MAS EU CRESCI
Hoje eu li um texto num site (http://www.brasilpost.com.br/carol-patrocinio/resposta-fernanda-torres_b_9294562.html)
que comentava brilhantemente sobre o
texto da Fernanda Torres numa coluna que me recuso a compartilhar, por fazer
parte de um jornal que me recuso a ler e também porque o conteúdo é
memoravelmente abjeto. Se quiser ler, procura que você acha.
Apesar de brilhante, o texto é em formato “cartinha”, coisa
que está na moda hoje em dia. Eu quase escrevi uma cartinha também, mas eu
acabei achando delicado demais para o meu modo de dizer as verdades, ou as
minhas verdades, as minhas opiniões. Mas a cartinha da Carol me fez refletir
sobre como somos facilmente adestrados a acreditar e a concordar com as “verdades”
da Fernandinha, está atriz tão talentosa, tão inteligente e que, por ser tudo
isso, só pode escrever verdades e cria uma barreira que nos impede de achá-la
uma pessoa escrota, machista, preconceituosa e racista.
Eu parei para refletir no quanto a minha criação numa
família preconceituosa (e inclua na palavra todos os possíveis preconceitos,
como racismo, misoginia, machismo, homofobia e gordofobia) foi aos poucos
constituindo, em minha forma de pensar e agir no mundo, uma robotizada reprodução
desses preconceitos e que foram, aos poucos com estudo, leitura e encontros com
pessoas mentalmente mais esclarecidas, se diluindo.
Ontem mesmo, antes de ler o texto da Fernandinha, eu me
lembrei de quando era criança e ia com minha mãe à Igreja de Santa Terezinha,
na Zona Norte de São Paulo, “caçar” empregadas domésticas. A igreja oferecia um
serviço às dondocas locais, uma espécie de agenciamento de domésticas. No
corredor lateral da igreja, escuro que só, diversas mulheres, em maioria
negras, aguardavam sentadas serem escolhidas pelas patroas, que miravam
aspectos físicos, cheiros e, por último, conversavam com a “escolhida”,
tratando dos salários miseráveis e sem direitos trabalhistas.
Já em casa, a moça era levada ao quartinho, aquele quartinho
úmido em comunicação com a garagem com bastante fumaça de monóxido de carbono,
umidade das paredes, roupas para passar e brinquedos amontoados. Ao lado, um
banheiro espremido, geralmente sem lâmpada, com um Ducha Corona preguiçosa –
ela esquentava somente quando desejava, privada sem tampa, papel higiênico
Primavera e sabonete Gessy. Lá em cima, em nosso banheiro, o chuveiro era
Lorenzetti, o papel era qualquer outro que não fosse Primavera e o sabonete era
Phebo. Se você não viveu nessa época, faça a experiência de limpar sua bunda
com papel Primavera e talvez entenda onde estou querendo chegar.
Ela comia a mesma comida que a nossa, exceto os melhores
doces. Mas tinha sempre que comer depois de nós, não importasse o horário. Não
havia uniforme, porque minha família não tinha esse nível de sofisticação. De
certa forma havia um uniforme: um farrapo da própria pessoa que era usado para
aquela finalidade.
E assim iam e vinham diversas domésticas em nossa casa.
Também cresci ouvindo, entre meus familiares, piadas infames
e pejorativas sobre negros, sobre gays, sobre mulheres. Confesso, como já
confessei outras vezes publicamente, também contei muitas dessas piadas, que reproduzem
e consolidam crenças.
Na faculdade de Medicina, apenas mais do mesmo. Preconceito,
preconceito, preconceito. Filhinhos-de-papai acostumados com a vida boa e
aprendendo com seus mestres a perpetuar a infâmia do desrespeito e da norma
escravagista. Hoje vejo muitos deles por aí, ostentando “suas” babás arrastando
carrinhos de bebês e passeando com seus cachorros pelas ruas dos Jardins. Adoro
animais, mas uma das razões que me levam a não ter um cachorro é pela preguiça
de passear com ele todos os dias e, mais do que isso, ser obrigado a pegar um
troço enorme de cocô de Golden Retriever com um saquinho plástico de
supermercado embrulhando a mão. Se você quer ter filho ou cachorro, por favor,
carregue-os e limpe os cocôs deles.
Hoje, ao compartilhar o texto da Carol, tive minha Timelime
do Facebook invadida por alguns (poucos, ufa!) comentários preconceituosos e
alienados.
Eu nasci e cresci num meio alienado e, por algum tempo, me
tornei um, agi como um. Mas, eu algum momento, eu cresci. Cresci de arrebentar
os formatos, de poder ter empatia com o outro, de poder olhar a mulher, o
homossexual, o transexual, o portador de deficiência, o gordo, o magro demais,
o negro ou o cara de qualquer outra “cor” ou etnia ou origem geográfica como
uma pessoa.
Simplesmente uma pessoa.
Sim, ainda tenho que fazer um esforço para não cair no
funcionamento automático de chamar a mulher que me desagradou de “vadia”, o
sujeito de “filho da puta” ou “corno” ao invés de apontar e desabafar pela
falha na atitude, não pelo aspecto físico ou de julgamento moral daquela
pessoa.
Via de regra, essa mudança não ocorre naturalmente. Claro,
existem aquelas pessoas iluminadas que nascem ou crescem livres desses condicionamentos, provavelmente
porque cresceram cercadas de pessoas que souberam ensinar, com a naturalidade
dos pardais, a sabedoria da aceitação do outro.Mas em geral não é assim. Para
mudar, é preciso ter algum tipo de contato, alguma capacidade de empatia que
pode ser uma semente de mudança. E depois, bastante esforço.
Infelizmente ainda ouço de pessoas com quem convivo diversos
comentários e opiniões bastante preconceituosos. Gente que em geral, consegue
sobreviver dentro do quadradinho do politicamente correto, mas que cospe fogo
preconceituoso quando é submetido a algum tipo de estresse ou frustração
proveniente daquela pessoa “inferior”, de acordo com seu modo infame de vida.
Eu poderia citar vários exemplos de acontecimentos como esse, mas de nada
adiantaria. Pra mim, é como assistir “Que horas ela volta?” e falar coisas lindas
sobre a atuação da Regina Casé e sobre o empoderamento e xingar o “preto-filho-da-puta”
que te fechou no trânsito. Eu prefiro assumir que eu já fiz isso e me esforço
para não fazer mais, não apenas para fazer bonito na foto, mas porque, para
além do costume de ofender, não é realmente o que penso.
E por falar em contar histórias, eu fico, como disse
Gonzaguinha, “com a pureza da resposta das crianças. Tenho duas colegas de
trabalho, uma negra e outra branca, que são amigas. Suas filhas, crianças, são amigas desde o nascimento. Numa festinha
infantil, uma outra criança se aproximou e disse para a criança negra:
“Preto brinca com preto e branco brinca com branco”
A amiguinha branca empurrou essa criança, catou a mão da
negra e bradou:
“Ela é minha amiga!”
Essa historinha diz tudo pra mim. Sobre como educar uma
criança para ser preconceituosa e como, por outro lado, criar um indivíduo que
mantenha em seu coração e na sua vida a pureza da infância, com cores, com
diferenças, mas com equidade. Negar diferenças de cores, formas e desejos não é
o modo correto em minha opinião. Certo mesmo é ensinar, desde cedo, que o mundo
é uma palheta, uma aquarela de diferenças e que todas podem ser belas.
Fernandinha, você perdeu.
0 Comments:
Post a Comment
<< Home