
Parte I – A história de Clara
Clara era uma mulher que irritava as pessoas. O que aconteceu com ela? Como isso começou? Creio que desde sempre Clara foi agitada. Nasceu assim, de olhos bem abertos, eriçada, como um peixinho. Recebeu esse nome de seu pai, não porque tinha a pele clarinha, como acontece com as outras Claras. Mas porque seu pai era devoto de Santa Clara e achou que ia dar sorte.
Clara cresceu numa família de vários irmãos e creio que nem Santa Clara suportou seu comportamento. Seus pais faziam promessas, missas, oferendas. Levaram-na até um centro de umbanda para fazer descarrego. Nada adiantou. Clara permanecia agitada, batia nos irmãos, brigava na escola, chutava professores. Foi então que decidiram levá-la a uma psicóloga. Estava na moda naquela época. “Doutora” Margarete era formada na Sorbonne, com pós-graduação em crianças agitadas e achava que tudo era culpa dos pais. Achava Clara uma coitada, vítima da exigência opressiva de seus pais. Toda sessão os culpava, dizendo que eles odiavam a filha, que a rejeitavam e essa era a raiz do seu comportamento que, segundo ela, era praticamente normal e eles é que insistiam em transforma-la em doente.
Dona Clarinete, mãe de Clara, sentia-se a pior das matronas. Tinha seis outros filhos e nunca havia passado por isso com nenhum deles. Tampouco a humilhação de ser acusada de incompetente, rejeitadora e má por uma “doutora da Sorbonne”, como se referia à psicóloga. “Seo” Clarindo, o pai, tinha mais esperanças. Apesar do pouco estudo, passou a ler livros de psicologia indicados pela “Doutora” e admirava tanto seu trabalho que Dona Clarinete foi ficando enciumada. E longos meses se passaram, Clara freqüentando as sessões com a “Doutora” duas vezes por semana. Nada havia mudado, mas a “Doutora” achava que Clara havia feito progressos. Coisa nenhuma. Na sua sala de ludoterapia, Clara destruía todos os brinquedos, rabiscava paredes, rasgava papéis. A “Doutora” achava ótimo, dizia aos pais que ela estava exprimindo a sua agressividade... Até o dia que ela rabiscou a foto autografada de Jean Paul Sartre.
- Menina, que coisa feia, onde já se viu? Por que você fez isso?
E Clara deu de ombros. E ainda mostrou a língua. Pré-explosiva, a “Doutora” tentou manter a compostura, tirou o quadro da parede e disse:
- Agora nós vamos pegar ....o quadrinho.... da titia.... e vamos tentar.... arrumar....não é?
Clara deu uma olhada maligna para aquele homem do quadro. Não ia com a cara dele, achava que ele tinha cara de deboche. E, decididamente, enfiou a canetinha vermelha na foto, terminando o seu trabalho artístico. A “Doutora” enfureceu. Ficou vermelha como a canetinha e começou a gritar com Clara, sacundindo-a pelos ombros. E Clara decidiu lançar mão do seu “tempo lógico” metendo a bonita ortopédica na canela da terapeuta.
- Essa menina é louca!!!! Sua desparafusada!!! Você precisa é de psiquiatra!!!!
Assustados com o barulho, os pais de Clara entram na sala e encontram Clara arrancando os cabelos da “Doutora”, chorando, gritando e abraçada ao Sartre. Dona Clarinete não suportou as ofensas e aproveitando para descontar o ciúmes da perfeita interação psicológica da “Doutora” com seu marido, tratou de enfiar sua bolsa na cara da psicóloga, puxou Clara, o marido e saíram para nunca mais voltar.
Como Clara continuava agitadíssima, a diretora da escola exigiu que ela fosse levada a um psiquiatra, sob pena de não poder continuar naquela escola. Seria uma vergonha, pois todos os irmãos e os pais de Clara haviam estudado lá.
E lá se foram, Clara, Dona Clarinete e “Seo” Clarindo ao psiquiatra, o Professor Adolph Hittlebaun. Homem sério, respeitado pela comunidade psiquiátrica. Cinco minutos com Clara e dez minutos com os pais foi suficiente para diagnosticar o problema e prescrever Gardenal®. Nos primeiros dias foi uma beleza: Clara ficou calma, serena, incrivelmente pacífica. Mas após uma semana dormindo ininterruptamente, a família começou a ficar desconfiada que esse não era um bom caminho. Resolveram suspender a medicação e o demônio voltou das trevas. Clara passou por vários outros psiquiatras, tomou vários remédios e nada resolveu.
