Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Sunday, January 30, 2011

FALTAM APENAS TRÊS CORAÇÕES PARA CHEGAR EM SÃO TOMÉ DAS LETRAS

Dizem que praga de mãe pega. E acho que pega mesmo. Na primeira viagem de férias sozinho em minha vida, no primeiro ano de faculdade, minha mãe abriu o maior barraco. Férias de verão. Eu e minha amiga tínhamos combinado de ir para o litoral de Santa Catarina para acampar. Só consegui dinheiro para ir porque vendi uma coleção “Os Pensadores” que ganhei de meu avô, porque se fosse pelo desejo dos meus pais, ficaria em casa.

Na véspera da viagem, descobrimos que estava chovendo desmedidamente em Santa Catarina e resolvemos mudar de rumo, coisa que só avisei para minha mãe quando já estava na estrada, para não correr o risco de ganhar um novo veto. Lembro que chegamos até a descer na rodoviária do Tietê, levados por ela e, assim que chegamos, fomos para o Terminal Bresser, de onde saíam ônibus para Minas Gerais.

São Tomé das Letras, lá fomos nós. Rústica que só, havia apenas uma linha de ônibus de Três Corações até lá, duas vezes por dia. Ao chegarmos na rodoviária, o último ônibus tinha acabado de sair.

Minha amiga, viajante experiente, disse que seria fácil arrumar carona. Passamos duas horas na saída da cidade, esperando em vão um transporte. Desistimos. Fomos a uma avícola perguntar de alguém que pudesse nos hospedar. Segundo ela, lá em Minas era bem comum as pessoas hospedarem em suas próprias casas.

E lá avistamos o dono da avícola. Jorge, um sujeito simpático de seus vinte e poucos anos. Disse que poderíamos passar a noite na casa dele, fazer um jantar, tomar um banho. Chegando na casa, ele explicou que sua mãe estava internada num hospital, por problemas no coração. Fomos tomando conta da cozinha, fazendo o jantar enquanto tomávamos vinho “San Tomé”. Passado algum tempo, chegou o irmão dele, Carlos, já bêbado. Ficamos lá conversando e, o bebúncio foi logo irritando muito. Na hora de servir o jantar, um minuto de silêncio. Jorge ficou olhando para o prato, com uma feição grave, sem se servir. Minha amiga perguntou:

“O que foi? Não vai comer?”

“É que é a primeira vez que como sem minha mãe estar na mesa e ela sempre fez o meu prato. Não sei o que fazer.”

“Você quer que eu faça seu prato?”

“Se você puder, eu agradeço.”

Coisa esquisita. Faltou uma música daquelas de filmes sinistros. Enquanto jantávamos, Carlos não parava de falar. Prolixo, repetitivo, desagradável. Num dado momento, falando e cuspindo, ele pergunta:

“O que você faria se teu próprio irmão te desse uma facada?”

“Nada, porque você estaria morto”, respondi ingenuamente.

E Jorge, mais grave que no momento do prato, olhou para nós de rabo de olho e respondeu:

“Mas ele não morreu. Eu dei uma facada no Carlos e ele não morreu”.

E a dissociação nos fez pedir pausa para os comerciais. Começamos a lavar a louça, falar de coisas engraçadas, mas o clima tenso já imperava. E logo depois chega André, o terceiro irmão. Mais simpático e menos sinistro, tinha chegado à cidade com uns amigos do exército para prestarem um concurso público.

Mas toda essa simpatia se esvaiu quando Jorge contou a eles que a sobrinha, filha da falecida irmã (assassinada?), tinha fugido com um rapaz da cidade. Então saem todos com a missão de dar uma surra no rapaz e trazer a sobrinha de volta. Saem com pressa, nos deixam trancados na casa e nunca que voltavam. Desistimos de esperar e fomos dormir. Passadas algumas horas, retornam, bêbados, os irmãos e os amigos. Jogam cartas, dão risadas e, num lance infeliz do jogo, começam a brigar. Rapidamente a discussão vira porrada. Os amigos saem da casa, sobrando apenas os irmãos. Eles começam a se bater, socando cabeças na parede, quebrando vasos, estantes, pratos, copos, cadeiras. Gritavam por “sangue” e nosso medo foi crescendo.

Trancados no quarto, começamos a imaginar o crime que ocorreria naquela casa e pensamos que seríamos eliminados após a chacina. Começamos a rezar, rezar e rezar e nada parava aquela pancadaria. Decidimos levantar acampamento. Colocamos as mochilas nas costas e nos preparamos para sair de lá. Abrimos a porta do quarto e lá estavam os três, empilhados, se esfregando em poças de sangue. Saímos correndo e eles nem notaram. Ao sairmos na rua, fomos surpreendidos por uma gangue de vira-latas que começaram a latir para nós. De repente, um deles, com ares de chefe de bando, se aproximou, cheirou nossas roupas e os latidos silenciaram. Descemos a longa rua que dava na rodoviária, acompanhada por essa matilha protetora.

Chegando na rodoviária. Nos demos conta do frio. Estávamos em plena madrugada, numa região serrana, com roupas de verão. Passamos a noite ao relento, dormindo no chão da rodoviária, esperando o ônibus chegar.

Não soubemos de algum crime nas páginas policiais dos jornais. Nem os malucos vieram nos perseguir por termos sido testemunhas de algum crime. Dizem que a fortíssima energia espiritual de São Tomé das Letras faz com que coisas estranhas aconteçam. De fato, mesmo tendo sido uma maravilhosa viagem, tivemos outros vários eventos estranhos. Espiritual ou não, agradeço ter sobrevivido a esse e outros tantos eventos e aprendi que, apesar das pragas, minha mãe tinha razão em não aceitarmos convites de estranhos.

4 Comments:

Blogger flavio shimomura said...

Acho São Tomé com ou sem vinho na cabeça um lugar muito estranho. Fui uma vez, de passagem, e só.

8:55 AM PST  
Blogger Alan said...

Once again, a great story, Fofinho.
I can't think of an author I'd rather read.
Your writing seems so effortless - like it just flows from your pen ready-made to delight and enlighten your fans.

9:35 AM PST  
Blogger Alan said...

This comment has been removed by the author.

9:47 AM PST  
Blogger Unknown said...

1- Flávio: Eu adorei STL. É um lugar muito esquisito, onde coisas esquisitas acontecem. Infelizmente a última vez que eu fui já estava bem deteriorado. Mas gosto da loucura de lá e adoro o santos com peruca na igreja!

2- Alan, thank you again. There it is. It's the way I write. I don't know if its because they are all real or almost real stories or any other thing that I just don't understand. I just can't write "by orders" (por encomenda?). It's just natural. That's why I loved so much Augusten Bourroughs, because it seems he writes just that way. Merci, mon ami.

6:47 AM PST  

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