Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Monday, January 03, 2011

O NEGRO KUTA KINTÊ


Faz muito tempo que ensaio contar essa estória, mas foram surgindo tantos outros assuntos que acabei me esquecendo. Mas nesses dias de um certo tédio literário em New York, e observando a quantidade de imigrantes africanos por aqui, Kuta veio à minha mente.

Estava no último ano de faculdade quando resolvi viajar para Recife. Durésimo, pude aproveitar a vantagem de pagar muito barato as passagens aèreas porque trabalhava na Rio-Sul. Ainda me lembro: cinquenta reais ida e volta. Uma amiga disse que eu ia poder me hospedar na casa de uma amiga dela em Olinda. "A fulana é super legal, você vai adorar; além disso, a casa é grande, a gente vai ficar super bem lá".

Chegando em Olinda, fiquei animado ao ver a casa. Um bairro bonito, residencial, uma quadra da praia. De fato era uma casa grande, mas parecia com aquela da música. Só faltava não ter teto: a dona da casa estava numa "crise toxicômana", em total lua-de-mel com seu amante pedreiro e a sua amante Mary Jane. Ninguém trabalhava, ninguém limpava a casa. Passavam o dia todo com a Mary Jane. A casa era uma fumaça só. Era a versão concreta de "Smoke gets in your eyes". Ah! Eles também jogavam capoeira entre um tarugo e outro.

Não tinha comida, exceto cuscuz de milho, cujo pacote custava trinta centavos. Até o cachorro comia cuscuz. E quando não sobava cuscuz, ela esperava o coco cair da árvore para dar para ele.

Também não tinha água. Faltava água na cidade durante o verão e eles não tinham cisterna. Então seu namorado pedreiro criou um chuveiro com furos no balde, no meio do quintal. Os banhos eram tomados quando caía água da chuva. Raridade no verão pernambucano. E eles tomavam banho ali mesmo, no quintal, pelados, de cara para o vizinho. Foi a primeira vez que agradeci não poder tomar banho todo dia. E quando era dia de banho, fazia-o ao estilo Big Brother, botando bem um respeitosa sunga.

O pior da casa não era nada disso. A estrela primeira dessa blogagem era o amigo-hóspede da dona da casa, um africano chamado Kuta Kintê. Ele morava na edícola, nos fundos da casa dela e, como ela passava o dia fazendo "party and play", como dizem as bichas aqui nos Estados Unidos. Mary Jane, Lucy in the Sky with Diamonds e sei lá mais o quê. Só sei dizer que o negro Kuta vivia doidão, cada dia com uma mulher diferente no seu cafofo.

Ele tinha uns dois metros de altura, um rastafari maior que o tapete da minha casa e o maior "passaporte africano" que eu já vi na vida. Aliás, era "O" maior passaporte que eu já vi em toda a minha existência. E Kuta ficava andando pela casa, pelo quintal, sem camisa, com uma kanga transparente na cintura e badalando o sino por onde passasse. O banho era um espetáculo zoofílico. Kuta saía da edícula, já completamente desapegado de suas poucas roupas e ia para o pseudo-chuveiro, carregando sua tromba ebânica.

E a dona da casa veio contar um dia que o Kuta estava escondido, fugido da polícia, porque ele era filho de um guerrilheiro africano, o famoso "Buceta Cabeluda". E ela falava isso com um ar grave, de quem sabia do que estava falando e de que nós entendíamos a gravidade do assunto, além da importância do Buceta Cabeluda no cenário político mundial.

Na noite de Ano Novo, um lance engraçado. Kuta era percussionista de uma banda XYZ e foi tocar na virada. Vestiu uma bata africana colorida, armou mais ainda aquele rastafari e colocou um turbante digno de um filho do Buceta Cabeluda. A cabeça dele parecia mesmo uma grande e cabeluda buceta.

Eu e minha amiga fomos para a praia, longe dos barulhos do Kuta. Quando acordamos pela manhã, a cena era bizarra. Kuta trouxe uma garota para casa, pequena, branca feito leite e com uns enormes e arregalados olhos verdes. Acordei assustado com uma gritaria no quintal. Era Kuta e sua ninfa gargalhando, correndo pelados por entre as árvores, ele tentando invadir o país dela com seu passaporte africano. Fiquei vários minutos admirando aquela cena, aquele contraste de peles, aquela loucura toda. Naturismo puro.

Foi passando os dias nessa casa estranha, com gente fora da órbita, que me lembrei o quanto gostava da minha casa, da minha cama, do meu travesseiro e, principalmente, de um bom chuveiro. Lembro que passei uma noite fora de Olinda; fomos conhecer João Pessoa e dormimos numa pequena pousada. Até hoje me lembro da sensação maravilhosa de tomar um banho de verdade, sem limite de água, depois de muitos dias em privação de higiene pessoal. E também acabei entendendo porque os vizinhos nos olhavam tão feio quando saíamos na rua.

E hoje, pesquisando com Mr. Google a origem ou o significado desse nome, descobri que Kuta deveria ser um nome falso. (Hello! Ele era fugitivo!!!) Sim, porque o nome Kuta Kinte é o nome de um personagem do romance "Roots", de Alex Haley, e seria o nome de um dos primeiros escravos africanos trazidos para os Estados Unidos, provenientes da Gâmbia. Muitos dizem que Kuta Kinte nem existiu; é apenas um símbolo da escravidão no país; é um nome portador de uma existência mítica.

Acho que falar sobre Kuta com seu enorme falo, veio à mente nesses dias não foi por acaso. Nem foi por acaso descobrir o "verdadeiro" Kuta, ambos trazendo a "novidade", a fertilidade, as descobertas, as idéias. Não sei se Kuta é Pan, Hermes ou Exu, todos mensageiros e guardadores da fertilidade. Mas é a fertilidade que bate à minha porta, uma explosão de idéias, de realizaçōes.

Engraçado é dar utilidade a ele, Kuta Kinte, depois de tantos anos guardados nas poeiras da memória.

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