Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Wednesday, June 29, 2011

AS AVENTURAS DE KENNY ROCHA E SUA FILHA SOL NA AMÉRICA.


Em geral eu não sou muito fã de postar coisas seguidas na mesma semana. Acho que polui um pouco a cabeça do leitor e também, no espaço de uma semana, me sobra mais tempo para ter novas idéias. Mas como ainda continuo em Atlanta, esperando o vôo para São Paulo e o assunto é mais ou menos complementar, encarem esse post como uma continuação do anteriror.

Eu sou um cara instintivo. É claro que falava de mal gosto, de falta de glamour em função do que eu observava, mas acho que estava pressentindo o mau gosto que estava por vir.

Durante o vôo para Atlanta, conheci Kenny e sua fiha Sol. Ele me cutucou, educadamente, perguntando se eu falava português, porque não entendia o que a comissária falava. Expliquei a ele que a espera do aeroporto de Orlando era por causa da tempestade. AJá fui me adiantando que era bem provável que perdéssemos o vôo de Atlanta para São Paulo. Ele ficou assustado.

- É minha primeira vez na América!

E nem precisava dizer. O boné de "mano" do New York Yankees, com a etiqueta pendurada já era o código de barras pra decifrar esse enigma. Sol, a sua filha, carregava amorosamente um travesseiro de joaninha e uma mula do Shrek. E pasmem: usava um relógio Michael Kors. Também usava um colar enorme, de strass. Vocação pra perua? Um pouco. Mas depois descobri que o relógio e o colar eram encomendas da tia. Estava usando para fingir que eram ítens pessoais.

E a tragédia anunciada se cumpria: perdemos o vôo para São Paulo por apenas 10 minutos de atraso. Kenny ficou branco. Desorientado. Sol estava tranquila. Nitidamente tinha vocação para uma carreira de turista internacional. Mas Kenny tinha razões para se preocupar. Tinha medo de ter que gastar mais dinheiro. Tinha medo de perder o emprego. Mas seu maior medo mesmo era ficar sem as malas. Me cutucava toda hora:

- E as malas, a gente vai pegar?

- Não, Kenny. As malas vão direto.

- Você tem certeza? Não some não?

E lá fomos nós para a fila do balcão da (fucking) Delta. Após três horas de espera na cara do gerente de despachos, José, que parecia mais um mestre dwe santería cubana, nos colocou em vôos para o dia seguinte. E ganhamos vouchers para o hotel Clarion, uma nécéssaire com uma camiseta da Delta e nenhum voucher para fazer um lanchinho.

Na fila do transporte para o hotel, eu me irritei. Pencas de pessoas, cansaço e um calor senegalês, como dizia um amigo. Rodei a baiana interna e resolvi pegar um táxi.

- Mas eu não tenho dinheiro! Disse o Kenny.

- Deixa que eu pago, sem problemas.

Entramos no táxi e o motorista, Kunbundo Kwaballa, perguntou, de um jeito bem africanês, qual era o endereço do hotel. Eu disse que não sabia, e imaginei que isso era golpe contra turistas, pois qual seria o taxista do aeroporto incapaz de saber onde ficava um hotel ao lado do aeroporto? Nunca se sabe. Comecei a imaginar que Kunbundo ia nos levar para um subúrbio de Atlanta, nos assaltar, nos esquartejar e depois vender kafta de brasileiro.

Após algumas voltas e várias rezas, Kunbundo achou o hotel. Pedi para ele que parasse num caixa eletrônico, e ele perguntou:

- Rámâ-tchu-ré? Rámâ-tchu-ré?

Eu contei minhas notas, juntei com os trocados do Kenny e conseguimos 36 dólares dos 38 necessários. Estava ótimo, considerando as voltas que ele deu nas estradas de Atlanta. E ele aceitou.

Chegando no hotel. Mais uma hora de fila. A essas alturas, Sol já desmaiava de sono e se aconchegou num sofá no lobby do hotel. E Kenny começou a desfiar um rosário de culpas, dizendo que não podia causar essa decepção para sua filha, e que ela não merecia. Contou como se perdeu com o carro alugado no primeiro dia em Orlando a caminho de Tampa, e como sofreu para pedir informações sem compreender nada. Ou seja, minhas férias haviam definitivamente acabado. Além de guia turístico de Atlanta, ainda fiz terapia breve de suporte. E funcionou.

