TURBINAS FUMEGANTES (OU A METAMORFOSE FUMEGANTE)

Quinta-feira de outono em Paris. Era minha última semana na Cidade-Luz. Jantava com um casal de amigos e quase meia-noite toca o telefone. Minha secretária avisando que teria que voltar para o Brasil. Problemas de saúde na família. Aquela noite marcava o fim de uma estadia gloriosa. Um mês em Paris fazendo um estágio e aquele telefone anunciava o início do inverno em minha vida.
Saí correndo da casa dos meus amigos, desesperado. Relatórios a terminar, malas a preparar. No dia seguinte, acordei cedo para os preparativos. Supermercado para comprar meu carregamento de queijos. Lojas de souvenirs para os presentes. Agência de viagens para trocar a data do bilhete. Não havia vôos no sábado. Só no domingo.
“Vou tentar embarcar no sábado” – pensei. E assim foi. Arrumei tudo. Cheio de malas, livros, queijos, revistas, computador. Difícil foi descer a escadaria do prédio, sozinho, com tudo aquilo. Chegando no aeroporto, tentei embarcar. É certo que estava exausto, com olheiras fundas, mal-humorado. Mas não creio que tudo isso tenha me deixado com cara de terrorista. O fato é que a despachante, que falava comigo demi-anglais-demi-français achou que eu era. Fiquei parado, recostado à minha imensa mala enquanto ela conversava com os outros, todos olhando pra mim. Percebo um movimento estranho ao meu redor. Vem o outro fazer as mesmas perguntas. Por que tinha vindo para Paris? Por que minha conexão era nos Estados Unidos? Por que queria voltar antes? Respondia prontamente a tudo e, depois de liberado, descobri que não iria embarcar, porque não havia lugar no vôo.
Hospedei-me em um hotel próximo ao aeroporto. É incrível como Paris deixa de ser Paris nos arredores do Charles de Gaulle. Tudo feio, escuro, barulhos de avião e carros. Vista para lugar nenhum. Antes de cair exausto na cama, lembrei-me dos queijos. Um dia a mais em Paris seria o fim! Tratei de improvisar um gelador de queijos. Fui à máquina de gelo do hotel e lotei a banheira de cubos de gelo. Lá repousaram duzentos euros em queijos franceses.
No dia seguinte, lá vou eu para o aeroporto. Na sala de embarque, fiquei deitado sobre a mochila, tentando dormir um pouco. Percebi que ninguém anunciava meu vôo para Chicago, da United Airlines. E então percebi que estava na sala de embarque errada! Saí correndo de lá, peguei passarelas, escadas rolantes, mais passarelas. Cheguei na sala correta e tudo a mesma pasmaceira: o vôo estava com mais de duas horas de atraso.
Ao entrar no corredor de embarque, mais uma surpresa: terrorista novamente! Pediram para revistar minha mochila. Tirar tudo, tudo, tudo… apertaram meus agasalhos procurando bombas; tive que espalhar tudo sobre a mesa. Passaram detectores de terroristas em mim… Depois pediram desculpas pelo incômodo e exigiram que eu guardasse tudo rápido porque estava atrasando o avião….
Chegamos em Chicago já era noite. Ainda tive energia para ir correndo à cidade gastar meus últimos dólares. Best Buy, Abercrombie, Virgin, Starbucks…. Cheguei no aeroporto morto. Mal subi no avião, já estava morrendo… fechei os olhos e pensei: nem vou precisar tomar meus comprimidos… A única coisa desagradável era o passageiro ao meu lado. Um gordo de duzentos quilos. Não havia espaço para mim. Entre ele e a poltrona da frente, sobrava um triângulo de quinze graus. Era tudo o que eu via do resto do avião.
Mal o avião levantou, já dormia profundamente. Acordei cerca de meia hora atrás com um estrondo horroroso. Via tudo embaçado, não conseguia abrir os olhos de tanto sono. O meu gordo vizinho tinha as mãos sobre os olhos e, dos estreitos quinze graus de sightview, um espetáculo de luzes. Alguma coisa havia explodido, pegado fogo. Eu via as mãos das pessoas em prece e acho que jamais esquecerei as mãos de uma senhora erguidas aos céus, com o tercinho na mão pendurado. Desligado de tanto sono pensava: “Devo estar sonhando que o avião está caindo” e dormia mais um pouco. Acordava outra vez e agora via a turbina do outro lado do avião explodindo e ainda assim acreditava estar sonhando. Algum tempo após, no chacoalhar do avião, consegui acordar. Foi então que o comandante anunciou que estava tudo sob controle e que voltaríamos para Chicago.
