ANDANÇAS
Já faz algum tempo que comecei um pequeno consultório no bairro onde
nasci. Da primeira vez que passei pela avenida principal do bairro, tive uma
sensação estranha. Fazia uns quinze anos que não passava por lá. Nasci e cresci
naquele bairro. Vi a padaria onde eu pedia bisnagas sentado no balcão; a
relojoaria onde comprei meu primeiro relógio; a casa onde morei, onde levei uma
surra do meu pai; a rua em que brincava e onde conheci grandes amigas. Tudo,
tudo, ao passar por esse bairro, por essas ruas, tem um cheiro, um cor, um tom,
traz uma lembrança. Tenho histórias para contar até da casa onde fica a sala
que se transformou em meu novo consultório: eu conhecia a dona; uma gorda com
as bochechas rosadas, seu marido com cara de banana e a filha com cara de sonsa;
vendiam roupas pagas em muitas vezes, abatendo valores de uma “carterinha”,
como quando abrimos contas em quitandas do bairro.
Num dos meus primeiros atendimentos no bairro, dei de cara com uma
mulher cuja cara não me era estranha. Perguntei onde ela morava. Ela explicou.
“Pra cima ou pra baixo da igreja?”, perguntei. “Pra cima. A igreja dos
crentes?”, perguntou. “Sim, essa mesmo”, respondi. “Detesto aquela gente”, argüiu
com raiva. Abaixei o olhar. “Você conhece essa gente?”, ela perguntou. “Sim, são
meus parentes. Mas não tenho muito contato.” Preferi avisar. Achei melhor do
que ela descobrir depois, lendo meu sobrenome na receita. Paciência. Ela nunca
mais voltou.
Hoje, esperando o horário para começar a ver meus pacientes, parei para
fazer um lanche na padaria. Ao sair, passo em frente à banca de jornal e vejo
um cara com um semblante conhecido. “Nossa, é a cara do...”
“Fulano!”- um cara ao lado gritou o nome dele.
Ele mesmo. O menino que sofria bullying na escola primária e que foi
abusado sexualmente por dois moleques maiores no ônibus escolar. Essa história
foi o vexame do ano na escola. Eu, criança, assisti àquela cena sem nem saber o
que significava, tampouco entendendo que eu teria sido o próximo, não fosse
alguém ter denunciado o ocorrido à direção da escola e os meninos serem tirados
da condução escolar. Lembro dos seus nomes, dos seus rostos, das casas onde
moravam. Por um momento quase me aproximei dele, para me apresentar. Uma
insalubridade. Qual seria o sentido de aparecer diante dele, mais de trinta
anos depois? Como eu me apresentaria? Oi, eu era aquele gordinho que viu você
ser violentado quando criança?
Saí de lá, entrei no carro. Lembrei da violência ao qual era submetido,
por ser “delicado”, por ser gordo, por não ser esportista. Gordo, viado,
“gentinha”. Lembro do medo que eu sentia ao ter que pedir permissão à
professora para ir ao banheiro, com o risco de receber uma negativa. Nesse
tempo, como em tantos outros, minhas histórias fantasiosas, meu mundo paralelo
eram minhas maiores armas para conseguir acreditar que a vida não era tão ruim.
“Bulinizados”, eu e ele. Sobreviventes. Não sei como ele vive, não sei
o que ele passou nos anos que se passaram. Só posso dizer o que eu vivi. Mas
ele e eu estamos aqui, vivos, mais de trinta anos depois. Cresci, fiz terapia,
libertei-me da maléfica influência do meu pai, fugi do bairro. Esse bairro, que
ficou tantos anos trancados num arquivo empoeirado das minhas memórias, hoje é
um caminho por onde passo ao menos uma vez por semana. E passando por esse
caminho, cuidando de pessoas, reaproximando-me de pessoas queridas – primos e primas,
amigos e amigas – não estou apenas cobrindo com novas cores os muros sombrios
dessa escola esquecida; estou quebrando azulejos, trocando rejuntes,
fortalecendo paredes, tijolos, reboques simbólicos desse monte de coisa que me
construiu, me modelou e faz parte do que sou hoje.
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