Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Thursday, December 16, 2010

SERÁ QUE É MULHER, OU O QUE SERÁ QUE ELA É?



"As duas faces de Eva, a Bela e a Fera, e nem só de cama vive a mulher" ("Cor de Rosa Choque", Rita Lee)

"Uma nuvem negra cobre a terra, todos já saber quem é que ela é /
É a Maria Padilha, Pomba Gira feiticeira, Rainha do Cabaré"
(Ponto Cantado de Maria Padilha)

Do mesmo modo que a figura do Exu é associada ao Diabo, por força do sincretismo com o catolicismo, a figura da Pomba Gira é quase que automaticamente associada à prostituição e à vulgaridade. São, no imaginário religioso e popular, as entidades encarregadas de enfeitiçar os homens, destruir casamentos, "roubar" maridos de outrem. Não é à toa que as "giras" ou sessões das Pomba Giras estão sempre lotadas com mulheres fazendo fila para se consultarem com tais objetivos.

Digo que estão também no imaginário religioso porque, em muitas casas espirituais, esse tipo de função é muitas vezes atribuído e executado por elas, deflagrando todo um ciclo de involução para o dirigente, para o médium e, principalmente para a entidade. Todo ser humano - seja ele encarnado ou desencarnado - que se presta a roubar aquilo que não lhe pertence para dar a outrem está migrando para um desequilíbrio energético e inevitável decadência.

Quanto ao sincretismo, há muitos que se coloquem contra. Eu me coloco totalmente a favor e explico o porque Teoricamente, o sincretismo dos santos católicos com os Orixás do Candomblé e sua consequente influência na constituição da Umbanda surgiu como uma saída para que os negros escravos cultuassem seus Orixás sem serem perturbados pelos brancos escravagistas. Porém, acompanhando a simbologia e a similaridade entre as "funções" exercidas pelos santos e pelos orixás, veremos que existe uma semelhança simbólica que ultrapassa tais limites ingênuos.

Tomemos como exemplo o santo padroeiro da Umbanda, que é Ogum, um guerreiro, soldado, que realizou-se na vida e realiza-se no espírito como um guerreiro. A ele, no sincretismo, é atribuída à figura de São Jorge, um soldado romano, que defende a Terra contra um dragão que simboliza o Mal. São Jorge e todos os outros santos católicos que foram soldados, que batalharam em guerras durante a vida terrena, como Santo Expedito, São Miguel Arcanjo, entre outros, além de serem amplamente cultuados na Umbanda, são cultuados de forma "ligada" ao orixá Ogum e assim reverenciados.

Estamos falando de Arquétipos. Estamos falando de energias poderosas, seculares que se propagam por gerações e gerações com diferentes nomes,formas e cores, mas com uma força, uma simbologia e uma função comuns, não só no "par" umbanda e catolicismo, mas em diversos cultos e religiões espalhadas pelo mundo.

E é por esse motivo que concordo e assumo o sincretismo como algo muito mais poderoso do que uma simples solução religiosa improvisada.

É o tempo de se por a questão: se o sincretismo está certo, então Exus e Pomba Giras são mesmo Diabos?

Sim e não. Sim, porque eles representam, em minha opinião, a mesma coisa, não só nas duas religiões, mas em diversas religiões do mundo. Toda e qualquer religião contém, em seu bojo, um lado oposto, um lado negativo, um lado mais denso, que não representa necessariamente o mal, mas o lado “negativo”. E justamente por se tratarem de forças mais primitivas, mais densas e terrenas, podem estar susceptíveis ou influenciadas a praticar o Mal, tal como nós, humanos encarnados.

Respondo não porque acho que existe um erro ao encararmos o Diabo ou Lúcifer como o representante do Mal. Na minha opinião ele representa, assim como o Exu, o lago negativo da força, em termos de polaridade. É ele o responsável, o representante dessa energia mais densa. E nesse "ambiente" mais denso, podem habitar pessoas que praticam ou praticaram o Mal e estão lá para executarem uma missão de resgate e evolução.

