Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Thursday, August 16, 2012

A MORTE QUE PODE SER BOA: REFLETINDO SOBRE A NOSSA SENHORA DA BOA MORTE.



Dizem que Xangô tem medo da morte. Dizem que até abandona seus filhos e entrega-os aos cuidados de outro Orixá quando a morte deles se aproxima. Esse deve ser um dos motivos pelos quais a morte me apavora. Não me apavora em si a idéia de morrer, a finitude, o meu fim. Acho que me assusta a idéia da morte do outro, de ver o outro morrendo, de perder o outro. E isso, Freud e Xangô explicam. Perdi minha avô aos três anos de idade e aos cinco, meu avô foi embora de casa para morar com sua outra família. Perdi, na tenra idade, meus verdadeiros pais e esteios para viver no mundo. Essas perdas deixaram marcas profundas na minha personalidade e um importante reflexo dessas marcas é a minha evitação da morte.

Sim, eu evito a morte. Ajudo amigos, apoio pessoas que precisam, mas basta a doença e a iminência da morte chegarem, minha alma paralisa. Rezo pelos doentes e moribundos, mas não consigo ir visitar alguém num hospital. Nunca assisti a um enterro e vi apenas alguns velórios. Para dar pêsames a alguém, só depois de muito tempo da morte, porque falar da morte me dói. Sou péssimo companheiro nos momentos da dor da perda, porque sou capaz de chorar mais que o próprio enlutado. Choro nos filmes onde morrem as pessoas; sim, choro em todos.

E, pensando nas horripilâncias que a morte me causa, parei para pensar no motivo pelo qual fui buscar a morte numa festa popular baiana. Descobri a Festa da Nossa Senhora da Boa Morte na internet, pesquisando, há cerca de um ano, equivalentes nacionais para a Santa Muerte mexicana, para fazer uma postagem num momento em que várias pessoas queridas estavam perdendo familiares. E acabei encontrando essa linda festa, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, organizada há cerca de 200 anos por uma Irmandade fundada por negras alforriadas, com o principal objetivo de zelar pelo enterro nos negros escravos.

A parte religiosa da festa tem duração de três dias. No primeiro dia, a anunciação da morte, ocorre o cortejo com procissão da Nossa Senhora Adormecida pela cidade, saindo da Igreja da Ajuda até a Igreja da Irmandade, entoando hinos religiosos em louvor a Nossa Senhora, em homenagem às antigas Irmãs falecidas. Nesse dia, elas saem de branco, carregando castiçais iluminados. No segundo dia, ocorre o cortejo fúnebre e as Irmãs saem vestidas com bata branca e torço branco, longas saias negras plissadas e um xale preto e vermelho. Esse é o dia do verdadeiro luto, ao som de marchas fúnebres com a fanfarra da cidade. No terceiro e último dia, ocorre a Assunção de Nossa Senhora, levada aos céus por Jesus. As irmãs saem de vestidas das roupas típicas das baianas, mas pretas, com o lado vermelho dos xales à mostra, guias, contas, pérolas, anéis e pulseiras. A Assunção da Nossa Senhora da Boa Morte é o desfecho desejado: encontrar o caminho de um feliz descanso nos braços do Cristo.

Em cada dia de festa, as Irmãs ofertam aos fiéis um prato diferente: uma oferenda a cada dia da semana: pão, peixe e vinho no primeiro dia, feijoada, cozido, caruru e por aí vai. A parte profana da festa é o Samba de Roda, conduzido pelas irmãs, na Irmandade, em suas casas. Mas esse ano a parte profana não ocorreu, pela morte da irmã mais velha, denominada a Juíza Perpétua da Irmandade. Aos 106 anos, abriu seus braços para a Boa Morte uma semana antes da Festa. E, como disseram todos os habitantes da cidade, estávamos num momento muito especial, porque aquele era um luto verdadeiro e não apenas uma representação alegórica numa festa. Mas, mesmo que ela não tivesse morrido, o símbolo da Morte, do Luto, estava lá. E isso me fez realmente pensar sobre o luto.

Estranho que, alguns dias antes, na viagem de New York a São Paulo, conversava com a minha irmã sobre a morte: de quem iríamos cuidar, quem iria cuidar de mim quando eu estivesse muito velho, meu desejo de ser cremado e minhas cinzas jogadas em qualquer lugar, no mar, no mato, numa samambaia. Era a Boa Morte anunciando sua chegada.

Nos últimos anos, tenho reafirmado meus votos com minha religiosidade, com minha fé e tenho percorrido, passo a passo, uma estrada de reconciliação com as coisas espirituais. Mas, logo atrás dessa religação, vou religando os fios que me distanciavam das coisas reais da vida e da família, desatando nós, compreendendo coisas, descobrindo outras. Eu ainda não sei definir se meu esclarecimento é mais espiritual ou mais psicológico; só tenho a certeza de que tem um pouco de cada coisa, se é que são de fato coisas diferentes. E nesse cortejo, nesse passo a passo por uma cidade tão antiga quanto o próprio Brasil, sou capaz de me reconciliar com a Morte. Sou capaz de chorar as perdas, daqueles que morreram, dos amigos que partiram, pedir para aqueles que sofrem suas aflições poderem usufruir da dádiva de morrer em paz. Deixar a espírito da Boa Morte invadir minha alma, enterrar as dores, as mágoas, as dúvidas e as dívidas.

Eu ainda não sei direito o que sobra em mim depois de deixar a morte morrer bem. Um boa morte é aquela em que se morre de verdade, podendo renascer para uma nova vida, que não precisa ser eterna, mas que pode ser considerada eterna, ao passo que somos eternos andarilhos, caminhando de encontro à morte desde o primeiro dia que chegamos ao mundo.  Estou triste. Estou de luto. Vai um pedaço de mim nessa morte; e nesse “gap”, nesse “mourning”, fica um vazio, um sei-la-o-quê, até se anunciarem as boas novas. 

2 Comments:

Anonymous Polyana de Almeida Ramos said...

Nossa, estou incrivelmente impactada pelo teu texto; você imprimiu uma força, uma grandeza e uma sensibilidade ímpares. Como estou emocionada e feliz ao mesmo tempo com este texto. Eventos como este me levam a crer que neste mundo ainda há muita coisa a surpreender. E, da maneira lírica com que você conduz o texto, alegra-me ter a oportunidade de ler dezenas de vezes palavras que juntas soam tão vivas que nascem e nos absorvem. Parabéns pelo texto!

5:27 PM PDT  
Blogger Unknown said...

Poly, obrigado! Pra mim é uma honra "ouvir" isso de você! Bjs!

9:33 PM PDT  

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