SOBRE SANDY, A ARENOSA FURACA.
Como não costumo assistir noticiários de TV e com viagem marcada para os Estados Unidos, não dei nem "tchuns" para a chegada da tal Sandy. É lógico que, ao tomar ciência da sua chegada, confesso que fiquei apreensivo pela potencial hecatombe. Cheguei a rezar pela minha segurança e pelas pessoas que pudessem vir a sofrer com a pretensa catástrofe.
Cheguei aqui no sábado; dia normal em Manhattan. Fui a um congresso, saí para jantar fora. Mas no domingo, um mal estar começou a se instalar pela ilha. No supermercado, pessoas desesperadas, fazendo estoques de pão, água e Elma Chips. Nunca vi prateleiras vazias nos supermercados americanos; essa foi a primeira vez. Os noticiários profetizavam o terror, a catástrofe, a balbúrdia, alastrando medo e pavor entre as pessoas. Embora existisse a ameaça de uma catástrofe, já dava para sentir um tom de exagero nos noticiários. Desgraça vende audiência. E aumenta as vendas de pão, água, Elma Chips, lanternas, velas e tapumes.
Sandy resolveu chegar no dia do meu aniversário. Ferrou minha ida ao teatro, meu jantar num restaurante chique, minhas compras. Mas fiquei feliz ao encontrar pato fresco e poder preparar um delicioso confit, chez moi. Ao sair de casa para as compras, senti um medinho aliado à sensação de participar de um daqueles filmes "final dos tempos", tipo "Guerra dos Mundos" ou "O dia D". Uma ventania louca à beira do parque, um céu nublado, um medo estampado na cara das pessoas e um corre-corre de pessoas abarrotadas de sacolas. Pão, água, Elma Chips e batatas. Coisa curiosa ocorreu: os frutos do mar se esgotaram nos supermercados. O que seria isso? Fiquei pensando que seria um tipo de Santa Ceia revisitada, a última ceia antes da Sandy. Eu também fiz isso, de certo modo. Confit de Pato na Slow Cook e Aligot de Inhame com manteiga trufada. Se é pra morrer jovem, que seja com jantar chique à mesa e um bom vinho francês.
No Brasil, graças ao noticiário fantasmagórico das massas e ao Facebook com fotos de uma fantasiosa destruição, pessoas queridas foram ficando preocupadas. Em meio aos votos de feliz aniversário, preces, pedidos de notícias e apreensivos contatos. Tratei de publicar uma "nota de alívio" e escrever para os muito mais chegados palavras tranquilizadoras. Também disse o quanto amava, porque "vai que", não é mesmo?
Fui dormir vendo as árvores chacoalhando bruscamente. Aqui, nesse pedaço longínquo de Manhattan, não faltou luz, dormimos com as janelas abertas, não acordamos soterrados ou alagados. E o melhor de tudo, acordamos. Abraçados. É claro que, se tivesse morrido, seria uma daquelas românticas histórias de fim de filmes: os namorados encontrados mortos, abraçados. Poesia mórbida da declaração de amor póstuma. Ou, num outro ponto de vista, tipo "pentecostal master", os pecadores castigados pelo Senhor dos Exércitos, encontrados no antro do pecado. Céu ou Inferno, Deus ou Diabo, São Pedro ou Lúcifer, fato é que, se tivesse morrido, teria sido como sempre desejei: morrer ao lado do meu amor e ir com ele para onde fosse.
Mas não, não era essa a nossa hora. Eu bem que desconfiava. Porque o que se poderia esperar de um furacão chamado Sandy? Não são apenas os brasileiros que possuem essa referência insossa, da virgem imaculada e tediosa chamada Sandy. Eles têm a Sandy Leah, que aliás batizou a nossa. Sandy, Chelsea, Britney, Lindsay. Tudo igual. "Apenas um ventinho fresco", como disseram no Facebook. Como disse antes da Sandy passar, teria medo de verdade se o furacão se chamasse Laura, Liza, Barbara, Meryl, Cher ou Madonna. Ou, traduzindo para nossa realidade, Bethânia, Ivete, Daiela, verdadeiros furacões baianos. "Eu sou o vento que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma". Isso sim é furacão.
Incrível deparar com a depressão pós-furacão. Comércio fechado. Metrô alagado. As folhas de outono bagunçadas pelas calçadas. Árvores decepadas pela força da ventania. Embora nada tenha acontecido no "aqui dentro" do aconchego do lar, um vendaval deixou suas marcas no cotidiano dos americanos. Dizem que casas caíram, pessoas foram retiradas de seus lares para lugares secos e seguros, carros ficaram boiando pelas ruas e até os escombros do finado World Trade Center ficaram alagados. Por mais caótico que tenha sido e por mais caótico que ainda estejam as coisas, o caos "New York Style" é muito mais organizado que o caos brasileiro.
Tudo o que aconteceu aqui é muito parecido com o que vivemos todos os anos com as nossas enchentes. Todo ano em São Paulo morrem diversas pessoas, bóiam carros, milhares de pessoas ficam sem transporte e outras tantas perdem suas casas. E nada por conta de um furacão. Não temos Katrinas, Irenes, Tsunamis. Temos políticos omissos, temos Martas, Kassabs, Serras e outros tantos que estão mais preocupados em construir viadutos e pontes estaidas do que resolver problemas estruturais tão fundamentais quanto as enhentes e as moradias em situações de risco em encostas e beiras de rios na cidade. Eleição após eleição, alguns "cartões-defecais" da cidade nunca mudam: a Avenida do Estado, as Marginais, a Radial Leste e a Avenida Aricanduva. Lugares por onde jamais passam os gringos e esses tais políticos. Mas também morre gente afogada nos túneis e viadutos da região central da cidade.
E a arenosa e insossa Sandy partiu. Várias pessoas me perguntaram curiosas sobre essa "experiência" que de fato e, graças a Deus, não vivi: passar pelo horror de ver coisas voado, estilhaços de janelas, pedaços de casas voado. Eu nào vi a Sandy passar. Parece que os Deuses me protegem de presenciar desgraças: foi desse mesmo que sobrevivi à explosão de uma turbina do avião em 2004: dormindo placidamente e acordando após o pesadelo ter terminado. Esse meu pai Xangô que detesta a morte não apenas proteje o seu filho dela, mas venda seus olhos e o "anoitece" para não ter que encará-la precocemente.
1 Comments:
Marcelo, morri de rir! Elma Chips foi o máximo! rsrs adorei!
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