Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Tuesday, February 23, 2016

MAS EU CRESCI




Hoje eu li um texto num site (http://www.brasilpost.com.br/carol-patrocinio/resposta-fernanda-torres_b_9294562.html)  que comentava brilhantemente sobre o texto da Fernanda Torres numa coluna que me recuso a compartilhar, por fazer parte de um jornal que me recuso a ler e também porque o conteúdo é memoravelmente abjeto. Se quiser ler, procura que você acha.  

Apesar de brilhante, o texto é em formato “cartinha”, coisa que está na moda hoje em dia. Eu quase escrevi uma cartinha também, mas eu acabei achando delicado demais para o meu modo de dizer as verdades, ou as minhas verdades, as minhas opiniões. Mas a cartinha da Carol me fez refletir sobre como somos facilmente adestrados a acreditar e a concordar com as “verdades” da Fernandinha, está atriz tão talentosa, tão inteligente e que, por ser tudo isso, só pode escrever verdades e cria uma barreira que nos impede de achá-la uma pessoa escrota, machista, preconceituosa e racista.

Eu parei para refletir no quanto a minha criação numa família preconceituosa (e inclua na palavra todos os possíveis preconceitos, como racismo, misoginia, machismo, homofobia e gordofobia) foi aos poucos constituindo, em minha forma de pensar e agir no mundo, uma robotizada reprodução desses preconceitos e que foram, aos poucos com estudo, leitura e encontros com pessoas mentalmente mais esclarecidas, se diluindo.

Ontem mesmo, antes de ler o texto da Fernandinha, eu me lembrei de quando era criança e ia com minha mãe à Igreja de Santa Terezinha, na Zona Norte de São Paulo, “caçar” empregadas domésticas. A igreja oferecia um serviço às dondocas locais, uma espécie de agenciamento de domésticas. No corredor lateral da igreja, escuro que só, diversas mulheres, em maioria negras, aguardavam sentadas serem escolhidas pelas patroas, que miravam aspectos físicos, cheiros e, por último, conversavam com a “escolhida”, tratando dos salários miseráveis e sem direitos trabalhistas.

Já em casa, a moça era levada ao quartinho, aquele quartinho úmido em comunicação com a garagem com bastante fumaça de monóxido de carbono, umidade das paredes, roupas para passar e brinquedos amontoados. Ao lado, um banheiro espremido, geralmente sem lâmpada, com um Ducha Corona preguiçosa – ela esquentava somente quando desejava, privada sem tampa, papel higiênico Primavera e sabonete Gessy. Lá em cima, em nosso banheiro, o chuveiro era Lorenzetti, o papel era qualquer outro que não fosse Primavera e o sabonete era Phebo. Se você não viveu nessa época, faça a experiência de limpar sua bunda com papel Primavera e talvez entenda onde estou querendo chegar.

Ela comia a mesma comida que a nossa, exceto os melhores doces. Mas tinha sempre que comer depois de nós, não importasse o horário. Não havia uniforme, porque minha família não tinha esse nível de sofisticação. De certa forma havia um uniforme: um farrapo da própria pessoa que era usado para aquela finalidade.

E assim iam e vinham diversas domésticas em nossa casa.

Também cresci ouvindo, entre meus familiares, piadas infames e pejorativas sobre negros, sobre gays, sobre mulheres. Confesso, como já confessei outras vezes publicamente, também contei muitas dessas piadas, que reproduzem e consolidam crenças.

Na faculdade de Medicina, apenas mais do mesmo. Preconceito, preconceito, preconceito. Filhinhos-de-papai acostumados com a vida boa e aprendendo com seus mestres a perpetuar a infâmia do desrespeito e da norma escravagista. Hoje vejo muitos deles por aí, ostentando “suas” babás arrastando carrinhos de bebês e passeando com seus cachorros pelas ruas dos Jardins. Adoro animais, mas uma das razões que me levam a não ter um cachorro é pela preguiça de passear com ele todos os dias e, mais do que isso, ser obrigado a pegar um troço enorme de cocô de Golden Retriever com um saquinho plástico de supermercado embrulhando a mão. Se você quer ter filho ou cachorro, por favor, carregue-os e limpe os cocôs deles.

Hoje, ao compartilhar o texto da Carol, tive minha Timelime do Facebook invadida por alguns (poucos, ufa!) comentários preconceituosos e alienados.

Eu nasci e cresci num meio alienado e, por algum tempo, me tornei um, agi como um. Mas, eu algum momento, eu cresci. Cresci de arrebentar os formatos, de poder ter empatia com o outro, de poder olhar a mulher, o homossexual, o transexual, o portador de deficiência, o gordo, o magro demais, o negro ou o cara de qualquer outra “cor” ou etnia ou origem geográfica como uma pessoa. 

Simplesmente uma pessoa.

Sim, ainda tenho que fazer um esforço para não cair no funcionamento automático de chamar a mulher que me desagradou de “vadia”, o sujeito de “filho da puta” ou “corno” ao invés de apontar e desabafar pela falha na atitude, não pelo aspecto físico ou de julgamento moral daquela pessoa.

