Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Sunday, October 30, 2011

TURBINAS FUMEGANTES (OU A METAMORFOSE FUMEGANTE)


Quinta-feira de outono em Paris. Era minha última semana na Cidade-Luz. Jantava com um casal de amigos e quase meia-noite toca o telefone. Minha secretária avisando que teria que voltar para o Brasil. Problemas de saúde na família. Aquela noite marcava o fim de uma estadia gloriosa. Um mês em Paris fazendo um estágio e aquele telefone anunciava o início do inverno em minha vida.

Saí correndo da casa dos meus amigos, desesperado. Relatórios a terminar, malas a preparar. No dia seguinte, acordei cedo para os preparativos. Supermercado para comprar meu carregamento de queijos. Lojas de souvenirs para os presentes. Agência de viagens para trocar a data do bilhete. Não havia vôos no sábado. Só no domingo.

“Vou tentar embarcar no sábado” – pensei. E assim foi. Arrumei tudo. Cheio de malas, livros, queijos, revistas, computador. Difícil foi descer a escadaria do prédio, sozinho, com tudo aquilo. Chegando no aeroporto, tentei embarcar. É certo que estava exausto, com olheiras fundas, mal-humorado. Mas não creio que tudo isso tenha me deixado com cara de terrorista. O fato é que a despachante, que falava comigo demi-anglais-demi-français achou que eu era. Fiquei parado, recostado à minha imensa mala enquanto ela conversava com os outros, todos olhando pra mim. Percebo um movimento estranho ao meu redor. Vem o outro fazer as mesmas perguntas. Por que tinha vindo para Paris? Por que minha conexão era nos Estados Unidos? Por que queria voltar antes? Respondia prontamente a tudo e, depois de liberado, descobri que não iria embarcar, porque não havia lugar no vôo.

Hospedei-me em um hotel próximo ao aeroporto. É incrível como Paris deixa de ser Paris nos arredores do Charles de Gaulle. Tudo feio, escuro, barulhos de avião e carros. Vista para lugar nenhum. Antes de cair exausto na cama, lembrei-me dos queijos. Um dia a mais em Paris seria o fim! Tratei de improvisar um gelador de queijos. Fui à máquina de gelo do hotel e lotei a banheira de cubos de gelo. Lá repousaram duzentos euros em queijos franceses.

No dia seguinte, lá vou eu para o aeroporto. Na sala de embarque, fiquei deitado sobre a mochila, tentando dormir um pouco. Percebi que ninguém anunciava meu vôo para Chicago, da United Airlines. E então percebi que estava na sala de embarque errada! Saí correndo de lá, peguei passarelas, escadas rolantes, mais passarelas. Cheguei na sala correta e tudo a mesma pasmaceira: o vôo estava com mais de duas horas de atraso.

Ao entrar no corredor de embarque, mais uma surpresa: terrorista novamente! Pediram para revistar minha mochila. Tirar tudo, tudo, tudo… apertaram meus agasalhos procurando bombas; tive que espalhar tudo sobre a mesa. Passaram detectores de terroristas em mim… Depois pediram desculpas pelo incômodo e exigiram que eu guardasse tudo rápido porque estava atrasando o avião….

Chegamos em Chicago já era noite. Ainda tive energia para ir correndo à cidade gastar meus últimos dólares. Best Buy, Abercrombie, Virgin, Starbucks…. Cheguei no aeroporto morto. Mal subi no avião, já estava morrendo… fechei os olhos e pensei: nem vou precisar tomar meus comprimidos… A única coisa desagradável era o passageiro ao meu lado. Um gordo de duzentos quilos. Não havia espaço para mim. Entre ele e a poltrona da frente, sobrava um triângulo de quinze graus. Era tudo o que eu via do resto do avião.

