AS AVENTURAS DE KENNY ROCHA E SUA FILHA SOL NA AMÉRICA.

Em geral eu não sou muito fã de postar coisas seguidas na mesma semana. Acho que polui um pouco a cabeça do leitor e também, no espaço de uma semana, me sobra mais tempo para ter novas idéias. Mas como ainda continuo em Atlanta, esperando o vôo para São Paulo e o assunto é mais ou menos complementar, encarem esse post como uma continuação do anteriror.
Eu sou um cara instintivo. É claro que falava de mal gosto, de falta de glamour em função do que eu observava, mas acho que estava pressentindo o mau gosto que estava por vir.
Durante o vôo para Atlanta, conheci Kenny e sua fiha Sol. Ele me cutucou, educadamente, perguntando se eu falava português, porque não entendia o que a comissária falava. Expliquei a ele que a espera do aeroporto de Orlando era por causa da tempestade. AJá fui me adiantando que era bem provável que perdéssemos o vôo de Atlanta para São Paulo. Ele ficou assustado.
- É minha primeira vez na América!
E nem precisava dizer. O boné de "mano" do New York Yankees, com a etiqueta pendurada já era o código de barras pra decifrar esse enigma. Sol, a sua filha, carregava amorosamente um travesseiro de joaninha e uma mula do Shrek. E pasmem: usava um relógio Michael Kors. Também usava um colar enorme, de strass. Vocação pra perua? Um pouco. Mas depois descobri que o relógio e o colar eram encomendas da tia. Estava usando para fingir que eram ítens pessoais.
E a tragédia anunciada se cumpria: perdemos o vôo para São Paulo por apenas 10 minutos de atraso. Kenny ficou branco. Desorientado. Sol estava tranquila. Nitidamente tinha vocação para uma carreira de turista internacional. Mas Kenny tinha razões para se preocupar. Tinha medo de ter que gastar mais dinheiro. Tinha medo de perder o emprego. Mas seu maior medo mesmo era ficar sem as malas. Me cutucava toda hora:
- E as malas, a gente vai pegar?
- Não, Kenny. As malas vão direto.
- Você tem certeza? Não some não?
E lá fomos nós para a fila do balcão da (fucking) Delta. Após três horas de espera na cara do gerente de despachos, José, que parecia mais um mestre dwe santería cubana, nos colocou em vôos para o dia seguinte. E ganhamos vouchers para o hotel Clarion, uma nécéssaire com uma camiseta da Delta e nenhum voucher para fazer um lanchinho.
Na fila do transporte para o hotel, eu me irritei. Pencas de pessoas, cansaço e um calor senegalês, como dizia um amigo. Rodei a baiana interna e resolvi pegar um táxi.
- Mas eu não tenho dinheiro! Disse o Kenny.
- Deixa que eu pago, sem problemas.
Entramos no táxi e o motorista, Kunbundo Kwaballa, perguntou, de um jeito bem africanês, qual era o endereço do hotel. Eu disse que não sabia, e imaginei que isso era golpe contra turistas, pois qual seria o taxista do aeroporto incapaz de saber onde ficava um hotel ao lado do aeroporto? Nunca se sabe. Comecei a imaginar que Kunbundo ia nos levar para um subúrbio de Atlanta, nos assaltar, nos esquartejar e depois vender kafta de brasileiro.
Após algumas voltas e várias rezas, Kunbundo achou o hotel. Pedi para ele que parasse num caixa eletrônico, e ele perguntou:
- Rámâ-tchu-ré? Rámâ-tchu-ré?
Eu contei minhas notas, juntei com os trocados do Kenny e conseguimos 36 dólares dos 38 necessários. Estava ótimo, considerando as voltas que ele deu nas estradas de Atlanta. E ele aceitou.
Chegando no hotel. Mais uma hora de fila. A essas alturas, Sol já desmaiava de sono e se aconchegou num sofá no lobby do hotel. E Kenny começou a desfiar um rosário de culpas, dizendo que não podia causar essa decepção para sua filha, e que ela não merecia. Contou como se perdeu com o carro alugado no primeiro dia em Orlando a caminho de Tampa, e como sofreu para pedir informações sem compreender nada. Ou seja, minhas férias haviam definitivamente acabado. Além de guia turístico de Atlanta, ainda fiz terapia breve de suporte. E funcionou.
E simpatizando com a simplicidade de Kenny, ofereci que juntássemos nossos vouchers para pegar um único quarto e podermos ficar no hotel até o final do dia. Nem eu entendi muito bem porque havia proposto de perder minha privacidade e ficar no quarto com eles. Mas acabei entendendo que era meu daemon escritor seco por material literário.
Todos estavam famintos, mas Kenny disse que preferia dormir, e Sol já estava desmaiada. Desci ao restaurante do hotel para comer um lanche e, ao voltar, lá estavam eles dormindo, de roupa e tudo. Tomei meu banho, tirei discretamente a minha calça ao lado da cama, por respeito à menina e dormi sono de rei.