E simpatizando com a simplicidade de Kenny, ofereci que juntássemos nossos vouchers para pegar um único quarto e podermos ficar no hotel até o final do dia. Nem eu entendi muito bem porque havia proposto de perder minha privacidade e ficar no quarto com eles. Mas acabei entendendo que era meu daemon escritor seco por material literário.

Todos estavam famintos, mas Kenny disse que preferia dormir, e Sol já estava desmaiada. Desci ao restaurante do hotel para comer um lanche e, ao voltar, lá estavam eles dormindo, de roupa e tudo. Tomei meu banho, tirei discretamente a minha calça ao lado da cama, por respeito à menina e dormi sono de rei.

Fui acordado às sete horas da manhã com o telefone tocando. Era Rita, a irmã de Kenny. E lá se foram mais umas quinze ligações de toda a família de Kenny, e todos perguntavam a mesma coisa: o que havia acontecido, por que ele não pediu para embarcar antes e onde estavam as malas. Pelas suas respostas, confirmei minha percepção: Kenny era um banana.

Acordamos quase meio-dia. Tomei outro banho. Fomos comer algo num restaurante na estrada, ao lado do hotel. Luxo zero, mas uma comida muito boa. Kenny pagou a conta, em agradecimento, mas se espantou quando eu expliquei o quanto se dava de gorjetas, como a maioria dos brasileiros que vão para a América. E, considerando que já estava aqui há oito dias, não deve ter dado gorjeta em dia nenhum, como a maioria dos brasileiros. Mas aquilo devia ser costume naquele pequeno restaurante: as garçonetes sorriram lustrosas pela gorjeta deixada.

Voltamos para o quarto e dormi mais um pouco, embalado por countries a indies. Só perdi o sono quando Kenny mudou de estação no rádio.

- Essas músicas chatas!

- É...aqui toca bastante country...Respondi fingindo concordar.

- Que nada, cara, lâ em Orlando tinha uma rádio de funk da hora!

Entendi tudo.

Passado algum tempo, Kenny me cutucou. Iam pegar um refrigerante no lobby e perguntaram se eu queria algo. Pedi uma coca zero. Dez minutos depois, eles retornam.

- Deu pau lâ na máquina!

- O que houve?

- Eu escolhi "espanhol" e depois apertei "arrôjo" e não saiu o dinheiro...

- Em espanhol eu não sei, mas em inglês você aperta "checkings". Vamos lá que eu ajudo vocês.

Chegando lá, o dinheiro saiu direitinho.

- Ahhhhh! - disse Kenny - Eu pensei que "checkings" ia sair um chequinho. Por que eles não escrevem logo "money"?

Voltamos para o quarto. Tomei outro banho. Sol tomou seu primeiro banho de banheira na América. Kenny não quis tomar banho. Disse que queria tomar banho na sua casa. Estava preocupado com as suas malas. E eu acho que ele tinha medo de fazer as coisas no hotel e ter que pagar depois. Mas também achei que talvez ele estivesse com medo de deixar a Sol sozinha comigo, o que me parecia uma preocupação sensata como pai, sendo um desconhecido. Mas é claro que já teria sido muito tarde se eu fosse um psicopata desconhecido.

De repente, Kenny se levanta indignado. A pulseira branca do Michael Kors estava tingida de rosa. Provavelmente a joaninha de pelúcia de Sol misturada com suor fez isso. Ele ficou inconformado. Tentei amenizar, dizendo que podia passar água morna com sabão neutro.

- Mas como que vou entregar a encomenda da minha irmã desse jeito?

-Você não precisa carregar o relógio no pulso. A alfândega não se importa com essas coisas. Guarde na sua mochila. Mas ele continuava atônito. E deixou o relógio no pulso de Sol.

Saìmos do hotel às seis horas. A van que levava ao aeroporto já estava parada na porta. Entramos na van e ele peeguntou:

- Não tem que acertar lá e devolver a chave?

- Não precisa. Aqui o check-out é automático.

- Mas eles não vão cobrar a chave depois?

- Relaxa....

Chegando no aeroporto, fomos tomar um lanche. Bebemos umas cervejas, ele disse que tinha gostado muito de uma cerveja chamada "michelóbi". Eu juro que fui procurar no Google o nome verdadeiro da cerveja que eu nunca ouvira falar antes, mas era isso mesmo, Michelob. Mas o jeito que ele falava, tudo junto, num tapa só, " michelóbi" , conferia uma graça ímpar.

