Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Thursday, February 03, 2011

DEUSES QUE DANÇAM




“Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar”

(F. Nietzsche, “Assim Falava Zaratustra”)

Sim, eu já falei de deuses que dançam outras vezes. Mas estar em Salvador me inspirou a falar mais ainda sobre isso. Vim a Salvador para a Festa de Iemanjá, mas obviamente estar aqui abre possibilidades para diversas festas, cultos, shows, espetáculos. Salvador faz minha alma saltar, pulular, vibrar. Não é com o axé-music, tampouco com os blocos que circulavam pelas ruas do Rio Vermelho; é com a própria energia espiritual do lugar que me abasteço a cada momento e vibro como se fosse a primeira vez.

Cheguei na sexta-feira, e no domingo lá estava eu assistindo novamente a missa de São Lázaro. Missa animada, cheia de cantorias, atabaques e agogôs. Cantam sambas, pontos de Umbanda e Candomblé, gospels, hinos católicos. Na porta da Igreja, mães de santo do candomblé dão seus banhos de pipoca e suas bênçãos com arrudas e pembas. É que São Lázaro, por ser o santo católico que cuida dos doentes, por ter sido ele próprio acometido pela lepra, é sincretizado com o deus das pragas e pestes, da saúde e da doença, Obaluaê ou Omolu.

E aquilo tudo foi, de novo, uma experiência incrível. Ver aquelas pessoas cantando, se emocionando, louvando seu santo, deus ou orixá com uma fé uníssona, que ultrapassa limites da pobre e preconceituosa compreensão humana. Saí de lá com uma sensação de completude, de êxtase.


Continuando minha peregrinação baiana, soube que haveria na terça um show do Gerônimo, um importante artista baiano, compositor de várias músicas que fizeram sucesso na boca de grandes personalidades, como “É D’Oxum”, “Agradecer e abraçar”, entre outras. Mas, no táxi a caminho do Pelourinho, o motorista me deu vários ensinamentos. Primeiro ele disse: “Aqui na Bahia, sete horas nunca são sete horas mesmo; então sete horas vai ser oito, oito e meia, até nove”. E depois me advertiu: “Até porque Gerônimo só chega para o show nesse horário, porque ele está cantando na Igreja do Carmo. É uma missa muito especial, com samba, dança, o senhor precisa ver.”

E lá fui, seguindo os ensinamentos do mestre taxista. E vou contar que fui arrebatado de emoção ao entrar naquela igreja. Primeiro porque ela é linda; segundo porque aquela gente toda, cantando, dançando como dançavam seus antepassados escravos africanos, cheio de alegrias, louvando Cristo-Oxalá em alto e bom som, tudo isso fez com que me emocionasse muito. Até me lembrei quando os crentes neopentecostais ( é o nome chique daquelas igrejas que tomam dinheiro do povo) dizem que cultuam um Deus vivo e não Deus morto dos católicos, pregado na cruz. Talvez eles tivessem alguma razão ao se referir aos cultos católicos em geral, dominados pelo tédio das missas. Lá, se Deus não estivesse morto, deveria estar ao menos dormindo. Mas no domingo na Igreja de São Lázaro e na Igreja no Carmo, nessa terça-feita, ele estava vivíssimo.

E lá fui eu ver o Gerônimo, nas escadarias da Igreja do Paço, onde o

“pagador de promessas” se esgarçou para carregar aquela cruz até o

final da escadaria, para entregar na Igreja do Santíssimo Sacramento. De frente para a Igreja, ele começa sua apresentação entoando pontos de candomblé do seu santo, Ogum e um hino católico louvando a Deus e o Espírito Santo. E só depois começa a farra. Frevo, jazz, reggae, axé, samba, temas de carnaval, candombé, deuses e deusas. Gente de todas as idades, credos e cores cultuavam esse deus da música e da farra de forma pacífica, integrada, abençoada.


E então chegou a festa de Iemanjá. Milhares de pessoas se reúnem, todos os anos, nos arredores do Rio Vermelho, onde mora a casinha da deusa, construída por pescadores para que ela cuidasse deles e permitisse que voltasse para casa todos os anos. Uma infinidade de gente faz fila para levar seus presentes para a santa. Flores, alfazema e outros perfumes, espelhos, pentes, bonecas, roupas, pedras. Vi um sujeito carregando uma pedra cheia de musgos e um ouriço-do-mar para dar de oferenda. Vi uma senhora carregando uma boneca do tamanho de sua filha, de uns seis ou sete anos. É claro que sempre fui contra a se atirar no mar produtos não orgânicos, poluindo a casa dela, mas também refleti sofre o quanto de amor e fé que é depositado em cada objeto, em cada oferenda, mesmo que seja de plástico.

E no meio dessa confusão, encontramos de tudo. Gente rezando, gente namorando, gente roubando; pais e mães de santo dando ou vendendo “axés”, com mais ou menos fé; gente bem vestida, maltrapilhos, casuais; mulheres de salto, de Havaianas, de rasteirinhas, descalças; gente cantando pontos, axé-music, samba canção, samba de roda, pagode, forró. Uma fusão de coisas sagradas e profanas, rompendo limites, barreiras colocadas pelo homem.

Pelo menos aqui, nesse momento em Salvador, o sagrado e o profano andam de mãos dadas, num cortejo louvando a vida e suas alegrias, seus presentes, resgatando um tempo em que essas coisas andavam juntas, que era possível chegar tão perto das divindades como chegamos perto de um amigo ou cônjuge. Um tempo da imanência, de deuses que estão em todos os lugares, inclusive na farra, na música, na comida, no beijo, no sexo.

Aqui em Salvador somos convidados a sentar no banquete dos deuses; a comer das suas comidas e bebericar seus vinhos. Somos parte. Sou parte. Esse é um dos motivos pelos quais amo tanto essa cidade: é nessa fusão de cores, cheiros e energias que mergulho e me reencontro numa essência toda baiana, cheia de vida.

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