SAGAS E PARÓDIAS DE UM TUPINIQUIM EM DIAS CHUVOSOS.
"Duas células meteorológicas bastante grandes invadem o céu de São Paulo", disse o comandante. O que é isso? Invasão de discos voadores? Nuvens de xixi das estrelas? Poeira cósmica? Vazamento da camada de ozônio?
"Aproveitem a companhia da Estela, da Monique e da Jaqueline, nossa equipe que está aqui para entreter vocês. Um graaaaaaaande abraço!", disse o comandante. Entrei na porta errada? Pensava estar num avião, não em um show de variedades. Se fosse entretenimento de verdade, estaria faltando a champagne e as amêndoas defumadas. E cá estou eu, saboreando Pepsi (eca) zero, bolachinha salgada e um micro-torrone.
Depois dessa, só falta descer em Viracopos e ir de ônibus para Congonhas. E se a Marginal estiver alagada? Voltamos pra Campinas e dormimos num Ibis. Claro, já serão duas da manhã e teremos que sair às cinco horas para São Paulo. E quem vai pagar a conta do meu estacionamento? E o inconveniente de chegar atrasado no plantão?
O avião está balançando. Devem ser as células meteorológicas nos atacando. Deve ter sido por isso que achei um terço de madeira no chão do Inhotim. Pra me proteger desses ataques. Perdão Deus. Passamos o final de semana inteiro fazendo fofocas e tirando sarros de pessoas cretinas. Perdoa, Deus. Mas Deus, diga aí: tenho culpa delas serem cretinas? O avião balança mais um pouco. Tá bom, Deus, perdoa, entendi o recado.
E as moças, que não estão nos entretendo? É a Gol, a frota mais jovem no Brasil, que usa uniformes descolados do Alexandre Scopolovithch, já não basta? "Que falta de humildade, Marcelo!", grita Deus comigo. E o avião continua balançando. Deus foi dormir e ainda não pousei em lugar nenhum. O comandante fala que vamos pra Viracopos. Meia hora de vai-e-vem, nada de pousar. Agora ele diz que vamos pra Cumbica. Quase duas horas de vôo. Chegamos. O avião não explodiu, as células meteorológicas não nos acertaram dessa vez. Ainda bem que não liguei o celular escondido, como no vôo de onze de setembro" para me despedir dos que tanto amo.
Agora espero as malas. A esteira roda, roda, roda e não avisa. Nada chega nela. Meia hora e nada. Será que nossas malas foram roubadas? Daí ferrou. Meus souvenirs, minhas fotos, meus livros, meus óculos. E a Gol não liga a mínima para os meus pertences extraviados. Na esteira só passa uma caixa de plástico azul. Contei. Ela já passou dezesseis vezes. Mais um trote da vida. Agora não é castigo de Deus, porque ele já foi dormir. Agora um mocinho da Gol anuncia que a bagagem vai chegar em instantes. Mas os instantes podem ser infinitos. A vida é toda feita de instantes. Quanto mede um instante? Pode ser um milésimo de segundo; pode ser uma eternidade.
Começam a chegar malas coloridas. A primeira é cor de rosa. A segunda é azul calcinha. Será que segregaram as malas pretas? Polícia Federal. Law&Order. Special Victims Unit. Somos vítimas de São Pedro e da Gol. Ah! E das células meteorológicas. Elas que começaram tudo isso.
Um complô de malas rosa-choque invade a passarela. Não, Marcelo, você está no aeroporto. Não é o Baile de Peruas do No Porn. Ufa! Chegou a mala. Intacta, protegida pelas fitinhas do Senhor do Bonfim. Deus castiga e vai dormir, mas deixa seus emissários para assoprar as feridas.
Mas ainda não acabou o tormento: agora é hora de esperar o ônibus em pé. Excursões desoladas e exaustas. Crianças chorando. Casais brigando. "A culpa é sua!", diz o machão; "Vá se catar!", diz a esposa. Não é culpa dela. Foram as células. Pior: não tem táxi. Nenhum. Foram todos abduzidos.
Em pé. Dor nas costas. Barulho. Pelo menos o ventinho tá gelado. Reza braba pra fazer um táxi aparecer e oferecer transporte. No turbilhão da massa de desejos insatisfeitos, difícil alguém escutar. Os emissários devem estar em mutirão salvando flagelados. As células meteorológicas venceram. Destruíram a cidade.