E finalmente embarcamos. Consegui ajudá-los a embarcar num vôo pelo Rio de Janeiro, mas a alma brasileira de Kenny agora acostumada aos trâmites aeroportuários internacionais, ficou todo empolgado para se candidatar a voar no dia seguinte por 750 dólares.

- A mulher lá fala português?

- Não sei, mas geralmente nesses vôos para o Brasil tem gente falando português. Desse lado tem.

E lá foi Kenny, feliz, se oferecer para mudar seu dia de vôo. Ficou lá uns quinze minutos e voltou enfurecido.

- E aí?

-Ah, cara, sei não. Ela começou a falar e eu não entendi nada. Daí eu perguntei: "Speak portuguese?" e ela disse "No!". Daí eu falei "Caráio, óder sáid tálks and rir nou tálks?" e ela deu as costas! Deixa pra lá.

Kenny e Sol eram pessoas normais. Brasileiros, modestos, assustados com a estranheza dos contratempos numa terra estranha. Não eram daquele tipo de turistas extravagantes, inconvenientes e aproveitadores. Eu também já fiz cagadas em viagens. Já pedi comidas erradas, já fui enganado ao comprar eletrônicos em lojas "pega-turista", já fui roubado em táxis. Enfim, todo mundo pode ter um pouco dessa ingenuidade, desse toque naif consigo.

A ingenuidade pode ir embora, dando lugar à sabedoria e à experiência. Eu não gosto quando ela se vai e dá lugar à malandragem, que é a perversão da sabedoria e da experiência.

Sunday, June 26, 2011

PELO AMOR DE GRETA GARBO, JUDY GARLANT E DE TODAS AS DIVAS PISCADEIRAS!

Glamour é tudo. As divas piscadeiras sempre souberam disso. Salto alto, rímel trincando, aquele rebolado estonteante. Tem até quem corte um pedaço de um dos saltos para deixar o molejo mais molejante. Batom, pancake, brincos, pulseiras, echarpes, soutiens, bolsas, meias, apliques, bobs elétricos, babylizz. Um monte de ítens tornados cada vez mais indispensáveis para a manutenção do glamour. É claro que tudo isso pode ser dispensável. Mas uma vida sem glamour é quase sobrevivência.

Sempre gostei de conviver com mulheres. Sempre admirei o jeito de se vestirem, de escolherem suas roupas, de se produzirem. Ficava admirando minha mãe e minhas tias se produzindo e ainda sou refém de admirar minhas amigas se preparando para as baladas.

Nisso, o universo masculino é totalmente sem graça. Por mais que existam griffes e marcas badaladas; por mais que se criem spas masculinos e inventem tratamentos de beleza voltados para esse público, nada disso pode ser comparado ao êxtase da produção feminina.

E o glamour não precisa ser fashionista. Conheço mulheres sofisticadas que não usam marcas famosas. Podemos encontrar glamour dentro das igrejas protestantes do Harlem, com suas lindas senhoras negras vestindo seus chapéus coloridos; nas grandes festas populares do candomblé da Bahia; o glamour pode estar em todo lugar; qualquer pessoa pode ser possuída por ele.

Tenho uma amiga que quebrou o salto bem na porta da igreja, quando ia ser madrinha de um casamento. Quase chorou mas, ao invés de se submeter à humilhante cena de entrar mancando até o altar, respirou fundo, arrancou os sapatos e, logo ao iniciar a caminhada, soltou os cabelos, fazendo com que todos a olhassem sacudindo os cabelos cacheados. E quase ninguém notou que estava descalça.

Uma outra amiga foi a um casamento, daqueles chiquérrimos. Comprou vestido caro que, para sua surpresa, teve sua costura arrebentada logo no começo da festa. Correu para o banheiro, desesperada e, enquanto aguardava que alguém lhe trouxesse uma caixinha de costura, foi socorrida por uma amiga que achou uma caixa de alfinetes de gancho no chão do salão de festas. Nessas horas, a manutenção do glamour vem dos céus.

Mas, se podemos encontrar glamour em qualquer lugar, ele também pode faltar à vontade. Aliàs, mais comum do que encontrar, é faltar. Passei uns dias em Orlando, na Flórida, onde glamour é avis rara. Mais do que qualquer lugar dos Estados Unidos, e talvez de todo o mundo, tem a maior concentração de gente feia, cafona e desglamourizada. Ficamos num hotel bem simples, luxo zero. Acho que se tirasse fotos da cafonice reunida, lotaria os 32 gigas do meu iphone. Bermudas estampadas; camisetas do Mickey tamanho XXXXL, ultrapassando os joelhos; pessoas loiras transformadas em camarões, desfilando pelos corredores do hotel com seus Crocs multicoloridos.

