologia e, tentando um café
amistoso, ele me ofertou a bandeja vazia: “Faça pelo menos um esboço de um
projeto e depois a gente conversa.” Pedi sugestões de bibliografia e ele me
disse: “Não vou sugerir nada. Quero ver o que você é capaz de produzir.”E foi
isso que eu fiz. Li, reli, mandei. Ele criticou. Disse que meu projeto estava
“pouco competitivo” para concorrer ao doutorado. Li mais coisas, corrigi o
projeto segundo suas recomendações.
E chegou o dia da inscrição. Seis de
agosto. Estava apreensivo, pois a inscrição tinha que acontecer naquele dia,
pois estava de viagem marcada para o dia seguinte. Não podia faltar nenhum
papel, nenhuma taxa; não podia perder a hora. E fiz tudo certinho. Difícil
mesmo foi revisitar o “campo” da USP. Impossível encontrar o lugar para fazer as
inscrições. Rua do Lago, Rua de cima, Rua do meio, Rua de baixo. Sobe escada.
Desce escada. Sala 100. Sala 120. Sala 240. Moço, é lá. Senhor, é do outro
lado. Quase perdi a hora da secretaria por pura divergência de informações. No
meio do caminho descobri uma pedra. A pedra de ter que estudar para uma prova
de conhecimentos específicos. E-L-I-M-I-N-A-T-Ó-R-I-A. Li os textos, sublimei a
chatice de alguns e fiz minha prova após uma noite de plantão. Um “ensaio”
relacionando os textos da bibliografia recomendada. Fiz. Fiz esforço para
manter uma letra legível. Fiz um sacrifício para não dormir em cima da prova.
Pedi a bênção ao meu desejado futuro
orientador. Ele me desejou boa sorte. Dois dias depois, compareço ao curso
dele, para participar como ouvinte. Quatro horas e meia de discussão de
artigos. Não havia lido os artigos, o que me colocava anos-luz de distancia
daquela conversa toda. Não que eu não tivesse entendendo o que estava sendo
dito. Mas era todo aquele problema do domínio da linguagem. Um aluno, digo, um
aluno exemplar estendia uns oito livros sobre a mesa. Todos grifados. E, ao
discutir os artigos, citava outros e mais outros e mais outros. Falava da
página tal do Geertz, da página tal e tal do Lévi-Strauss. Na vida
universitária e num seriado americano, isso se chama “geek”, outrora “nerd”; na
psiquiatria isso é autismo de alto funcionamento, vulgo Asperger. Mas também
tinha gente dormindo. Também tinha gente com cara de que não estava entendendo
nada. E gente que achava que estava entendendo e viajava à deriva na nau antropológica. Uma
psicanalista, também aluna de primeira viagem, resolveu opinar sobre o texto
que não leu. Foi bastante instrutivo observar a cara de observadores
antropológicos dos professores e dos outros antropólogos observando aquele
fenômeno estranho. Mas como ouvi de um ator numa peça de teatro uma vez, “a
impulsividade é um dom; feliz de quem a tem.”
Saí cansado da aula. Fazem muitos anos que
não fico na posição passiva de aluno. Principalmente num curso noturno. E mesmo
antes desse evento, já era muito compreensivo com o sono dos alunos em minhas
aulas, porque como eu mesmo explico: “eu durmo até nas aulas que gosto.” Mas
graças ao bom Deus eu consegui não dar o vexame de dormir na minha primeira
aula no curso e nem roncar de olho aberto, coisa que faço com relativa
frequência. Saí de lá “alunizado”, querendo ler textos, participar dos grupos
cibernéticos e das experiências de campo.
E hoje, em plena segunda-feira, o resultado
da prova. Passei o dia entrando na internet para ver se o resultado havia
saído. Ao contrário do que as pessoas todas pensaram e torceram por mim, mas
que no fundo eu desconfiava depois da aula de quinta-feira, eu não passei. Não
conseguia acessar a lista de aprovados pela internet aqui no hospital
psiquiátrico. Por um momento fiquei parado, encolhido na cama do conforto
médico, ensimesmado, encolhido, com medo. Pedi ao meu companheiro que olhasse
para mim em casa. E já soube a resposta quando recebi a mensagem dele: “Xii”.
“Xii” quer dizer “fudeu”, na
língua nativa. Depois ele me fez um afago cibernético: “Tá tudo muito confuso
aqui. Estou te mandando a lista por email para você ver se é a certa.” É lógico
que era. Reprovado. Agora, só no ano que vem.
Por um momento, tive um impulso de procurar
bater em outras portas. Na PUC, na Universidade Federal da Bahia, na Unicamp,
na Psicologia da própria USP. Mas voltei atrás. É lógico que ficou muito mais
fácil voltar trás ao ver que a mensalidade do doutorado na PUC custa 1.800
reais. Puta que pariu! E que só para fazer a inscrição, há uma taxa de quase
300. Mas também cheguei à conclusão que, em qualquer porta que bater, terei que
passar por esses mesmos estágios: contatos, projetos, provas, leituras,
avaliações e até mensalidades. Pelo menos, eu já estou dentro da tribo. Já sei
onde ficam as salas, compreendo os dialetos e, acima de tudo e ao menos por
enquanto, estou sentindo prazer com o que estou fazendo. E que seja “eterno
enquanto dure.” E ainda posso crer nos búzios, que me disseram que “não apenas
dará tudo certo, como farei um excelente trabalho”.