Mal o avião levantou, já dormia profundamente. Acordei cerca de meia hora atrás com um estrondo horroroso. Via tudo embaçado, não conseguia abrir os olhos de tanto sono. O meu gordo vizinho tinha as mãos sobre os olhos e, dos estreitos quinze graus de sightview, um espetáculo de luzes. Alguma coisa havia explodido, pegado fogo. Eu via as mãos das pessoas em prece e acho que jamais esquecerei as mãos de uma senhora erguidas aos céus, com o tercinho na mão pendurado. Desligado de tanto sono pensava: “Devo estar sonhando que o avião está caindo” e dormia mais um pouco. Acordava outra vez e agora via a turbina do outro lado do avião explodindo e ainda assim acreditava estar sonhando. Algum tempo após, no chacoalhar do avião, consegui acordar. Foi então que o comandante anunciou que estava tudo sob controle e que voltaríamos para Chicago.

Somente nesse momento percebi o que tinha ocorrido. A turbina explodiu, dizem que foi um urubu. E quase morremos. Quando a turbina parou de explodir, esvaziaram o combustível no Lago Michigan. Voando baixo, avistava a cidade, o lago. Mais uma volta. Avistava a cidade e o lago. Mais uma volta. Avistava a cidade e o lago. Só sei que ficamos uma hora desse jeito. O avião aterrisou sem problemas, com muitas ambulâncias, bombeiros, espumas na pista e toda a equipe da United, os funcionários do aeroporto, outros passageiros, a CNN. Todos aplaudindo os sobreviventes.

Fomos acomodados em um hotel de luxo, para embarcar no dia seguinte. Não aproveitei nada do hotel. Perdi o sono. Não tive reações desesperadas, mas fiquei pensando que, a essas alturas, poderia estar morto. Pensei nas pessoas que amo, nos amigos, nas lutas e conquistas para chegar até lá. Pensei nos queijos que estavam apodrecendo no aeroporto, pois ficamos sem nossas malas até o próximo embarque. Somos importantes enquanto estamos vivos, mas a vida é realmente muito, muito frágil. Sempre disse que preferia morrer viajando pelos continentes do que ser atropelado por um Fusca verde. E naquele momento percebi que não queria morrer. Queria voltar para casa.

Embarcamos no dia seguinte num outro vôo. Eu estava calmo, mas havia pessoas muito, muito nervosas. Muitas pessoas que estavam no vôo anterior desapareceram. Provavelmente escolheram outra companhia ou outro vôo. O melhor de tudo, além de voltar para casa com vida, foi que o meu gordo vizinho não estava no vôo. Foi substituído por uma paraguaia perdida. E meus queijos não apodreceram .

Passada toda a confusão, todos que estavam no vôo comentavam que seríamos resarcidos com vouchers magnânimos. Pensei que voltaria de graça aos Estados unidos, de primeira classe. Que nada. Passados uns trinta dias, recebi uma merreca de cento e cinquenta dólares. É isso que vale uma vida? Fiquei indignado. Mandei mensagens para os diretores da United, para o setor de atendimento ao cliente. Nenhuma satisfação além de respostas padronizadas. Então resolvi deixar pra lá.

Não fui recompensado com viagens, nem voucher, nem dinheiro que preste. Mas senti que fui agraciado com a possibilidade de continuar vivo. E esse sentimento foi crucial para mim, uma vez que estava numa fase incrédula das coisas do espírito. E acho que é por isso que, quando conto essa história, a primeira imagem que me vem à mente é a do tercinho balançando na mão da senhora. Era realmente um momento de “virada” em minha vida em que decidi dar por encerradas as minhas férias da credulidade.

*****

Escrevi esse texto há 7 anos. Essa viagem, esse acidente, aconteceram há exatos 7 anos e oito dias. E hoje, insone de tanto dormir, passeando pelos arquivos, procurando textos “postáveis” enquanto a inspiração para escrever permanece fugidia, encontrei-o. Isso me faz pensar no quanto me reencontrei, no quanto essa viagem de volta significou uma volta ao presente da vida, à espiritualidade, às pessoas que amo. E fiquei pensando nas pessoas que eu conheço e que, por diversas razões, se sentem vazias, incompletas, infelizes. Como confortá-las? Como ajudá-las, sem cair na heresia de ficar repetindo o quanto têm saúde física, os dois braços e as duas pernas ou dizendo das tantas pessoas que estão passando fome e frio nas ruas ou lembrando das pessoas com câncer ou outras doenças tão “mais sérias”? É justo contrapor as mazelas de outrem no intuito de mitigar as dores da alma?

