Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Thursday, October 18, 2012

CAROS DOUTORES: O FIM DA INOCÊNCIA E A FALÁCIA DE ABADIÂNIA


Hoje é dia do Médico. Apesar da inspiração ter chegado cedo ao ter deparado com homenagens, felicitações e chocolates, só consegui parar agora para escrever e postar,  justamente porque passei o "meu"  dia fazendo o que faço quase todos os dias: trabalhando, atendendo gente.

Eu tenho orgulho de ser médico. Eu me sinto feliz ao poder ajudar tanta gente a recuperar o gosto pela vida. E sinto uma frustração enorme ante a impossibilidade de realizar meus feitos "mágicos", como aquele mágico que não encontra o coelho ao enfiar a mão na cartola. 

Paradoxalmente, tenho sentido vergonha por pertencer à classe médica. E isso acontece toda vez que me  deparo com a falta de ética, com a desonestidade e o desrespeito à pessoa humana praticados por inúmeros médicos. Só nessa semana, ouvi umas três histórias de médicos que deveriam ter seus diplomas cassados. Mas isso é apenas um sonho suplantando um pesadelo. 

Eu não me lembro exatamente quando decidi ser médico. Mas eu me lembro do exato momento em que ouvi meu pai falando que se eu fizesse Medicina, conseguiria me livrar do exército que, segundo ele, era algo terrível. Filho de um pai tirano e rejeitador que nunca conseguiu entrar numa faculdade de Medicina e que não conseguiu fazer faculdade alguma, vi automaticamente - e imerso num mar de inconsciência- a possibilidade de ser amado e "orgulhado" por ele ao me tornar médico. E não adiantou nada. 

Passei toda a infância sendo louvado por escolher a Medicina e ganhando malinhas de médico de brinquedo. Às vezes era chamado de doutor até. Mas eu realmente preferia brincar de Playmobil. 

E então eu me lembro de me perguntar todos os dias, na faculdade: "O que estou fazendo aqui?". Era o fim da inocência. Uma morte que as malinhas de plástico azuis do "Pequeno Médico" não podiam salvar. A vontade de fugir associada à impossilidade de fugir me oprimiram tanto que acabei sendo arrastado pelo mar da depressão. O bom disso foi ter sido levado pela depressào à terapia e, por ela, levado à descoberta da Psiquiatria, que me trouxe ao que sou hoje: um homem feliz,por ser, entre outras coisas, um psiquiatra. Assim, tenho gratidão pela depressão, por ter sido ela, através do seu túnel sombrio, o caminho para a minha realização. 

Mesmo ajudando muita gente, tem um outro montão de pessoas que não conseguimos ajudar. A Medicina, e muito mais, a Psiquiatria, são ciências inexatas. E falhas.  E são nessas falhas, nesses buracos, é que muitas vezes entra a busca por outros tipos de caminhos em busca de curas. No vácuo da cronicidade e da intratabilidade de muitas doenças, muitas pessoas correm o mundo atrás de tratamentos alternativos, como o tal João de Deus de Abadiânia. 

Faz pouco tempo que ouvi falar de João de Deus, num curso de Antropologia. Fiquei interessado, mais por curiosidade do que por fé, em conhecer os feitos do tal médium. Confesso que já fui desconfiado. Cirurgias espirituais "invasivas" me fazem lembrar aqueles médiuns embusteiros que recebiam o famigerado "Dr. Fritz". Médiuns que enriqueceram através da boa fé das pessoas e que foram "levados" por acidentes fatais em seus carros de luxo ou por assassinatos. Mas resolvi dar um voto de confiança, já que até a Oprah esteve lá. 

Infelizmente, João de Deus cumpre a "tradição" dos outros médiuns operadores do passado: a pilantragem. Eu não o conheci, mas a falácia se denuncia ao deparar com os produtos à venda na livraria, como os cristais caríssimos e a água "fluida", tudo já abençoado previamente pelos espíritos, segundo as plaquinhas, ou a passiflora que é vendida para todos os que passam pelo templo. Todo mundo tem que tomar passiflora e pagar 50 reais por ela. Como me perguntou um amigo, "Você paga 50 reais por comprimidos de maracujá?". E não é só isso: quem passa por lá tem que voltar em 8 a 48 dias para uma "revisão" e tomar mais maracujá. Fiquei calculando quanto se arrecada por dia: levando em conta apenas a passiflora, a média de mil pessoas que visita o templo deixa lá, no mínimo, cinquenta mil reais. 

João de Deus não fez um juramento hipocrático.  Mas é muito mais respeitado do que muitos médicos que conheço. Eu tenho pena das pessoas que vão até lá em busca da cura para seus males, os males de seus filhos ou de outros entes amados. Mesmo que ele não seja de Deus, acredito que possam haver algumas curas, não por suas açōes, nem pelos cristais, nem pela passiflora e muito menos pelas tais águas fluidas acondicionadas em garrafas plásticas que nunca foram abertas. Entretanto, não acredito que as curas vieram pelas mãos do João; elas vieram pela própria fé dos doentes, ou pelo desejo de obter a cura. A peregrinação, a caminhada, a Via Crucis, a jornada. Talvez seja o caminho, a busca, a procura, muito mais que o encontro, os elementos para a realização da cura. 

Vale lembrar que eu não fui atrás do João de Deus com o intuito de difamar ou contrapor com uma pretensa supremacia da minha religião. Até porque, infelizmente, as religiões afro-brasileiras são repletas de gente pilantra, embusteiros e de má fé. Eu respeito todas as religiões. Meu desrespeito se inaugura quando a religião vira banco, empresa, indústria. 

Dessa jornada, o que mais gostei foi o percurso. Foi poder conversar com um grande amigo pelo caminho; foi poder dar boas risadas com ele ao ouvir um monte de coisa estapafúrdia falada pelos preletores do templo e poder decidir que não ia seguir o pós-operatório, que incluía, além da passiflora, abstinência alcóoolica e sexual, proibição de comer ovo de galinha caipira e a estranha e recente liberação de carne de porco que, segundo eles, é um animal sagrado. Eu também gostei do nome da cidade: Abadiânia. Tem charme bucólico nele. No nome, não na cidade, que é de uma pobreza só.

Minha "cura" foi encontrada num despretensioso passeio a Goiânia para visitar uns amigos; nas boas risadas regadas a cerveja, piscina e comidas locais, como a "panelinha", o pequi, e o empadão goiano. 

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