A MAÇÃ DO AMOR E DO PECADO

A maçã tem sido, por séculos e séculos, o símbolo do amor, do prazer e do pecado original. Adão e Eva foram, aparentemente, os primeiros a morder a maçã do pecado, o que lhes custou a expulsão do Paraíso. Para além dos ditames bíblicos, tem gente que afirma que o verdadeiro sentido da maçã não era realmente o sexo, mas a curiosidade ou até mesmo a consciência. A Branca de Neve mordeu a maçã envenenada pela bruxa. A curiosidade, representada pela forma voluptuosa e pelo brilho radiante do fruto, levaram a donzela a adormecer até que o príncipe chegasse.
As maçãs do amor têm encantado até hoje pessoas de todas as idades nos parques de diversões e feiras populares e podem ainda representar uma linda declaração de amor para diversos casais enamorados.
New York, mais precisamente sua porção insular, leva o codinome e é simbolizada pela "Big Apple". Não há dúvida do encanto que a cidade exerce sobre milhares e milhares de turistas e acho que ela só não recebe mais turistas que Paris por causa da dificuldade em conseguir visto para se entrar nos Estados Unidos.
A Macintosh, hoje facilmente reconhecida pelo nome Apple, adotou sabiamente esse símbolo para sua logomarca e hoje representa o grande sonho de consumo tecnológico ao redor do mundo. Vemos equipamentos da Apple em filmes, seriados, programas de TV. Pelas ruas de todos os lugares, vemos pessoas usando ipods, ipads, iphones, ibooks, imacs e tanta coisa mais. A letra "i", que é também a palavra "eu" em inglês, se deflagrou numa infinidade de aparelhos e acessórios para a marca, chegando a significar um "eu posso" tão poderoso em torno dos produtos da maçã. A cada lançamento de um novo produto, filas enormes nas lojas da marca, que se tornaram verdadeiros templos de devoção, desejo e prazer.
Andando de metrô nesses dias em New York, pude visualizar a infinidade de pessoas portando seus aparelhos nas ruas, nos metrôs. Hoje, ao embarcar de volta para o Brasil, notei que um restaurante colocou ipads em cada mesa da sala de embarque com o menu do restaurante, internet, programas de TV e jogos de entretenimento.
A marca da maçã é o fruto desejado e acessível para diversas pessoas, de todas as idades, raças e credos. Mas, se de um lado a maçã é um símbolo desejado por todos, o que poderia e num certo ângulo configura uma unidade, uma linguagem comum, ela também é o fruto que leva ao aprisionamento num paraíso solitário. E agora não falo só dos produtos da Apple especificamente; falo de todas as "maçãs" tecnológicas que proporcionam prazer solitário, masturbatório, isolacionista.
Fiquei notando as pessoas no metrô. É raro surpreender alguém lendo um livro ou conversando com estranhos. Cada um tem sua própria maçã, seu microcosmo, seu universo particular, com fotos, livros, jogos e músicas. Praticamente não se consegue mais espiar que livro ou revista a pessoa ao lado está lendo; está tudo confinado num ensimesmamento urbano de seus apples, robots, androids, blackberries.
É claro que há diversas vantagens. Isolar-se do barulho alheio; deixar de escutar pseudo-mariachis mexicanos cantando "Feliz Navidad" ou as pregaçōes de crentes inveterados, louvado seu deus vivíssimo; o tempo passa mais rápido, tornando as viagens mais curtas e os vagōes cheios menos desagradáveis; dá até pra ler, estudar, adiantar trabalhos. As maçãs do amor da tecnologia não promovem somente isolamento: é possível falar em tempo real com qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. Comunicadores escritos, sonoros ou com imagens ao vivo; fiquei imaginando e muitas vezes usufruo, como deve ser maravilhoso para um imigrante poder ver pessoas queridas a qualquer hora, matar saudades virtuais, ver sobrinhos e afilhados crescer.