É claro, vez ou outra encontramos um glamour inesperado. Ontem mesmo, ao entrar no elevador, encontro uma linda negra, com seu cabelo cuidadosamente penteado, um topete chiquérrimo, um salto exuberante, uma saia ultra-curta, delineando seu traseiro enorme. E sua bundona pululava descontraída e confiante naquele tecido pititico.

E nos parques, a fuzarca continua. Camisas floridas à la Miami Vice; pessoas tatuadas com a cara de seus filhos, de seus pais mortos e de suas namoradas; obesos mórbidos descomunais com suas bermudas de popeline, transitando em seus carrinhos motorizados; todo um desparrame de feiúra que a magnitude dos parques não é capaz de esconder.

Mas eu não sabia que o pior estava por vir. No final da viagem, precisamente ao embarcar de volta para o Brasil, o desterro da cafonice: no aeroporto de Orlando, preso por mais de duas horas na pista do aeroporto graças a uma tempestade em Atlanta, overdose de glamour-zero. Ar condicionado desligado em pleno verão; celulares tocando todo tipo de música possível; sacolas, pelúcias, valises, camisetas coloridas; todo um mickeymouseamento do vestir-se. Nada contra o Mickey Mouse. Tenho uns modelitos interessantes com a cara dele. Minha revolta está nas escolhas. Enfim, cada um tem o Mickey Mouse que merece.

E resolvi prestar atenção nas unhas dos pés das mulheres. Tenho uma amiga lésbica que sempre diz que jamais ficaria com uma mulher americana, porque elas têm pés muito feios. E nesse workshop de cafonice, acabei percebendo que ela tem muita razão. Muitas delas tem dedos espalhados e curvados, como das galinhas. Ainda não achei uma americana com pés bonitos; quando eu encontrar, eu aviso. E não bastasse a feiúra dos pés, tem os esmaltes. Urgh! Cores berrantes, detalhes alucinantes. Apliques, florzinhas, bichinhos, francesinhas, brocados colantes. Bem ao meu lado tem o pé de uma menina com uma cordinha pendurada no dedão, com um fru-fru na ponta. Quase arrasta no chão.

Mas pior, pior mesmo do que uma unha ultra-decorada, é uma unha descascada. Tá bom, eu sei que mulher sofre. Mas tira a porra do esmalte, pelo menos!

E enquanto o tempo passa, fico percorrendo cada um dos trezentos assentos, procurando uma pessoa bonita. Nada! Nem homem, nem mulher, nem criança. Nem um simples bebezinho com uma cara simpática. Será que é tudo assim em Atlanta? Só pode ser.

As divas psicadeiras da minha alma se contorcem como minhocas na chuva. Eu aguento calor, avião parado, barulhos de celular, criança chorando. Sede. Fome. Enxaqueca. Mas é muuuuuito difícil suportar esses momentos glamourless. Oh, Gosh!

Thursday, June 23, 2011

PERTO DE DEUS

Eu já passei por muitos lugares. Altos e baixos, claros e escuros, feios e bonitos. Vários caminhos contrastantes, aclives, declives, lombadas, buracos. Mas a jornada sempre continuou. Já chorei sentado em calçadas empoeiradas, desesperado por não conseguir voltar pra casa. Já saí andando vários quilômetros a pé, por não ter dinheiro. Pedi emprestado, dormi e fui parar em lugares inóspitos. Acho que dormia para poder acordar e ver aquele pesadalo terminado. 

Comi muita pipoca de canjica para distrair a fome e tive uma temporada inteira de milho verde preparado de todas as formas possíveis. Milho verde e nada mais. Passei fome, passei vontade, passei desgosto por comer salada murcha repousada num monte de arroz com feijão morno.

Passei por tudo isso. Passei até por mais. Sobrevivi lúcido à violenta invasão de um pai psicopata. Sim, gastei um monte de dinheiro com analistas. 

Não, isso não é propaganda da Nextel. Poderia ser, mas detesto aquele apito chato e aquele barulho de walkie-talkie. É a propaganda de uma vida. Uma vida que não para de ser contada e recontada, sempre com descobertas curiosas. 