Cansados, os pais de Clara tiveram um idéia brilhante. Resolveram fugir. Juntaram dinheiro, compraram passagens para a Europa, perucas, casacos. Simularam um acidente de trator na fazenda da família e nunca mais voltaram. Talvez estejam vivos por aí, pela Europa ou no Caribe. E Clara passou a viver sozinha. Os irmãos também pensaram em fugir, mas seus pais deixaram um cláusula no testamento que eles receberiam “mesadas” da herança com a condição que permanecessem todos unidos, sem exceção. Clara cresceu, virou mulher. Mas a cabecinha....
To be continued.....
Parte II - Vida e Morte de Clara.
E Clara cresceu, cresceu,cresceu… Cresceu tanto, mas tanto que ainda adolescente foi pedida em casamento pelo Monstro de Marshmellow. Ela tinha até aceitado, mas o noivo desistiu no caminho do altar porque clara comia os pedaços de marshmellow do seu corpo, fosse por raiva ou por carinho ou por fome mesmo e ele percebeu que não existiria mais até chegar a data do casamento. E então fugiu para nunca mais voltar....
O fato é que Clara se tornou adulta e, ano após ano, se tornava maior e mais chata. É claro que não acho o tamanho de Clara o seu maior problema. O grande dilema é que enquanto seu tamanho crescia em progressão aritmética, sua chatice e seu dom de irritar as pessoas crescia em progressão geométrica. Geométrica não ! Exponencial... Sei lá!
Passado algum tempo, Clara achava que estava muito gorda. Percebia que todos os saltos de todos os sapatos quebravam logo na primeira vez que os colocava; os botões de suas blusas estouravam quando ela ria e gastava um sabonete inteiro a cada banho que tomava. E olha que ela tomava cinco banhos por dia... Foi então que começou a fazer regime. Nada feito. Vigilantes do Peso, Herbalife, Meta Real, Dieta de South Beach, Dieta do Chico Xavier... nada funcionou. Não porque algumas delas não fossem boas, mas porque Clara não conseguia se manter em dieta por mais de três dias. Começava toda empolgada no primeiro dia e no segundo já estava mordendo as pessoas de raiva e explodindo a qualquer momento. Recaía nos chocolates no terceiro dia.
Resolveu tomar uma atitude radical: fez cirurgia de estômago. A cirurgia correu bem, mas após a cirurgia as coisas começaram a ficar difíceis. Clara sentia fome, muita fome. Fazia esforço para se segurar, mas ficava irritada, descompensada mesmo. Daí comia tudo o que dava para comer: leite condensado batido com sonho de valsa, leite de coco com açúcar, brigadeiro batido com iogurte. Comia o que cabia, vomitava logo depois e logo depois comia de novo. Cansada dessa vida, foi conversar com o médico que a operou:
-Doutor, o senhor precisa dar um jeito nisso...
-Mas como eu posso te ajudar, Clara?
-Não sei cara, se vira! Quero meu estômago de volta!!! Eu era muito mais feliz assim!!!!
-Clara, isso não é possível!
-Não fala isso! Eu quero meu estômago!!! – E num ímpeto de fúria, catou o médico pelo colarinho – Eu quero meu estômago!!!!
-Clara, você precisa se consultar com um psi.....
-Psi o que? Psiquiatra? Você rouba meu estômago e acha que eu estou louca? Eu vou processar você por ter roubado o meu estômago!!!
E a recepcionista do consultório entrou na sala ao perceber a agitação.
-Dona Clara, se acalme!
-Acalma coisa nenhuma!!! E sai daqui você!!! – Respondeu irada Clara, dando um soco na cara da recepcionista. Eu vou embora, mas fique sabendo que eu vou acabar com a sua vida!!!!
Saiu batendo portas e empurrando pessoas pelo caminho. Ao chegar na recepção, suas pernas tremiam de nervoso. Não conseguia falar, não conseguia andar. Uma moça que estava ao lado percebeu seu nervosismo e se aproximou para confortá-la. Ela tinha um jeito estranho de falar e uma verruga enorme no lábio superior, mas clara gostou do seu jeito:
- Mocha...pocho ajudar vochê? Vochê tchá muitcho nervoja... Quer uma balinha? Toma...é uma delícha!