Lembro de uma vez, quando estava viajando e minha irmã mandou um email contendo um vídeo do meu sobrinho dançando ao som de um carrinho sonoro e balbuciando suas primeiras palavras. Há muito pouco tempo isso ainda não era possível. Quando estava no colegial, trocava cartas com um amigo que vivia no Japão. Cada carta demorava quase 20 dias para chegar de um lugar a outro e lembro de ter sempre pressa em escrever de volta para garantir a comunicação.
Hoje ainda podemos trocar cartas. Conheço quem o faça com propósitos românticos e deve ter um monte de gente que não tem acesso a essa tecnologia toda, precisando dos famosos "escritores" e "leitores" profissionais de cartas. Conheço uma mulher que morou em vários lugares muito rústicos e fazia isso gratuitamente para as pessoas dos lugares por onde passava.
Mas ainda acho que as maçãs nos encerram em claustros e labirintos solitários. Não conversamos mais com o vizinho sentado ao nosso lado; trocamos menos experiências com os passantes nas ruas; nem precisamos pedir mais informaçōes. Dr. Google, GPS de todos os tipos fazem isso por nós com mínimo esforço.
Outro dia estava passando por uma escola e vi um grupo de jovens sentados num banco. Juntos e separados. Sentados lado a lado, divertiam-se com seus aparelhos, jogando, ouvindo músicas e mandando mensagens.
Nisso tudo, acho que o maior pecado de todos é a solidão, que vai fazendo sombra dia a dia sobre nossas vidas. Não é preciso sair, porque tudo pode ser comprado pela internet e entregue na porta de nossas casas; não há razão para ir ao cinema porque cada vez mais rápido os filmes chegam comprados ou alugados, "baixados" em nossos computadores a preços módicos. Jovens não precisam mais se reunir nas casas dos amigos para jogar videogame. É possível jogar, em tempo real, com amigos e desconhecidos de todo o globo. Cada vez mais o sexo se torna virtual e os aparelhos masturbadores vendem como nunca. Hoje comprei por engano a revista Playgirl, cujo nome, tampado por um lindo nome, se confundia com "Plaisir". Não foi um engano ruim, já que era basicamente uma revista de homens pelados. Mas o que mais me chamou a atenção foi a propaganda dos masturbadores manuais, na qual um entrevistado dizia que a sensação era melhor do que qualquer sexo oral. Um buraco de silicone em forma de boca que faz maravilhas sobre-humanas.
Uma outra incrível notícia: Um kit de moldagem do próprio pênis. Não é seu parceiro ou parceira fazendo uma cópia do seu pênis para os dias de distância e solidão. É você fazendo seu pau pra você mesmo; ápice do amor próprio. E é lógico que você pode comprar pela internet e receber em casa.
Não, não estou contra o povo da maçã, nem contra a tecnologia. Apenas me preocupa o grau de solidão que estamos atingindo e me pergunto se esse congelamento do contato humano pode ser reversível.
Claro, tem os sites interativos, as redes sociais. Particularmente, eu amo o Facebook. É um jeito de dar vida aos congelados megas do mundo virtual. Fotos, frases, lugares, troca de experiências, brigas, ironias, intrigas, paqueras, conversas. Do mesmo modo que as maçãs do amor, que podem ser brilhosas e reluzentes por fora e ter seus pedaços podres por dentro, as maçãs eletrônicas que mordemos têm seus aspectos formidáveis e os sombrios também.
Talvez o mundo virtual seja um ensaio para um futuro no qual o isolamento seja necessário. Um mundo estéril, sem água, sem oxigênio, com seres humanos confinados em bolhas de sobrevivência ou cápsulas transgaláticas. Tudo virtual, tudo cibernético, para poupar a energia dos copos. E do mesmo jeito que o "idoser" é capaz de mimetizar sensaçōes de êxtase com drogas, e como já existem "aspiradores" que imitam o sabor do chocolate, teremos uma infinidade de coisas, cores, sabores, sons e sensações que imitarão a vida extinta.
Mas enquanto a fantasia do mundo cibernético não se concretiza, aproveitemos o melhor dos dois mundos.
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