Só faltava descobrir que fui adotado. Na verdade fui. Recentemente. Tenho pais e mães que me amam como sou e não sentem a mínima necesidade de me transformarem num produto "aceitável" perante uma sociedade hipócrita e seu Deus cruel. Sou filho de mães de amigas, de mães-de-santo, de tias e de um monte de outros tipos de mães. E de pais, a mesma coisa. Sou e estou  enfim em paz com a minha busca pela cessação da orfandade

Comecei a escrever tudo isso dentro do avião, voando para Disneyland. E não sei se foi o momento feliz, ou a enxurrada de psicologias, mitos e símbolos que têm me alimentado ultimamente, ou se fui tudo junto, mas pude sentir minha alma leve, voando mais alto do que aquele avião. Emocionado, sentindo o suave movimento de suas lágrimas percorrendo meu rosto; senti-me tão completo e realizado que era realmente uma das  sensações mais gostosas que já tive. Acho que estava realmente muito perto ou melhor, o mais perto que já pude estar de Deus.

E me lembrei do filme de Eytan Fox, "Caminhando sobre as águas". Axel, um dos personagens do filme diz a Eyal, que às vezes podemos nos sentir tão leves que somos capazes de caminhar sobre as águas. 

E acho que foi essa a leveza que eu senti; um estado nirvanático sem meditação, apenas com a sensação de completude única. Poderia morrer naquela hora. Poderia, não queria. Quero escrever muitos livros, ver meus sobrinhos crescerem, realizar mais e mais sonhos e curtir muito o amor que tenho ao meu lado. 

E quis repartir tudo isso com as pessoas que lêem meu blog. Que possam levar um pedaço dessa felicidade consigo; que ela possa se alastrar, se espalhar, contagiar. 

Friday, June 10, 2011

SINCRONICIDADES

"Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles." Mateus 18:20

No meu atual “junguianizamento”, tenho lido, observado e vivenciado um montão de coisas sobre a tal sincronicidade. Penso em pessoas e elas me ligam, tomo decisões e uma porção de coisas convergentes com minhas idéias e decisões se reúnem para a realização de diversos feitos. Tenho colecionado mentalmente histórias e passagens em minha vida que ilustram esses acontecimentos que beiram a esfera do sobrenatural.

Certo dia, estava em meu consultório tirando um cochilo enquanto aguardava para ir à faculdade dar uma aula. Acordei assustado, como se tivesse tendo um pesadelo. Fui à cozinha e encontrei um aglomerado de formigas carregando suas provisões de inverno: migalhas de bolacha sobre a mesa de vidro. Num impulso irracional, tirei minha camisa e comecei a batê-la sobre as formigas, destruindo quatro botões. Resolvi um problema, criei outro maior: como é que eu ia dar aula vestindo uma camisa sem botões? Tentei ajeitar, mas o aspecto estético era temerário. Me senti como aquelas mulheres barrigudas que usam batinhas transparentes e com franjas, deixando o umbigão à mostra.

Já era muito tarde para ir ao shopping, ia chegar atrasado à aula. No caminho, encontrei, para minha grata surpresa, uma papelaria aberta, coisa improvável de acontecer àquela hora. Chegando à papelaria, encontrei a proprietária, que muito gentilmente vendeu uma caixinha de costura com linha, agulhas, tesoura e botões. Comecei lá mesmo a pregar os botões na camisa, espichando a minha barrigona semi-desnuda. Ela até ofereceu ajuda para pregar os botões. Agradeci e continuei minha terapia ocupacional.

A mulher estava conversando com uma mulher e um homem, cujo comportamento rapidamente identifiquei como sendo de um sujeito com alguns “problemas”.

Tal e qual as bordadeiras da Ilha da Madeira, engatei num papo momentâneo com eles, enquanto driblava os movimentos da agulha para evitar me furar. Então minha boca de caçarola foi logo comentando:

- "Ainda bem que encontrei sua loja aberta, imagina se vou dar aula com a barriga aparecendo?"

- "O senhor dá aula aqui na faculdade?"

- "Sim, eu sou médico."

- "De qual especialidade?"

- "Psiquiatra."

E quando essa palavra saiu ingênua e fresca da minha boca, o cara começou a gritar, na calçada, para todo mundo ouvir:

- "Eu sabia que Deus ia escutar as minhas preces! Graças a Deus! Aleluia!"