Dessa forma, para mim, Exu e Diabo são a mesma coisa simbolicamente e não representam o Mal. O Mal é uma terceira coisa que pode habitar a vivenda de Exu, mas não é ele em si. O Mal é fundamentalmente humano; é a condensação energética do descontentamento humano. Há quem diga que "o Mal é a ignorância".

No desenho "A Caverna do Dragão" aparecem inicialmente duas polaridades - o Mestre dos Magos e o Vingador - este último realmente representando o Lúcifer cristão. O Vingador aparenta ser o Mal, mas ele é, na verdade apenas o outro polo do mesmo poder, tanto que, tal como Lúcifer, ele era um dos maiores discípulos do Mestre dos Magos que se descontentou com sua posição e foi punido por isso. O Mal é, na verdade, o Tiamat, o dragão de sete cabeças, uma força destruidora tão poderosa que só pode ser vencida quando os dois pólos se unem. Dessa forma, se o Vingador representasse o Mal, porque haveria de lutar contra si próprio?

É como sempre digo: posso estar errado em meu raciocínio, mas ninguém de peso até agora apareceu pra me dizer o contrário.

E voltando especificamente à Pomba Gira, o que será que ela representa? Qual será a força arquetípica por ela sustentada? Uma vez li uma artigo num jornal sobre o Dia das Bruxas. Não lembro quem escreveu, mas lembro que foi muito antes de me tornar umbandista e isso já tem mais de quinze anos. Ele dizia que a bruxaria era uma forma de culto "pagão", ou seja, não cristão de cultuar a Deus. E, nesses cultos, não existia só Deus, mas o Deus e a Deusa.

Ou seja, havia o culto aos poderes ou energias masculinos e femininos ou, melhor dizendo, positivos e negativos. Mas a Inquisição tratou de banir o culto a outras divindades e "enfeiou" a bruxa, deixando-a nariguda, desvitalizada da beleza e exuberância femininas, associando bruxaria a algo feio, proibido, maléfico, como uma negação do poder feminino dentro de uma sociedade machista.

A Pomba Gira guarda, ao menos em parte, o símbolo dessa errônea atribuição. É o símbolo umbandista da bruxa degenerada e queimada nas fogueiras da Idade Média.

Do mesmo modo que a bruxa medieval, a Pomba Gira é a guardiã de um importante tesouro: a sensualidade. Perfume, cigarro, decotes, saias rodadas, pulseiras, brincos e colares, seios à mostra. Representações concretas da energia feminina, do amor, da paixão, da conquista, do desejo, banidos numa sociedade preconceituosa, conservadora, castradora e misógina.

Assim, reconciliar-se com ou vir a conhecer a "sua" Pomba Gira é aceitar integrar-se numa completude feminina. Não é só o instinto maternal e protetor, a sabedoria, a consiência, a conciliação e a fertilidade - atributos derivados dos arquétipos das grandes deusas-mães do panteão africano e também atribuíveis ou deriváveis de todas as deusas, santas e demais criaturas femininas de ceitas, religiōes e culturas.

Aceitar-se como fêmea, numa totalidade, é integrar em si mesma tanto os atributos divinos quanto os profanos, porque uma mulher só pode ser completa quando percorre, em sua trajetória vital, tantos os passos da deusa quanto os passos da mulher mundana, que não é vulgar, prostitutivo, mas é do mundo, das coisas da terra, do cotidiano.

É lógico que esse princípio de agregar-se a feminilidade pode ser de grande valia aos homens. Adicionar atributos femininos, não transforma homens em mulheres ou homossexuais. Podem sim enriquecer a alma e torná-la mais rica, mais sensível e mais próxima das coisas do espírito.