Somente nesse momento percebi o que tinha ocorrido. A turbina explodiu, dizem que foi um urubu. E quase morremos. Quando a turbina parou de explodir, esvaziaram o combustível no Lago Michigan. Voando baixo, avistava a cidade, o lago. Mais uma volta. Avistava a cidade e o lago. Mais uma volta. Avistava a cidade e o lago. Só sei que ficamos uma hora desse jeito. O avião aterrisou sem problemas, com muitas ambulâncias, bombeiros, espumas na pista e toda a equipe da United, os funcionários do aeroporto, outros passageiros, a CNN. Todos aplaudindo os sobreviventes.
Fomos acomodados em um hotel de luxo, para embarcar no dia seguinte. Não aproveitei nada do hotel. Perdi o sono. Não tive reações desesperadas, mas fiquei pensando que, a essas alturas, poderia estar morto. Pensei nas pessoas que amo, nos amigos, nas lutas e conquistas para chegar até lá. Pensei nos queijos que estavam apodrecendo no aeroporto, pois ficamos sem nossas malas até o próximo embarque. Somos importantes enquanto estamos vivos, mas a vida é realmente muito, muito frágil. Sempre disse que preferia morrer viajando pelos continentes do que ser atropelado por um Fusca verde. E naquele momento percebi que não queria morrer. Queria voltar para casa.
Embarcamos no dia seguinte num outro vôo. Eu estava calmo, mas havia pessoas muito, muito nervosas. Muitas pessoas que estavam no vôo anterior desapareceram. Provavelmente escolheram outra companhia ou outro vôo. O melhor de tudo, além de voltar para casa com vida, foi que o meu gordo vizinho não estava no vôo. Foi substituído por uma paraguaia perdida. E meus queijos não apodreceram .
Passada toda a confusão, todos que estavam no vôo comentavam que seríamos resarcidos com vouchers magnânimos. Pensei que voltaria de graça aos Estados unidos, de primeira classe. Que nada. Passados uns trinta dias, recebi uma merreca de cento e cinquenta dólares. É isso que vale uma vida? Fiquei indignado. Mandei mensagens para os diretores da United, para o setor de atendimento ao cliente. Nenhuma satisfação além de respostas padronizadas. Então resolvi deixar pra lá.
Não fui recompensado com viagens, nem voucher, nem dinheiro que preste. Mas senti que fui agraciado com a possibilidade de continuar vivo. E esse sentimento foi crucial para mim, uma vez que estava numa fase incrédula das coisas do espírito. E acho que é por isso que, quando conto essa história, a primeira imagem que me vem à mente é a do tercinho balançando na mão da senhora. Era realmente um momento de “virada” em minha vida em que decidi dar por encerradas as minhas férias da credulidade.
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Escrevi esse texto há 7 anos. Essa viagem, esse acidente, aconteceram há exatos 7 anos e oito dias. E hoje, insone de tanto dormir, passeando pelos arquivos, procurando textos “postáveis” enquanto a inspiração para escrever permanece fugidia, encontrei-o. Isso me faz pensar no quanto me reencontrei, no quanto essa viagem de volta significou uma volta ao presente da vida, à espiritualidade, às pessoas que amo. E fiquei pensando nas pessoas que eu conheço e que, por diversas razões, se sentem vazias, incompletas, infelizes. Como confortá-las? Como ajudá-las, sem cair na heresia de ficar repetindo o quanto têm saúde física, os dois braços e as duas pernas ou dizendo das tantas pessoas que estão passando fome e frio nas ruas ou lembrando das pessoas com câncer ou outras doenças tão “mais sérias”? É justo contrapor as mazelas de outrem no intuito de mitigar as dores da alma?
Sou mais Adélia Prado, que pergunta “Oh, Deus, podemos gemer sem culpa?” Podemos Deus? Podemos chorar as nossas pitangas, desfiar nossos rosários, choras as nossas lágrimas das dores que não são maiores ou menores do que as dos outros; são apenas diferentes.
E eu penso nas pessoas todas que estão sofrendo agora: preocupadas com suas dívidas; chorando desafetos, traições, abandonos; lamentando dores intermináveis, e doenças, e mortes. Todo mundo sofre e sente algum tipo de dor o tempo todo. A vida inteira. Eu sinto, tu sentes, ele sente. Você sente. Seja a dor de existir ou a de não existir; para si mesmo ou para ninguém; para tudo ou para nada. Só sei que a vida não para e muitas vezes, a dor também não.
Hoje eu já sou um homem de 38 anos. Que tem dores no corpo e na alma. Que já perdeu coisas e pessoas, que já foi roubado, enganado, abandonado. Cicatrizes na alma que não a tornaram feia. Fizeram-na a minha alma, que não poderia ser outra e seria totalmente outra sem elas. Mas que acredita que a vida pode ser boa e que as coisas ruins podem nos dar tréguas. Acho que era isso o que a mão estendida, segurando o tercinho, no avião quase caindo quis me dizer: não importa o que seja, o que venha. Deus está sempre conosco.