Sou mais Adélia Prado, que pergunta “Oh, Deus, podemos gemer sem culpa?” Podemos Deus? Podemos chorar as nossas pitangas, desfiar nossos rosários, choras as nossas lágrimas das dores que não são maiores ou menores do que as dos outros; são apenas diferentes.

E eu penso nas pessoas todas que estão sofrendo agora: preocupadas com suas dívidas; chorando desafetos, traições, abandonos; lamentando dores intermináveis, e doenças, e mortes. Todo mundo sofre e sente algum tipo de dor o tempo todo. A vida inteira. Eu sinto, tu sentes, ele sente. Você sente. Seja a dor de existir ou a de não existir; para si mesmo ou para ninguém; para tudo ou para nada. Só sei que a vida não para e muitas vezes, a dor também não.

Hoje eu já sou um homem de 38 anos. Que tem dores no corpo e na alma. Que já perdeu coisas e pessoas, que já foi roubado, enganado, abandonado. Cicatrizes na alma que não a tornaram feia. Fizeram-na a minha alma, que não poderia ser outra e seria totalmente outra sem elas. Mas que acredita que a vida pode ser boa e que as coisas ruins podem nos dar tréguas. Acho que era isso o que a mão estendida, segurando o tercinho, no avião quase caindo quis me dizer: não importa o que seja, o que venha. Deus está sempre conosco.

Sunday, October 23, 2011

LISTA DE PRESENTES.


É, está chegando mais um aniversário. Trinta e oito anos. Pelo que tenho visto esse ainda não é o número de “parada de contagem” entre os homens. Acho que esse é o caso do 39. Um ano antes do quarenta. É aí que a coisa parece que pega. Mas acho que isso não vai acontecer comigo. Simplesmente porque não tenho mais nada a esconder.

Não escondo mais a barba sob os cortes diários das lâminas; cansei de esconder a barriga e de pentear o cabelo de um jeito que esconda a calvície. Ando ainda mais cansado de ocultar as coisas que penso, as minhas opiniões sobre as coisas e as pessoas e, ao invés de me envergonhar, ando cada vez mais orgulhoso de ser assim. Um dia desses, recebi a mensagem de um amigo, após uma viagem, dizendo: “És maneírissimo, paciente e muito doido. Fala o quer e quando quer!”. É isso. O cara sabe quem eu sou. E não fez diferença pra ele. Também cansei de esconder as podres pérolas dos assuntos de família. Quem me conhece, sabe de onde eu vim, quem são e como são meus pais, onde eu morei, as dificuldades pelas quais passei.

Tem um outro motivo pelo qual não vou diminuir minha idade ou “parar” de envelhecer: a cada ano que passa, eu sou mais feliz. Isso não quer dizer que tenho tido uma vida sem problemas. Pelo contrário, tive vários. Resolvi alguns, pendurei outros, fugi de outros mais. Mas eles existem e sempre vão existir. Mas na “balancinha”, posso dizer que tive mais alegrias do que tristezas e a cada ano me sinto mais satisfeito. Isso também não quer dizer que era necessariamente infeliz antes; eu só era muito menos feliz. Digo isso porque nesse domingo maravilhoso, ao lado das minhas duas irmãs – a de sangue e a do peito, do meu sobrinho, do meu amor e de grandes amigos em minha casa, parei pra pensar no quanto a vida é boa, no quanto sou grato a Deus pelas dádivas da vida e no quanto muitas vezes nos queixamos de coisas secundárias, menores, pobres. E esse arrebatamento de alegria me fez pensar em alguns dos presentes – sejam eles materiais ou imateriais -que ganhei nesses trinta e oito anos de vida, e fiquei com vontade de dividi-los aqui com vocês. Perdoem-me minha atemporalidade, mas as lembranças estão guardadas num quarto de memórias, sem estantes ou arquivos. Pego-as conforme as encontro, mais ou menos empoeiradas.

O primeiro presente que tenho a lembrança de ter ganho foi o Pierre. Um cachorro de pelúcia, com boina e colete xadrez, bonachão como eu. Ganhei-o da minha tia Wilma. Pierre me acompanhou durante muitos anos. Dormiu comigo, chorei abraçado com ele. Desapareceu lá pelos meus vinte e oito anos. Acho que foi roubado numa mudança de casa.