E eles começaram a chorar copiosamente, como se tivessem encontrado Jesus Cristo, ou um sujeito muito próximo dele, como o João Batista.

- " É doutor, esse moço está passando por umas dificuldades e está precisando de uma consulta. Tentamos marcar no ambulatório, mas tinha que passar nuns grupos e não passa no médico na hora..."

- "Qual ambulatório?"

Eu não sei dizer qual foi o momento mais crítico. Se foi eu ter falado que era médico, se foi eu ter perguntado qual era o ambulatório ou se foi ter respondido que eu trabalhava exatamente no lugar onde eles foram procurar ajuda. Mas essa era o fato. Místico que sou e estou, somado aos meus junguianismos atuais, lá fui oferecer ajudar e marquei um atendimento para o moço. E foi aí que ele gritou de verdade. Agradeceu, ajoelhou no chão, fez com que déssemos as mãos todos e, chorando, rezaram um pai-nosso."

O fato é que eu o atendi. O fato mais fatídico é que não posso contar suas histórias interessantíssimas nesse blog; porque sim, eram interessantíssimas. O fato triste é que ele não voltou nunca mais ao meu atendimento.

Mas esse acontecimento me fez refletir sobre o poder desses fenômenos psico-espirituais, que na minha opinião ultrapassam os limites das coincidências.

Outro dia estava assistindo a um vídeo no Youtube de uma entrevista do Leonard Nimoy, o ator que interpretou o Spock, do seriado Star Trek com a analista junguiana Beverley Zabriskie. Nimoy disse a ela que, lá pelos anos setenta, numa época de crise nos Estados Unidos, ele compôs uma música chamada “The sun will rise”, que trazia uma mensagem de esperança, de que os tempos seriam melhores e que, pouco tempo depois, soube que os Beatles haviam gravado “Here comes the sun”, que carregava a mesma mensagem e ele acreditava ser uma sincronicidade. Zabriskie, com seu inglês impecável e a finesse das moradoras da Park Avenue, disse que quando coisas acontecem ao mesmo tempo podem ser encaradas como coincidências e que quando essas coisas coincidentes apresentam um sentido particular em nossa existência, que fazem um sentido para nossa alma, então estamos falando de sincronicidade.

Eu não acho que foi uma coincidência. Acredito de fato, que ocorreu uma sincronicidade e foi por isso que decidi tentar ajudar aquele rapaz. Mas também fiquei em dúvida se, para além da sincronicidade, fui, de uma certa forma, “cooptado”, “abduzido” pelas ondas celestes imanadas pelas preciosas orações daquelas pessoas.

E quanto às formigas? Sim, porque se elas não tivessem aparecido, esse encontro provavelmente não teria acontecido. E como é que elas se envolvem nessa rede de sincronicidade? Um tempo atrás soube de um famoso biólogo que, ao estudar a comunicação entre animais menos desenvolvidos, foi satirizado pela comunidade científica por começar a propagar sua opinião de que até os insetos e aracnídeos poderiam ter sentimentos. Em algumas vertentes dos cultos hinduístas, existe a crença de que podemos reencarnar, não apenas como humanos, mas como outros animais e até como outros elementos da natureza, como uma samambaia ou um abacaxi.

Tudo isso porque dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. E na escrita de acontecimentos como esse que vão ficar pra sempre na minha memória, creio que Ele escreveu por linhas tortíssimas. Acho que Deus é canhoto.

Mas eu resolvi contar isso pra vocês porque, se de um lado o mundo está cada mais embrutecido, intolerante e repressor, não podemos deixar de botar nossa atenção a esses fatos curiosos da vida, que valem mais do que um milhão de palavras escritas em dez mil livros.A felicidade, a realização, a plenitude da vida, podem estar escondidas em pequenos eventos, em pequenos seres, em pequenos momentos. É como diz minha amada Adélia Prado, em seu poema “A face de Deus é vespas”:

Mas não recuso os marimbondos armando suas caixas

porque são alegres como posso ser, são dádivas,

mistérios cuja resposta agora é só uma luz,

a pacífica luz das coisas instintivas.”

Wednesday, June 01, 2011

VIDA DE METROVIÁRIO


Já faz algum tempo que oficializei as minhas quartas-feiras como o “dia diferenciado”, após estressantes experiências do insuportável trânsito da capital paulista ao voltar no final do dia de trabalho fora de São Paulo. Resolvi encarar o “busão”. E o resultado tem sido maravilhoso: saio um pouco mais cedo do que se fosse de carro, vou e volto dormindo no ônibus, e ainda sobra um pouquinho de tempo para ler, jogar e curtir o Facebook.

