Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Thursday, July 08, 2010

SOFIA NAS BORDAS DO MUNDO



“Iansã comanda os ventos
/ E a força dos elementos
/ Na ponta do seu florim
/ É uma menina bonita
/ Quando o céu se precipita
/ Sempre o princípio e o fim” (As Ayabás, Caetano Veloso e Gilberto Gil)


“Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar” (Assim Falou Zaratustra, NIETZSCHE, 1885)

“Brilhantes, brilhantes, brilhantes botas de couro / Garotinha açoitada no escuro” (Venus in furs, Velvet Underground)


Sofia não era a sofia do livro famoso. Mas era uma menina solitária trancada num corpo de mulher. Vagava por esse corpo, sozinha, feito calabouço escuro. Feito bolinha de lata dentro de chocalho, a menina caminhou a vida inteira, dentro da outra que era ela mesma. Essa outra, uma sofia triste e desencontrada que por fora fingia estar rindo, não era a verdadeira. Era uma casca dura que, ao mesmo tempo que aprisionava, protegia a menina das dores do mundo. Dizem que foi até a própria menina que criou a casca de mulher para não ser machucada pelos homens.

A menina sobrevivia aos balanços de sua couraça. Suportava o frio, o calor, a chuva, a seca. Quase se afogava com a chuva, quase morria de sede, quase se afogava no dilúvio no próprio choro, quase se engasgava com a secura dos próprios lábios. Sofia vivia um “quase” que eram bordas da vida, limites da alma. Pelas frestas das cascas da adulta, Sofia também se nutria e se aquecia com o sol e com o cheiro do orvalho.

Como quando tropeçamos e desabamos através de uma escadaria, Sofia caiu no terreiro. Lá, pelo tanto que chorava porque sangrava sua alma ferida, pela fraqueza com que caminhava pela vida, lhe disseram que era filha de Yemanjá. A menina deixou que a casca se agarrasse aos azuis da deusa, como forma de trazer colorido à vida, para que a casca se parecesse com algo vivo.

Ser azul lhe trouxe paz de espírito. Crer em ser filha de Yemanjá lhe trouxe sensação de perdão, de poder perdoar e poder esquecer. A Umbanda, pelas cores e pelo canto triste de Yemanjá, pelas doces palavras da preta-velha e pelo sorriso do Erê, fizeram a menina crer que estava “quase” curada. Mas ainda assim não era inteira. Machucava as mãos e pés, feria as carnes como se exteriorizasse as feridas em sua alma de menina. Era “quase” curada porque as cores pintavam a casca; porque o canto era ouvido pelo ouvido da casca. Porque a casca havia se tornado tão dura que protegia até de coisa boa. A menina sangrava a casca pra ver transformar a “coisa” em mulher. Talvez fosse por isso que Sofia não se recuperava. Queria crer, mas não conseguia. Queria lutar, e de fato lutava, mas não vencia.

E nesses dias tristes, escuros e frios, vem o vento, que parece entristecer mais esse tudo tão triste. Mas é o vento que alimenta o fogo, é o vento que transporta as sementes. É o vento que dá vida às faíscas, transformando-as em labaredas.

Foi o vento que levou Sofia àquele barracão. Nunca tinha visto Candomblé antes. Estranhou as roupas do povo do Keto: mulheres de ombros de fora, com o tal pano amarrado forte no dorso. Viu a dança dos Orixás, assustou-se com os cantos, os “ilás” dos santos. Mas de tudo aquilo, o que mais lhe chamou atenção foram as danças de Yansã. Sacudiam-se, exuberantes, vigorosas, exibidas e vaidosas. Tremelicavam pelo salão, chacoalhavam-se em frente aos atabaques. De olhos fechados, colares de contas vermelhas e terracota, eram como as labaredas das fogueiras de São João.

Partiram as Yansãs, chegam os baianos e foi o baiano, do qual chegou a desdenhar no início, que rasgou a mulher-casca para libertar a menina prisioneira-protegida. Disse a ela que, entre outras coisas, pesava sobre ela, sobre toda a sua existência o “encosto” da parente perturbada. Com a ingenuidade da menina que era, Sofia perdoou aquela que a fez sofrer durante toda uma vida. Perdoar, na acepção mais correta do termo, é deixar partir; deixar que rolem as pedras pelos rios da vida; é desfazer-se dos pesos desnecessários para seguir o caminho mais leve. E Sofia perdoou, deixou partir.

Agora, liberta, não era mais necessário querer morrer. Estava curada. Mas do mesmo modo que acontece quando soltamos os passarinhos há anos presos nas gaiolas, presos e protegidos, Sofia não se deu conta que a casca-mulher que habitava era seu veículo de vida. Sem ele era criança, bebê, indefesa e ingênua. Com a visão dos recém-nascidos, ela não podia enxergar quem estava à sua volta para ajudar e amparar. Sentiu-se abandonada. E agora sem a casca para que pudesse se esconder.

Então Sofia sentou no chão e chorou, como fazem as crianças. Mas foi desse choro que brotou um rio de vida que a conduziria à sabedoria, ao equilíbrio. Eu sei que Sofia crescerá. Será criança amanhã. Será mulher depois de amanhã. E poderá ser feliz, talvez para sempre. Eu me sentiria feliz se fosse ela. Livre dos encostos, livre dos pesadelos.

Essa não é uma obra de ficção. É uma história de devoção e crença. E hoje, num momento em que experimento um tipo de liberdade parecida com a de Sofia, desejada, esperada, planejada, fico como quando ganhei meu primeiro computador: queria muito, mas na hora, não sabia como funcionava. Sofia, a sábia, a sabedoria. Tem um pouco dela em mim. Tem um pouco de sabedoria nos meus atos e tem um pouco de criança perdida no turbilhão das coisas da vida.

Parei para pensar porque é que Sofia foi “identificada” como filha de Yemanjá num certo momento. Não acho que foi simples engano. Talvez fosse uma “onda” de limpeza e proteção. Dizem que, na criação do mundo e, principalmente na criação dos seres, foi Yemanjá a responsável pela construção das cabeças. E é por isso que ela, por mérito, guarda as cabeças de todos os filhos na Umbanda. Ela é a deusa da purificação, da transformação e, desse modo, do perdão. Para mim, Sofia não é filha de Yemanjá. Sofia estava sob a “guarda”, sob os “odus” da deusa. Enquanto sua alma sangrasse, as águas sagradas do mar, com seu sal que tudo cura e purifica, estavam lá para transmutar as dores e preparar Sofia para o grande perdão.

É como quando a gente toma aquele banho bem demorado para poder colocar uma roupa nova para uma festa. No caso de Sofia, uma festa de nascimento. Ou renascimento. Dizem que a palavra religião vem do termo “religare”, ou ligar-se novamente. Pode ser religar-se com a Deidade, com o Supremo ou ainda, religar-se consigo mesmo. Yemanjá lavou a alma e a cabeça de Sofia para que pudesse colocar sua roupa vermelha de Yansã.

Agora sim, uma mulher de verdade. Não a Sofia farsa, que parece triste e finge ser alegre. Não a Sofia calma, sinuosa e misteriosa como aparentam as Yemanjás. Não a Sofia que canta o canto triste, mas a Yansã guerreira, forte, decidida, vermelha, fogosa, que brada seu canto de guerra.

Boa Sorte, Sofia.

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