Fui acordado às sete horas da manhã com o telefone tocando. Era Rita, a irmã de Kenny. E lá se foram mais umas quinze ligações de toda a família de Kenny, e todos perguntavam a mesma coisa: o que havia acontecido, por que ele não pediu para embarcar antes e onde estavam as malas. Pelas suas respostas, confirmei minha percepção: Kenny era um banana.
Acordamos quase meio-dia. Tomei outro banho. Fomos comer algo num restaurante na estrada, ao lado do hotel. Luxo zero, mas uma comida muito boa. Kenny pagou a conta, em agradecimento, mas se espantou quando eu expliquei o quanto se dava de gorjetas, como a maioria dos brasileiros que vão para a América. E, considerando que já estava aqui há oito dias, não deve ter dado gorjeta em dia nenhum, como a maioria dos brasileiros. Mas aquilo devia ser costume naquele pequeno restaurante: as garçonetes sorriram lustrosas pela gorjeta deixada.
Voltamos para o quarto e dormi mais um pouco, embalado por countries a indies. Só perdi o sono quando Kenny mudou de estação no rádio.
- Essas músicas chatas!
- É...aqui toca bastante country...Respondi fingindo concordar.
- Que nada, cara, lâ em Orlando tinha uma rádio de funk da hora!
Entendi tudo.
Passado algum tempo, Kenny me cutucou. Iam pegar um refrigerante no lobby e perguntaram se eu queria algo. Pedi uma coca zero. Dez minutos depois, eles retornam.
- Deu pau lâ na máquina!
- O que houve?
- Eu escolhi "espanhol" e depois apertei "arrôjo" e não saiu o dinheiro...
- Em espanhol eu não sei, mas em inglês você aperta "checkings". Vamos lá que eu ajudo vocês.
Chegando lá, o dinheiro saiu direitinho.
- Ahhhhh! - disse Kenny - Eu pensei que "checkings" ia sair um chequinho. Por que eles não escrevem logo "money"?
Voltamos para o quarto. Tomei outro banho. Sol tomou seu primeiro banho de banheira na América. Kenny não quis tomar banho. Disse que queria tomar banho na sua casa. Estava preocupado com as suas malas. E eu acho que ele tinha medo de fazer as coisas no hotel e ter que pagar depois. Mas também achei que talvez ele estivesse com medo de deixar a Sol sozinha comigo, o que me parecia uma preocupação sensata como pai, sendo um desconhecido. Mas é claro que já teria sido muito tarde se eu fosse um psicopata desconhecido.
De repente, Kenny se levanta indignado. A pulseira branca do Michael Kors estava tingida de rosa. Provavelmente a joaninha de pelúcia de Sol misturada com suor fez isso. Ele ficou inconformado. Tentei amenizar, dizendo que podia passar água morna com sabão neutro.
- Mas como que vou entregar a encomenda da minha irmã desse jeito?
-Você não precisa carregar o relógio no pulso. A alfândega não se importa com essas coisas. Guarde na sua mochila. Mas ele continuava atônito. E deixou o relógio no pulso de Sol.
Saìmos do hotel às seis horas. A van que levava ao aeroporto já estava parada na porta. Entramos na van e ele peeguntou:
- Não tem que acertar lá e devolver a chave?
- Não precisa. Aqui o check-out é automático.
- Mas eles não vão cobrar a chave depois?
- Relaxa....
Chegando no aeroporto, fomos tomar um lanche. Bebemos umas cervejas, ele disse que tinha gostado muito de uma cerveja chamada "michelóbi". Eu juro que fui procurar no Google o nome verdadeiro da cerveja que eu nunca ouvira falar antes, mas era isso mesmo, Michelob. Mas o jeito que ele falava, tudo junto, num tapa só, " michelóbi" , conferia uma graça ímpar.
E finalmente embarcamos. Consegui ajudá-los a embarcar num vôo pelo Rio de Janeiro, mas a alma brasileira de Kenny agora acostumada aos trâmites aeroportuários internacionais, ficou todo empolgado para se candidatar a voar no dia seguinte por 750 dólares.
- A mulher lá fala português?
- Não sei, mas geralmente nesses vôos para o Brasil tem gente falando português. Desse lado tem.
E lá foi Kenny, feliz, se oferecer para mudar seu dia de vôo. Ficou lá uns quinze minutos e voltou enfurecido.
- E aí?
-Ah, cara, sei não. Ela começou a falar e eu não entendi nada. Daí eu perguntei: "Speak portuguese?" e ela disse "No!". Daí eu falei "Caráio, óder sáid tálks and rir nou tálks?" e ela deu as costas! Deixa pra lá.
Kenny e Sol eram pessoas normais. Brasileiros, modestos, assustados com a estranheza dos contratempos numa terra estranha. Não eram daquele tipo de turistas extravagantes, inconvenientes e aproveitadores. Eu também já fiz cagadas em viagens. Já pedi comidas erradas, já fui enganado ao comprar eletrônicos em lojas "pega-turista", já fui roubado em táxis. Enfim, todo mundo pode ter um pouco dessa ingenuidade, desse toque naif consigo.
A ingenuidade pode ir embora, dando lugar à sabedoria e à experiência. Eu não gosto quando ela se vai e dá lugar à malandragem, que é a perversão da sabedoria e da experiência.