Via de regra, essa mudança não ocorre naturalmente. Claro, existem aquelas pessoas iluminadas que nascem ou crescem  livres desses condicionamentos, provavelmente porque cresceram cercadas de pessoas que souberam ensinar, com a naturalidade dos pardais, a sabedoria da aceitação do outro.Mas em geral não é assim. Para mudar, é preciso ter algum tipo de contato, alguma capacidade de empatia que pode ser uma semente de mudança. E depois, bastante esforço.

Infelizmente ainda ouço de pessoas com quem convivo diversos comentários e opiniões bastante preconceituosos. Gente que em geral, consegue sobreviver dentro do quadradinho do politicamente correto, mas que cospe fogo preconceituoso quando é submetido a algum tipo de estresse ou frustração proveniente daquela pessoa “inferior”, de acordo com seu modo infame de vida. Eu poderia citar vários exemplos de acontecimentos como esse, mas de nada adiantaria. Pra mim, é como assistir “Que horas ela volta?” e falar coisas lindas sobre a atuação da Regina Casé e sobre o empoderamento e xingar o “preto-filho-da-puta” que te fechou no trânsito. Eu prefiro assumir que eu já fiz isso e me esforço para não fazer mais, não apenas para fazer bonito na foto, mas porque, para além do costume de ofender, não é realmente o que penso.

E por falar em contar histórias, eu fico, como disse Gonzaguinha, “com a pureza da resposta das crianças. Tenho duas colegas de trabalho, uma negra e outra branca, que são amigas. Suas filhas, crianças,  são amigas desde o nascimento. Numa festinha infantil, uma outra criança se aproximou e disse para a criança negra:

“Preto brinca com preto e branco brinca com branco”

A amiguinha branca empurrou essa criança, catou a mão da negra e bradou:

“Ela é minha amiga!”

Essa historinha diz tudo pra mim. Sobre como educar uma criança para ser preconceituosa e como, por outro lado, criar um indivíduo que mantenha em seu coração e na sua vida a pureza da infância, com cores, com diferenças, mas com equidade. Negar diferenças de cores, formas e desejos não é o modo correto em minha opinião. Certo mesmo é ensinar, desde cedo, que o mundo é uma palheta, uma aquarela de diferenças e que todas podem ser belas.


Fernandinha, você perdeu. 

Thursday, February 04, 2016

TE AMO, MÃE YEMANJÁ


* imagem de Yemanjá retirada do site http://artedearuanda.blogspot.com.br/2012/05/iemanja.html

Houve um tempo em que eu te repudiava. Achava que era por causa dos seus peitos grandes e caídos, porque arrastava pescadores inocentes para o fundo do mar com seu canto ou mesmo porque roubava os homens das suas filhas, deixando-as solteiras e mal sucedidas nas matérias do coração. Mentia. Eram apenas histórias que ouvia e fingia acreditar. Também não sabia compreender a sua grandeza. E pra mim, toda mulher, toda a cidade tinha quer ser filha da mãe das outras águas, as doces.

Foi quando minha amiga, filha sua, estampou igual bofetada uma verdade inconteste na minha cara lavada: eu não te amava porque tinha problemas com a maternidade, com a maternagem e todo esse monte de atributos e expectativas que depositamos na chamada arquetípica Grande Mãe. Faltou sim o carinho legítimo, faltou não ser usado, faltou ser protegido do monstro que me perseguia noites e dias, faltou ser defendido de ser roubado, faltou dar-me segurança. Não de você, mas da criatura que deveria ser a depositária dessa figura com seus atributos. Faltou tanta coisa. Faltas.

Demorei anos e idas e vindas às terapias para poder compreender que ninguém pode dar o que não tem, e mais anos ainda para poder perdoar essa falta advinda da impossibilidade. Foram embora a mágoa e o ódio que faziam sombra à sua aparição. Ficaram, como disse uma vez um dos mestres das terapias, as cicatrizes dos sofrimentos passados. E Deus pode enfim me presentear com a serena visão da sua face, do seu olhar sobre mim, da sua mão afagando silenciosamente a minha cabeça.

Deus, não o Deus supremo que tudo pode e tudo vê, mas o deus-em-mim, o todo-poderoso instinto da minha consciência que habita o fundo da minha alma.

Foram necessárias muitas peregrinações a sua primeira morada em Terra Brasilis, a Bahia de Todos os Santos, para aprender a te amar, respeitar e te aceitar como Mãe Suprema. Jamais esquecerei  o dia em que, estonteado pela sua vibração de amor e dando ouvido aos seus sussurros de mãe, desci as escadarias de seu palacete no Rio Vermelho e fui dar de encontro ao mar, o fabuloso jardim da sua morada.

Foi ali, Mãe, que a Senhora me presenteou com o presente dos presentes, a minha própria cabeça. A minha cabeça, tão sua, e me devolvia refeita, renovada ou, melhor dizendo, feita. Feita naquele momento em coral negro, para que eu lembrasse do Caboclo Pedra Preta. Feita negra para que eu lembrasse desse meu reencontro com essas origens africanas. Um coral preto, negro, embreuzado, ebanoide para lembrar o quanto essa cabeça pertence a esse grande pai negro, meu Pai Xangô.

Hoje eu caminho esses caminhos segundo seus desígnios e não me arrependo de nenhum passo dado, exceto por não ter começado antes essa minha jornada e ter me desviado ou parado tantas vezes.

Hoje minha cabeça e meu coração são seus. Da Senhora e de meus Orixás.


Te amo, Mãe Yemanjá.