É PRECISO QUEBRAR ALGUMAS VIDRAÇAS

Na última sexta-feira, estava trabalhando no hospital. Entrei na sala privativa, corri em direção ao armário de medicamentos. Aquele armário de ferro, com paredes de vidro, usado em hospitais. A chave não estava lá. Perguntei à secretaria onde estava a chave porque precisava pegar lá alguns medicamentos. Ela disse que a chave estava sumida há dois dias e recomendou que eu fosse em outro lugar buscar a medicação. Expliquei que não tinha cabimento eu sair de lá caçando remédios pelos outros ambulatórios e creio que esse problema deveria ter sido resolvido antes.
E então veio a “solução imediata”: resolvi quebrar o vidro do armário. Ela disse que eu não deveria fazer isso, que era o cúmulo. Eu disse que o cúmulo era ter o remédio trancado, sem poder dá-lo à paciente.
Voltei ao armário, saquei uma garrafa térmica velha e enfiei vidro adentro. Saquei o medicamento que precisava, entreguei à paciente e voltei lá pra juntar os cacos. Não estava com raiva, não estava vivendo um “dia de cão”. Uma médica que estava por perto assistiu toda a cena, perplexa, como se tivesse presenciado um assalto ou uma pancadaria.
A faxineira do local colocou luvas de borracha e começou a catar os cacos com a mão. Pedi que ela parasse, porque, se ela se machucasse, eu seria culpado. Ajoelhei, catei os cacos todos, limpei o armário. Guardei os vidros em lugar seguro. Enquanto catava, me veio à mente que talvez pudesse ter chamado o chaveiro. Mas depois meu pensamento se reformulou, pensando que, não eu, mas alguém deveria ter chamado o chaveiro há dois dias.
Santidades pessoais à parte, ninguém, exceto os pacientes de um serviço público, iriam sofrer de fato com a falta da chave. Muito mais fácil deixar um “désolé” para o “pobre coitado” que vai ficar sem remédio do que se encarregar e resolver o problema da chave.
E essa história toda me fez pensar sobre como precisamos, vez ou outra, quebrar vidraças, arrombar portas, pular muros para conseguir resolver um problema. Ninguém quer fazer isso. Só os impulsivos e descontrolados, que muitas vezes fazem, mas não sabem o que buscam. Eu sabia o que queria ao quebrar a vidraça. E acho que, quando temos certeza do que queremos, coisa que nem sempre é tão simples, devemos “arrebentar” as porteiras que estão barrando nosso caminhar.
Eu fiz uma boa ação. Não só pela minha paciente, mas por outros pacientes e outros médicos que precisarão usar aquele armário. É claro que muitas vidraças que temos que quebrar não são tão “fáceis”. Vidros cortam, cacos perfuram dedos e se escondem nas frestas do chão, nas linhas da mão.
Hoje pedi à secretária que chamasse o vidraceiro para consertar o armário. Ela disse que não iria chamar, que se eu quisesse, que fizesse isso eu mesmo. Disse a ela que chamasse o vidraceiro, que era um conhecido meu e que era eu quem ia pagar pelo vidro, nem ela, nem a instituição. Quebrar vidraças tem dessas coisas. Temos que nos responsabilizar pelos cacos, pelos estragos que provocamos. Mas fica a marca, o aviso, de que somos capazes de quebrá-las.
4 Comments:
Não é a toa que você me é tão querido...
Leo de onde?
Leo, ex-secretário da "casa ".
Parabéns! Adorei a sua atitude e dei muitas risadas da cara da secretina me contando a história.
bjs,
Soraya
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