E Clara aceitou a balinha de canela que Adriana lhe ofereceu. Sim, Adriana era seu nome. Drica para os íntimos. Quando Clara colocou a bala na boca, nasceu uma grande paixão. Sentia que seus problemas estavam resolvidos, que havia encontrado finalmente o que procurava e que essa seria uma companhia para a vida inteira: a balinha de canela. Sabe aquelas balinhas vermelhas de canela? Sim, essas mesmo? Quando Clara colocou a primeira na boca, sentiu um alivio da ansiedade, da fome, do desconforto. E, de fato, Clara não vivia sem ela. Todo dia, toda hora, o dia inteiro Clara tinha uma bala de canela na boca. Mas isso não a tornava nem mais calma, nem mais simpática e nem mais quieta. Ela reclamava com a boca cheia mesmo. E ainda por cima cospia gotinhas vermelhas e bafo de canela quando brigava.
E a Drica? Não, não foi amor à primeira vista. Mas ficaram juntas assim mesmo, porque o pai de Drica era o dono da fábrica de balas de canela.
Então foram morar juntas no apartamento de Clara e viveram felizes até o dia em que o pai de Drica se suicidou. A fábrica de balas de canela havia falido há tempos e os prejuízos ficaram ainda maiores com a entrada de Clara para a família, pelo tanto de balas que consumia. Daí a situação se agravou. Elas que antes viviam numa situação confortável revendendo muambas da “Hello Kitty”, agora teriam que arranjar outra forma de complementar os ganhos.
Juntas tentaram vários novos negócios, mas nada dava realmente certo, porque Drica sempre roubava os fregueses e Clara sempre se irritava com eles, porque não acreditava que haviam sido roubados por Drica. Foi daí que começaram a fazer bolsas com retalhos do Brás. Venderam muitas. Eram baratas, simpáticas e fáceis de fazer. Ganharam muito dinheiro com isso e Clara achou que precisavam incrementar a produção.
- Vamos bordar algumas pedras nelas, acho que vai ficar bonito!
-Acho um abchurdo!!! Pra que gastar mais dinheiro se as pechoas gostcham axim mesmo? – Retrucava Drica.
-Chega de discussão “mozão”! Eu quero assim, vou fazer assim e está decidido.
Foi então que resolveu começar a bordar as tais bolsas. Tinha um trabalho do cão: passava noite e dia bordando, bordando, bordando. Nunca achava que estava bom. Picava. Desfazia tudo e começava outra vez. Certa noite estava tão cansada que dormiu em cima dos bordados. Foi então que teve um sonho: via-se carregando uma bolsa amarela, enorme, bordada com as suas balinhas de canela. Acordou sobressaltada e maravilhada com o seu sonho. Achava que era uma mensagem do além, provavelmente de algum estilista falecido.
No dia seguinte foi correndo à Rua 25 de Março comprar seus apetrechos. Comprou uma fazenda de cetim amarelo do mais caro e encontrou bolinhas de gude bem vermelhas, reluzentes, como suas balas de canela. Mal chegou em casa, começou a bordar as bolotas vermelhas no cetim amarelo. E foi ficando tão encantada com sua obra que não fazia outra coisa. Não saia mais do sofá, exceto para ir ao banheiro.
Passado quase um mês, o trabalho não havia chegado nem à metade. Ela nem prestava mais atenção em Drica, que sentia uma profunda irritação com aquelas bolotas. Nem as balas de canela Clara queria mais. Só pensava em sua linda bolsa bordada! Não ouvia o telefone tocar, nem ouviu Drica dizer que iria viajar a trabalho e ficaria fora duas semanas.
Clara bordava, bordava, cochilava sobre a peça; acordava e voltava a bordar. Não comia, não bebia e assim nem ia mais ao banheiro para não perder tempo de trabalho. Nem sei dizer quantos quilos Clara emagreceu. O fato é que foi ficando magra, pálida, abatida e tão fraca que mal conseguia movimentar as bolas de gude. Mas sua obstinação era tanta que nem percebeu o quanto havia se desligado do mundo para cumprir sua meta.
Passados quase quinze dias, seu trabalho havia terminado. Tentou se levantar, mas não conseguiu mover o pescoço, que estava deformado pela posição de trabalho. Ficou assustada. Começou a gritar por Drica, que ainda não havia retornado de sua viagem. Tentou levantar, mas estava tão fraca que não conseguia erguer a pesada bolsa amarela, pacientemente bordada com cinco mil bolinhas de gude vermelhas. Não tinha forças para gritar por ajuda e não conseguia se mover, tamanho era o peso da bolsa perante sua fraqueza.
Clara morreu de inanição, soterrada por milhares de bolas de gude. Quando Drica chegou em casa, Clara já não era mais Clara. Lembrava mais uma daquelas múmias egípcias decoradas com seus tesouros no sarcófago.