Uma coisa nesse percurso tem me intrigado muito: a cara feia dos metroviários. Toda vez que me dirijo às bilheterias do metrô, deparo com o mesmo tipo de cena. Um “bom dia” que não é respondido; um jeito estúpido de pegar o dinheiro naquele buraquinho estúpido na bilheteria; uma constante cara de azia que é irredutível com educação e sorrisos. Eu entendo que lidar com público é uma coisa difícil; andei fuçando na internet e eles têm salários realmente baixos. Mas se fosse assim, os faxineiros seriam todos infelizes. E os coveiros então? Nem se fala.

Hoje, ao comprar o bilhete, teria apanhado do sujeito da bilheteria se não fosse o vidro que nos separava. Só porque dei uma nota de cinquenta reais. Ele falou que não ia ter troco. Eu fiquei ali, plácido, olhando para a cara dele, assobiando uma música da Bethânia. E ele saiu, batendo nas paredes, raivoso, procurando o troco nas suas coisas. Jogou as notas, como se fizesse um enorme favor. Eu agradeci “budamente” e lhe desejei um bom dia.

Ao comprar o bilhete de volta (explico: comprei somente o bilhete de ida na ida porque não sabia que ia precisar da volta), me embaralhei com a contagem das moedas e o moço enjaulado puxou as moedas com força e se irritou com a minha falta de perspicácia. Enjaulado. É isso. Antes eu achava que a jaulinha das bilheterias servia de segurança para eles. Hoje tudo me leva a crer que a jaula é para proteger os usuários dos ataques dos metroviários.

Tudo bem, o salário é baixo. Parece que ronda os mil e quinhentos reais. Mas ninguém nasceu metroviário. Nenhum pai ou mãe sonhou em ter um filho metroviário, principalmente da estirpe que vende bilhetes de metrô.

Mas a minha faxineira ganha mais que um metroviário.

Hoje estive numa festinha de despedida de uma faxineira de um ambulatório público e acredito que ela ganhe a metade ou até um terço do que ganha um metroviário. E estava feliz, agradecendo por ter tido a oportunidade de trabalhar naquele lugar. Ela estava mudando de emprego, provavelmente para ganhar um pouco mais, ainda assim menos do que um metroviário.

Eu tinha uma vizinha que contratou, numa certa época, os serviços de um “faxineiro”. Um quarentão boa pinta, pai de família que, vendo-se desempregado e diante da dificuldade de ser recolocado, começou a fazer faxina em casas de família. Fazia o serviço tão bem e com tanta alegria que sua fama se espalhou pelos arredores e seus serviços passaram a ser disputadíssimos. Sem concurso público, sem carteira assinada, sem o tão esperado “resistro”. Mas com dinheiro no bolso e um sorriso na cara.

Os metroviários ranzinzas fizeram com que eu me lembrasse dos funcionários mal humorados das repartições públicas. Teve uma vez que fui à Secretaria da Saúde para buscar um raio de uma receita. A secretaria funcionava até dezesseis horas e eu cheguei faltando quinze minutos para encerrar o expediente. Ocorreu que ninguém vinha ao balcão para me atender e percebi que os funcionários se escondiam numa sala e desviavam do balcão para não me atenderem. Passados dez minutos, comecei a chamar cada pessoa que passava, até que um deles se encorajou e disse: “Estamos fechando”.

Contrário aos meus modos habituais, dei um soco no balcão e comecei a gritar, dizendo que o expediente ainda não estava encerrado e que já estava esperando havia algum tempo e que, caso não fosse atendido, queria falar com um superior. E veio uma médica com a cara mais fechada do universo me atender, como se estivesse fazendo uma caridade.

Que escolhas são essas? Claro que cada um tem direito a escolher o caminho, a profissão e o trabalho que bem entender, seja metroviário, coveiro, faxineiro ou prostituta ( que, aliás, costuma ganhar bem mais do que todos esse outros juntos...). E é compreensível que uma pessoa não esteja nos seus melhores dias e que não esteja distribuindo sorrisos; mas tem-se sempre a opção de abandonar aquela jaula em busca de dias mais felizes.

Enfim, se a vida de metroviário é muito pior do que a vida de cachorro, qual a graça de escolher a própria desgraça?