Mas esse texto é um papo de mulheres. Resolvi escrevê-lo porque fui "inundado" com uma energia muito boa, contagiante de uma mulher que gosto muito. Afeita às coisas do Candomblé, veio até mim hoje para tratar de assuntos de trabalho. Havia contado que faria, na semana anterior, umas obrigaçōes para seus Orixás. Na verdade havia feito "agrados" para Exu e Pomba Gira. No senso popular, os agrados consistem em "dar de comer" ao Orixá, inclusive Exus e Pomba Giras, como uma forma de agradar, aplacar-lhes a ira ou pedir favores. No meu modesto entendimento, consiste em ofertar elementos que simbolizam na Terra a sua energia, potencializando-a como elementos de magia que irão aumentar o nosso poder interno original derivado desse determinado Orixá, fortalecendo-nos.

Homossexual embrutecida pela vida, daquelas que levam os pejorativos de "mulher-macho" ou "caminhoneira", sempre se apresentou de forma masculinizada, virilizada, com muito pouco espaço para a feminilidade. Hoje me apareceu bonita. Pela primeira vez, nesses muitos anos que a conheço, que a vi feminina. Estava mais magra, mais esbelta, mais esguia. Tinha um brilho nos olhos diferente, como daquelas moças jovens, cheias de desejo e volúpia. Contou que "deu de comer" a Exu e à Pomba Gira, a qual nem sabia que existia consigo. Disse que era Maria Padilha e que ela a "pegou" no final da oferenda.

Ela disse que estava se sentindo estranha, esquisita, lábil, sensível. Chegou a dizer que não queria me encontrar hoje porque estava "estranha".

Acredito que esse "pegar" não foi só o pegar de uma incorporação, de um transe temporário; tampouco a vi como estando obsediada pela Pomba Gira, atribuindo-se seus gestos e comportamentos ao espírito de mulher que "tomou" seu corpo; trata-se do reencontro com uma essência perdida, sufocada pelo tempo. A sua essência de mulher, o princípio da sua feminilidade que fez tanta força para ocultar sob vestes e gestos masculinos.

Mas esse é apenas um exemplo e não é o mais comum deles. Diversas mulheres abandonam a essência de sua feminilidade de diversas formas. O excessivo "endeusamento" da mulher, aproximando-a dos atributos maternais, cuidadores, sapientes podem enfraquecer o lado "profano", "carnal", "libidinoso" tão necessário para uma vida plena.

Há um ditado que diz que "a mulher deve ser uma dama na sociedade e uma puta na cama". Acho que ele traduz, de uma forma extremamente concreta a fórmula da completude feminina. A "Dama" não traduz apenas os bons modos esperados para uma mulher no convívio social. É a representação simbólica da mulher-deusa, soberana. E a "puta" simboliza, mui resumidamente, a necessidade do aspecto profano, sensual.

Da mesma forma está representada esta dialética entre sagrado e profano em um conto das mil e uma noites. Ao ser obrigado a casar-se com a bruxa para salvar um grande amigo, o Rei se depara, em plena noite de núpcias, com a dúvida: escolherá que a esposa seja a bruxa durante o dia, perante seus súditos e, pela noite, a bela Rainha ou quererá o contrário? Pleno de sabedoria, deixa que a bruxa escolha, dizendo que "o que querem as mulheres é serem livres". E ela responde: "Como soube entender a alma da mulher, serei Rainha de dia e noite". Ou seja: no momento em que se permite que ela seja o que ela bem desejar, denotando a liberdade de ser inclusive a bruxa - ou mostrar o que há de profano, escondido, indesejado - ela é livre para ser completa, inteira, integrando todos os seus aspectos positivos e negativos.

E que venham Padilhas, Rainhas, Maria-Mulambos, Ciganas, Sete-Saias, Damas da Noite e todas, todas as Pomba Giras, mulheres de verdade tomarem parte, corpo e posse dessa dança na fogueira da sensualidade.

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