Uma mistura de pesadelo em Elm Street, Bebê de Rosemary, Hannibal e Amélie Poulain. Nenhum super-herói pra me salvar dessa bagunça. Preciso me esconder das células. Já sei. Um disfarce. Tiririca. Bullshit. Já estou fazendo papel de palhaço há horas.
Lentamente me aproximo do Oásis em plena Cumbica: o busão da Breda Turismo. Daqueles que fazem Mauá-Ribeirão Pires. "Humildade, Doutor Fofinho!", grito comigo mesmo do meu lado bom samaritano. "Caralho", grita o outro lado, esse com o qual estou mais habituado.
Parece que agora tem um busão pra mim. O frio me faz lembrar a noite fria de julho dormindo no chão da rodoviária de Três Corações, esperando o busão para São Tomé das Letras. Também me faz lembrar de um velório do Cemitério da Quarta Parada de um garoto assassinado no passado de pobreza. "Credo, Marcelo, quanta lamúria!", não sei quem disse isso, simplesmente não dou ouvidos. Prefiro ouvir o eco de Adélia me dizendo que tenho o direito de "gemer sem culpa".
Agora já estou montado no busão. Estofado azul com cheiro de camas de motel barato. Poltronas apertadas, ainda não sei quem é o boçal que sentará ao meu lado. Tomara que seja mais magro que eu e que tenha colocado um desodorante Axe 24/7.
Fuck. Algum retardado entregou a bagagem e não embarcou no busão. Será um terrorista do Talibã? Será um infiltrado das células? E as pessoas não param de falar. E estou com vontade de comer macarrão.
Todos estão surdos! Ninguém escutou a minha prece. O cara é do meu tamanho. Ao menos não é maior que eu. E nem está usando Avanço, nem está fedendo. Ora pro nobis. Rogai por nós. Aprendi hoje o significado e o gosto. Porque "Ora pro nobis" é uma prece e uma verdura pra se comer ralada, crua, ou cozida com rabada ou junto com o arroz e feijão.
Suspense? Estará a Marginal alagada? Terá o motorista que desviar pelos mal fadados buracos da província de Guarulhos? Passará o busão pelo Bairro dos Pimentas? No rabo dos outros é refresco.
Agora estou apenas cansado. Parece que foi apenas um ataque pontual das células. Sabemos que elas voltarão, mas por hora está tudo em paz. Resta apenas o gemido dos flagelados, uma dorzinha nos pés e uma fome insana.
Agora tocam os celulares dos "manos". Músicas de baladas, pi-pi-pis insistentes, Erasure, Abba e Pica-Pau anunciam que tem gente preocupada em casa, talvez com uma vela acesa da pedra do filtro de barro ou com a bíblia esticada no Salmo 91. Deve ter alguém rezando por mim além de mim mesmo.
Carros quebrados, Monzas pretos tocando pagodes melancólicos. A cidade suja e triste ensaia uma soneca. E eu com fome de pizza. Lembrei da Moussaká, da Rabada com Ora pro nobis, dos pães de queijo, da mousse de chocolate branco com sorbet de limão siciliano. A Marginal está alagada. E estou passeando pela Zona Leste. Lembrei da exposição do Miguel Rio Branco no Inhotim. A exposição da pobreza do Pelourinho materializada nas avenidas sujas de São Paulo. Que merda de cidade complicada. Quase duas horas de viagem até Congonhas, que podia ser do Campo, mas era da lama.
Consumido de fome, starving, como dizem os gringos, um cachorro quente na rua do aeroporto haveria de me salvar. Haveria, se o cachorroquentista não tivesse que fazer uma encomenda de seis antes do meu. Mas chegou. Finalmente. Apoio a lata de soda limonada sobre a mala e ela escorrega para dentro do guarda-alças, lavando minhas coisas todas. Ainda bem que não era cáustica. Águas de Yemanjá com um beijo doce da Oxum para desinfetar desses maus olhados todos.
Que coisa foi essa, uma sequência de atrasos, esperas, retardos, adiamentos, aditamentos. Toda uma subversão da ordem normal das coisas. Chego em casa e a exaustão desaparece. Chega a insônia dizendo que ainda devo esperar mais um pouco. Agora não é hora de dormir. É hora de acordar.
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