SANTA BUENA O MALA MUERTE

Tenho falado muito sobre a vida nesse blog, mas a morte tem sido um assunto constante. Vão pensar que sou mortuário. Já fui, não sou mais. É que a morte é a continuidade natural do rio da vida; é o encontro da vida com o mar da eternidade. A vida segue como um rio: segue mansa, segue rebelde, pode ser represada, pode empoçar, pode ser mansa e caudalosa, pode ser rebelde; reta, incólume, sinuosa, tortuosa, brava, acidentada, mas segue sempre, não para nunca.
E, como todos os rios seguem de encontro ao mar, a vida segue de encontro à morte. Do mesmo modo que o mar, cheio de vida em seu interior, a morte não é finitude. A morte é passagem, transformação, metáfora da alquimia maior da vida. Fechamos os olhos para uma vida e nos abrimos para um mar de possibilidades. Tem gente que vira pó; tem quem se encontre com Deus ou com musas ou ninfas ou 40 mil odaliscas; há quem vá para o inferno, tem aqueles que escorregam pelo umbral. Tem quem reencarne num corpo de gente, de bicho, de planta. E ainda quem vá para outro planeta. É nesse mar de possibilidades que a vida se encerra, não exatamente como um fim, mas como o fim de um ciclo, como a cortina do espetáculo que se fecha, temporariamente.
Também estou falando de morte porque ela tem aparecido pelo meu caminho com certa frequência. Não, ela não tem me convidado para passear com ela. Se ela me oferecer carona, provavelmente será equivocada. Se ela oferecer e eu aceitar, mais equivocada ainda. Tenho visto pessoas morrerem. Vi algumas pessoas queridas, vi outras com as quais não possuía relação. Vi pessoas queridas de pessoas queridas irem embora, vi outras quase partirem, vejo algumas acenando suas despedidas. E, embora não a conhecesse pessoalmente, perdi essa semana uma das minhas cantoras prediletas, Amy. E eu não cheguei a ver um show dela. Desde que conheci a sua voz e passei a acompanhar suas trajetórias – a artística e a toxicômana – vivia dizendo que queria ver um show dela logo, porque ela não passaria dos 30. Também queria ver o show de longe, só pra ouvir a sua voz, com dignidade e a salvo de levar cuspes, socos ou garrafadas da musa-trash. E a profecia se cumpriu: Amy me deixou na mão.
Mesmo quando a morte é esperada, até quando é desejada, como forma de alivio para o sofrimento de alguém, não consigo gostar muito dela. Ou, melhor dizendo, gosto da morte, não do que ela faz. Gosto da foice, do capuz, das caveiras. Curto como diversas civilizações lidam de uma forma mais “amorosa” com a morte, como os orientais, os mexicanos, os hindus. Mas, de pertinho, na pele, com o próprio sangue, não sei dizer. Porque já faz muito tempo que a Santa Muerte carregou meus avós para algum desses lugares inacessíveis aos pobres mortais. Sei bem o quanto sofri e chorei por essas perdas e não sei como será quando tiver que vivenciar isso novamente.
Quando era criança, assisti a um filme no SuperCine que contava a história de um menino que viveu até os cinco anos de idade numa instituição para deficientes mentais, até descobrirem que ele era apenas surdo, sendo devolvido para casa. Nesse momento se instala uma crise com o casal, pela dificuldade em lidar com o garoto. A única pessoa que conseguia dar um carinho despretensioso era seu avô, um humilde feirante, cheio de amor e paciência. É ele quem ensina ao menino a fazer com a linguagem de sinais, o símbolo da morte: as duas mãos espalmadas, uma de frente pra outra, posicionando-as na horizontal. E hoje estou muito feliz, porque após anos tentando, consegui lembrar o nome do filme: “And your name is Jonah”. É um filme de 1979. É lógico que esse filme me marcou muito, não apenas pela beleza, nem somente pela história trágica do menino, mas sim porque ele trata, de uma forma delicada, da perda de pessoas amadas.
Certa vez fui ao Cemitério do Araçá, acompanhando uma amiga que quis visitar o túmulo de sua finada tia. Sempre gostei de visitar cemitérios: aquela tranquilidade, aqueles túmulos maravilhosos, com suas estátuas de bronze, suas lápides memoráveis e seus mármores portentosos, muito embora seja meio avesso à idéia dos enterros e dos cemitérios. Acho que todo mundo deveria ser cremado. Assim eu desejo que façam comigo. E nem quero que guardem cinzas. Quero que joguem tudo numa samambaia, numa cachoeira ou no mar. Mas fiquei abismado com o estado deplorável daquele cemitério: a capela deteriorada, abandonada. As alamedas e calçadas quebradas; alguns túmulos dilapidados, depredados, descuidados. Pra que serve enterrar em túmulos enormes para depois não cuidar deles. Apesar de achar inúteis, penso que deveriam estar bem cuidados, uma vez que se tem um.
Embora não ache que “meus” mortos estejam por lá, resolvi aproveitar a visita para visitar seus túmulos. Fui até à administração do cemitério para procurar o endereço mortuário. Nada. Meus tios, que deveriam estar enterrados lá, não foram encontrados. Tentei escrever seus nomes de modo incorreto. Nada também. E minha avó? Lembro que ela ocupava esse mesmo túmulo dos meus tios, emprestado, porque minha família não tinha catacumba “privé”. Lembro que alguém, não me lembro quem, ficou incumbido de levar seus ossinhos para um cemitério bem pobrezinho, beeeeemmmm longe. Nunca fiz esse tipo de visita. Nunca assisti a um enterro, nunca levei flores em tumulo de ninguém. Deve ser por realmente não acreditar que eles estejam lá. Porque os “meus” mortos, estão vivos, dentro do meu coração.
Porque a morte é só isso: passagem. Não que seja uma passagem simples: é uma passagem cara. Sofrida, dolorida, incompreendida. E não tem jeito: é uma perda em nossa vida carnal. Sobretudo porque somos carnais. Se as pessoas choram quando se despedem em aeroportos; choram de saudades em finais de semana prolongados; quando os filhos vão para a escola pela primeira vez; nos casamentos; nos finais de férias, por que não haveriam de chorar nessa longa viagem? Detesto os pseudo-equilibrados que apregoam a ditadura anti-luto. Morte é perda, perda é luto. Luto é choro. Chore, se descabele, se entristeça. As lágrimas são as águas do rio da vida lavando nossa tristeza e cicatrizando nossas feridas. E o luto leva tempo para se “enxugar”. E um tempo particular que, com certeza, não dura apenas sete dias.
Que a Santa Muerte dos mexicanos, que a Nossa Senhora da Boa Morte dos Baianos, que a Kali dos Indianos e a Perséfone dos Gregos e dos junguianos abençoem, arrefeçam, tranquilizem e apaziguem as mortes, os mortos e seus viúvos, órfãos e abandonados em geral.
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