BANZO

Ando meio “esvaziado” esses dias. Depois do lançamento do meu primeiro livro, “Prosas, macumba e cafezinho”, passei uns dias totalmente preenchido de felicidade e sentimentos de realização. E tentei encontrar alguma coisa que pudesse escrever, mas nenhuma inspiração, nenhuma idéia conseguiu chegar aos pés até então desse momento incrível na minha vida. Essa emoção só foi comparável aos momentos mais marcantes da minha vida, como quando conheci o meu grande e único amor, no dia da formatura da minha irmã ou quando nasceram meus dois sobrinhos, Pedro e Felipe.
Eu ainda estou tomado dessa emoção. Sim, porque além da sensação de realização ao ver meu livro “corporificado”, materializado, com capa, página, desenho, a noite de autógrafos foi repleta de emoções , porque fui divinamente agraciado com a presença de pessoas muito, muito especiais. Não quero ficar citando cada uma delas; porque eu sei e elas sabem o quanto elas significam em minha vida.
No meio de tanta alegria, tem sim, um fiozinho de tristeza, de saudosismo por aquelas pessoas que não estavam lá. Faz muito pouco tempo que conheci a palavra “banzo”. Ouvi da boca de um amigo, que me explicou o significado e, no mesmo dia, ouvi de outras três pessoas a mesma palavra. E foi esse fiozinho de banzo que eu senti, misturado no meio daquela alegria toda: saudades, tristes saudades dos vivos e dos mortos que não puderam me visitar naquele momento. Eu também senti isso no dia da minha formatura. Estava cheio de felicidade, mas uma gota de saudade em forma de lágrima sentiu a falta do meu avô Armando. Morto naquele mesmo ano, não pode estar lá. Talvez estivesse; mas ateu que estava naquela época, não pude senti-lo. Talvez aquela lágrima fosse dele ou, quem sabe, de nós dois, fundidas.
Quando concluí o Mestrado, minha co-orientadora me presenteou com um texto lindo, do Roberto Cardoso de Oliveira, chamado “O ofício do etnólogo: ou como ter o anthropological blues”. E era sobre isso que o texto falava. Do banzo, da tristeza, da sensação de vazio e inutulidade ao terminarmos um grande trabalho. Eu já tive vários “anthropological blues” e fico sempre me perguntando: para quê isso? Será que isso é porque somos sempre insatisfeitos? Será que é um desequilíbrio biológico? Perguntas sem resposta, como várias em nossas vidas... Mas a tristeza é apenas uma parte. Quis dividi-la, pra ver se ela fica pequenininha e sobra espaço pra um monte de coisa boa.
Há exatamente uma semana, nesse mesmo horário, estava no avião, voltando de Manaus para São Paulo. Nas poltronas ao meu lado, voltaram duas amigas judias que falaram a viagem inteira. Falavam muito e muito alto. Nem mesmo o fone de ouvido sufocava a falação. Ao invés de ficar irritado, passei boa parte do tempo prestando atenção na conversa delas, o que foi bastante útil. Uma delas, ao contar sobre a empregada evangélica (“goi”) que tomava conta de sua mãe louca, usou uma palavra que até agora não consegui lembrar (Judeus do mundo, uni-vos a me ajudar com a lembrança!). Ela dizia que a tal empregada cuidava da mãe louca com tal devoção que parecia até que era seu.... “bashert”? “marohke”?
Sem lembrar qual era exatamente a palavra, consegui absorver o sentimento, que continua me rondando. Obstinação, destino, ser feito para isso, sina, karma. Fiquei preso à energia de uma palavra que me diz respeito: escrever é meu destino. Talvez não seja o único, mas é algo muito importante, que me completa e me faz feliz. Mesmo nos momentos mais difíceis da vida, onde parecia não haver esperanças, eu estive escrevendo.
Conheço várias pessoas muito hábeis com a escrita e que abandonam, desprezam, sentem vergonha de mostrar suas produções. Já fiz muito isso. Já joguei textos fora, achando que estavam ruins ou que faziam parte do passado. Hoje não jogo nem uma linha fora. Guardo no computador, na agenda, na capa de um livro. Podem, de fato, não servirem para nada depois, mas mesmo essa efêmera existência não é desprovida de significado. É uma folhinha que se descolou da árvore no outono. Pode estar morta, mas ainda assim tem cor, textura, cheiro e é matéria orgânica que servirá de adubo para as que virão.
E assim eu encorajo, estimulo, repreendo todos que eu encontro e que desprezam suas obras. Acho que toda escrita tem que ter uma morada, que seja um blog, uma parede, uma capa de livro. Uma lágrima e um mar são exatamente a mesma coisa em dimensões distintas. Uma simples frase pode ser o pedaço de um grande épico ou pode se tornar célebre e inesquecível por si só.
Outro dia ouvi uma música que falava que “cada um sonha sonhos à sua maneira”. Adorei a música, mas muito mais adorei essa frase, que diz tudo sem falar muito. E cada um escreve, em verso, prosa, poesia, crônica, conto ou seja lá o que for, um pedaço de uma canção que é a canção própria da sua alma, tal e qual os sonhos que sonhamos.
Enfim: é nesse bailado de “banzo”, nessa melancoliazinha boa que termino meu domingo, poupando-me das abobrinhas do Faustão ou da hipnose mortuária da trilha sonora do Fantástico. Aqui, sentado em meu sofá, na sala da minha casa, que já testemunhou tanta inspiração, vejo a noite chegar, escurecendo tudo ao meu redor. Fora a escuridão, restam acesos meu abajur, o teclado do meu computador e a minha consciência.