TIA TURCA

Outro dia contei algumas histórias sobre minha Tia Laila, e acho que resolvi falar dela como uma forma de matar as saudades e também porque a mensagem embutida era “vamos cuidar dessa bagunça”.
Eu acho que a “bagunça” da vida está bem mais ordem agora e hoje resolvi falar de outra tia, a Tia Turca. Não ela não era turca e nem descendente dos árabes, armênios ou libaneses que chamamos de turcos. Mas foi a forma que arrumei de remeter a história à pessoa, sem dizer seu nome.
Lembrei dela ao iniciar os preparativos para o jantar de Ano Novo. Vou assar um pato, recém decapitado, recheado com arroz, castanhas e frutas, acompanhado de ciboulettes e batatas escuras. E enquanto picava os ingredientes, preparava a marinada e organizava tudo, lembrei dela, porque pensei em “ordem”. Sim, ordem, controle, simetrias, coleções, arquivos. Tia Turca é uma das pessoas mais obsessivas que já conheci.
Minha mãe dizia que Tia Turca tinha mania de guardar coisas porque passou muita miséria quando era criança. Mas sua irmã Vivi passou pelas mesmas agruras e ainda joga tudo fora. Acho que os hábitos de Tia Turca podem ter sido influenciados pelos anos de miséria, mas creio que a obra maior se deva aos genes de meu avô.
Sim, meu avô foi um homem fantástico e produziu coisas fantásticas. Mas creio que “desviou” todo o seu talento para as grandes realizações profissionais, e esqueceu de cuidar um pouco da família, deixando seus genes atuarem livremente. Somado a isso, era um homem com várias características obsessivas. Lembro-me quando ele ia ao supermercado e tinha uma lista enorme, escrita a mão, com todos os produtos que sistematicamente comprava e, antes de iniciar a compra propriamente dita, percorria todo o mercado anotando o preço dos concorrentes e só então decidia pelos produtos. Não é preciso dizer que uma compra levava três a quatro horas a mais do que uma compra normal.
E minha Tia, sendo a filha mais velha, mais exemplar e mais edipianamente influenciada, tratou de “caprichar” na similaridade dos comportamentos.
Como toda pessoa obsessiva, Tia Turca gostava de guardar. E entre seus “guardados”, alguns deles são realmente memoráveis, como todas as faquinhas de Bolo Pullmann®, todas as colheres do sabão em pó Skip®, todos os chaveiros da Turma da Bardahl®, todos os potes de margarina, todas revistas Veja desde 1968, todas as canecas de quentão, vinho quente e chopp de todas as festas ocorridas e muito mais!!!
Ela também colecionava receitas. Recortava todas as receitas de todos os jornais e revistas que lia, colava em um caderno, enumerava e enunciava cada uma delas. Nem sei quantos cadernos possuía, mas comumente, se alguém comentava algo como “eu queria aprender a fazer compota de morangos selvagens”, ela respondia “devo ter essa receita guardada em algum lugar”. Passadas algumas semanas, ela aparecia com a receita transcrita, enumerada, enunciada e com bibliografia citada. Algo assim: “Compota de morangos selvagens, Receita n.o 3745, Folha da Tarde, 23 de fevereiro de 1967”. Sem falar que possuía uma letra maravilhosa.
Lembro que, quando ia na casa dela, sentávamos na mesa para tomar lanche e, cada vez que alguém terminava de passar manteiga no pão, ela pegava um guardanapo e passava lentamente nas bordas do pote e alinhava toda a manteiga com a faca.
Ela tinha outro hábito estranho: toda roupa nova que comprava, descosturava e costurava novamente, à mão, sempre dizendo que “as costuras de máquina eram muito fracas”. O resultado era previsível: as costuras das roupas incomodavam tanto, de tão de grossas, que muitas das roupas eram impossíveis de se usar.
Tia Turca também tinha mania de venenos e naftalinas. Tudo em sua casa era regado a naftalinas e, em todos os rodapés de sua casa, pelo menos duas “faixas” de veneno eram distinguíveis: o branco, destinado às baratas, e o azul, destinado aos ratos. Não que houvessem tantos ratos e baratas por lá, mas era sempre uma precaução. Os gatos também tinham seus “venenos”. Para evitar que dormissem em cima da máquina de lavar, ela colocava, todos os dias montinhos de pimenta do reino sobre as cinco máquinas de lavar que possuía. Sim, ela possuía várias. Ao todo, somando com as máquinas da casa em São Paulo, da casa de praia e da casa de campo, deviam ser umas dez.
Mas suas manias não eram só defeitos. “Embutidas” nessas manias, estavam várias atitudes generosas conosco, como dar as roupas “recosturadas”, abastecer nossas listas de material escolar todos os anos, porque já tinha tudo guardado e sempre oferecer maravilhosas iguarias que preparava, pois cozinhava muito bem. Não que cozinhasse sempre. Sua ida à cozinha envolvia tantos detalhes e preparativos, que acabava constituindo um evento raro. Lembro de uma vez que fui à sua casa e lá estava ela, com um lenço amarrado na cabeça, debruçada na pia, cortando milimetricamente azeitonas e outros temperos para fazer um azeite temperado.
E, apesar de possuir todo tipo de roupa para todas ocasiões, usava sempre a mesma: uma blusa amarela manchada de alvejante, uma calça Adidas® azul com as listras brancas despencando pelo caminho. Essa foi a roupa que durou mais tempo em seu corpo. Mas havia também a saia jeans com uma camiseta branca. As sandálias Havaianas® eram sempre as mesmas.
Faz alguns anos que não a vejo. Hoje, esses dias, essa semana, tenho me lembrado de pessoas que vejo pouco, quase não vejo ou que mesmo não vejo mais. Eu não sei por quantos anos mais Tia Turca continuará viva. Mas escrever sobre ela me fez recordar, fez com que sentisse saudades e deixou a certeza de que os anos podem passar, mas ela é uma dessas pessoas que ficará viva em minha mente e em meu coração.
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