Eu me lembro no Natal de 1979. Um dos poucos em que eu ganhei exatamente o que havia pedido aos meus pais. Foi nesse Natal que ganhei a minha Caloi azul deles, e foi com ela que consegui abandonar as rodinhas e correr alegre pelos paralelepípedos de Peruíbe. Nesse mesmo ano eu ganhei um forte apache da minha madrinha Lilian, um presente muito desejado e esperado.

Em 1980 veio um dos maiores presentes da minha vida: minha irmã Luciana. O legal de ganhar uma irmã como ela de presente é poder receber, ao longo dos anos, vários outros presentes. E eu me lembro de dois: a sua formatura, em 2007 e o nascimento de meu sobrinho Felipe, em 2009. Esse eu vi nascer e estou vendo crescer, se desenvolver.

E por falar em sobrinhos, em 2006 nasceu o Pedrinho, meu primeiro sobrinho. Lembro de ter ido à maternidade em seu segundo dia e vida. Ele, embrulhado num xale cor de abóbora, o mesmo xale com o qual eu havia saído da maternidade, despertou em mim um sentimento de amor enorme, incondicional.

Minha tia Lilian me deu vários presentes. Talvez o maior presente tenha sido ter ficado sempre por perto, sempre amiga, protetora. Mas ela me deu duas coisas que foram fundamentais para os meus primeiros passos na estrada “mística”: um pêndulo e um medidor de aura. Ela também me deu um livro lindo, a biografia do Charles Chaplin, que me acompanhou por vários anos nessa vida.

Em 2003, Deus me deu um presentão. Foi nesse ano que encontrei o amor da minha vida. E, igualzinho aos bambus da felicidade que cultivo aqui em casa, esse amor cresce a cada dia. Esse amor me deu vários presentes, mas o maior deles ainda tem sido estar ao meu lado como sempre esteve, desde o começo.

Se não me falha a memória, em 2008 comemorei meu aniversário com coisas da Bahia. Foi um presente que resolvi me dar e que significou, ao mesmo tempo, a minha gratidão à Bahia por existir em minha vida. E foi nesse aniversário que ganhei dois presentes que encheram de emoção os meus olhos: um VHS com a gravação do programa “Inside de Actors Studio”, especialmente gravado em Paris, com a participação da Juliette Binoche e o DVD da minissérie “Desejo”.

Durante toda a minha vida, encontrei várias amigas que tiveram espaços muito importantes em momentos diferentes. Algumas desapareceram; outras vão e voltam e nos vemos vez ou outra; outras continuam por perto. Mas o mais importante é que, independente do “status”, da presença ou da ausência, foram e serão pessoas muito importantes que morarão sempre no meu coração. Não vou falar seus nomes para não despertar ciúmes em outras grandes amigas. Quero apenas lamentar a grande falta que uma delas me faz e dizer que o lugarzinho que ela ocupa em meu coração continua bem aqui, paradinho, sem lugar para outra pessoa.

E por falar em amigas, tenho que confessar. Confessar o que, se todo mundo já sabe...Minha amiga Alessandra, que tem estado tão pertinho todos esses anos, que me deu tanto apoio, palavras, carinhos; mas de tudo o que ganhei dela, tenho que ressaltar um presente lindo: uma gaiola balinesa e, dentro dela, um cartãozinho que dizia: “Essa gaiola é de guardar, não de prender”. E essa gaiola é o símbolo dessa amizade gostosa que tanto tem me feito bem.

Eu poderia passar dias escrevendo sobre os presentes maravilhosos que eu ganhei de Deus e dos homens. Eu não me cansaria, mas com certeza deixaria vocês bem cansados, porque o presente é de quem recebe, muito embora possamos compartilhá-lo.

E é isso que eu quis dar a vocês: compartilhar alguns dos presentes da minha vida.

Saturday, October 08, 2011

À BIENTÔT, PARIS


Na minha alma tem um monte de pátrias juntas. Tem uma parte baiana, um pedaço paulistano, uma porção carioca, uma fatia nova-iorquina e um “tantão assim” parisiense. Tem ilhotas de vários lugares por onde passei também. Sou esse mélange, esse patchwork de pátrias, culturas, cores e sabores que foram se agrupando, se ajeitando e formando essa amálgama de coisas que me compõem. Mas se de tudo isso eu tiver que escolher um pedaço só; se eu tiver que apreciar apenas um prato de todo esse banquete, com certeza fico com Paris. Todo mundo sabe, não tem segredo: Paris manda em meu coração.

E não graças ao Lula ou à Dilma, mas graças ao meu suor, ao meu trabalho, tenho conseguido reabastecer-me de Paris com certa frequência. Menos do que eu gostaria ou precisava; ao menos o bastante para manter acesa essa chama de amor que alimenta a minha vida. Seis dias se passaram, e eu banhando ininterruptamente o meu coração e a minha alma de Paris.

Champagnes, vinhos, brioches, museus, monumentos, ruas, avenidas e pontes. Tudo, tudo o que há pelos caminhos que trilho em Paris, tem a ver com minha alma, com o brilho da minha vida. E se passaram rapidamente seis maravilhosos dias. E, como quase todas as vezes que fui a Paris, tive a maravilhosa oportunidade de apresentar a pessoas muito queridas, a cidade que mais amo. Minhas ruas, minhas comidas, minhas estações de trem. É como se dissecasse minha alma para eles; é como se repartisse um chocolate, dando pedaços doces da minha alma a elas. A diferença é que prefiro dividir Paris a chocolate. Os chocolates, caros ou baratos, chiques ou populares, são finitos; eles abastecem temporariamente minha alma e suplantam minhas angústias; Paris é infinita, perene e repleta de amor para multiplicar.

Quando estou aqui, a Paris física e a Paris da alma formam um uno, indivisível, um todo. É o desejo ligado à plena realização do desejo. É completude. Mas no liga-desliga dos vai-e-véns da vida, chega o momento de desligar, de ir embora. A perfeita fusão do “corpo” e da “alma”precisam agora se desfazer. É hora de ir embora. E começa o luto.

Não coincidentemente, esse luto chega com o frio. Chegamos com o dia ensolarado e partimos com o dia frio, chuvoso. É a resposta da Paris física ao ocaso da alma que se distancia dela. Estou indo embora. Acordo cedo para comprar os suprimentos que estancam meus vazamentos até quando eu puder voltar: queijo, foie gras, flor de sal, sal trufado, terrines, geléias chocolates. Arrumo as malas, uma delas quebra. Minhas coisas relutam em partir. Táxi, aeroporto, filas, check-in, raios-x, revistas. Uma avalanche de desagrados transformando a completude em fragmentação. Meu amor por Paris vai se enxugando, compactando, encistando. Minha alma, outrora expandida, se guarda numa caixa quadrada.

Não,meu amor não morreu. Só morrerá quando estiver morta a minha alma. Então não morrerá nunca. Mas a violência com a qual somos invadidos com as burocracias nos aeroportos, faz com nos esqueçamos do “bonheur”. Masoquismo transformador, ainda por cima escolho voar com American Airlines. É o sonho transformado em dura realidade. Não tem mais cadeiras à beira do Sena; agora resta ficar encalacrado num assento minúsculo. Acabou o fromage, o jambon, o citron. Agora é batata frita, queijo processado,chips e Kit-Kats. A poesia parisiense chacinada pela idiotia enlatada de uma companhia aérea americana.

Acho que já estou ficando “enguarulhado” ou “encumbicado”. Enquanto caminhava para o metrô ontem, de braços dados com minha amiga, saindo do Château de Versailles, ficamos revivendo a horrorosa chegada ao aeroporto de Cumbica. Pensamos que experiência horrível deve para um estrangeiro chegar ao Brasil por São Paulo. Cumbica mata qualquer poesia.

Mas estou apenas brincando. Estou triste e de luto por deixar Paris, mas a poesia da minha alma ainda não teve tempo de desfalecer. Saio do outono europeu para chegar, não em Cumbica, nem na Marginal do Tietê. Eu chego na primavera da existência, com a alma florida, com poesia pulando da boca e miragens paradisíacas saltando dos olhos.