QUEM MANDOU FALAREM ALTO AS VOZES DO CORAÇÃO?

Detesto partir nas voltas. Detesto ter que deixar alguém sem mim, para trás, mesmo que por curtos momentos. Também detesto as partidas de outrém. Só amo as partidas e as chegadas rumo aos encontros. Porque os desencontros partem demais meu coração. O dia da partida é um dia tenso: mal humor, irritação; parece que o mundo vai acabar. Infelizmente (e digo isso só nessa hora) ele não acaba naquele exato momento. Nenhuma das estratégias de enfrentamento habituais acalmam minha angústia dessa vez: leitura, jogos eletrônicos, escrever, comprar. Só me acalentam as mensagens trocadas com juras de amor e votos de saudades, mas ainda assim não foi suficiente. E num "zap" pela sala de embarque, paro para escutar um pouco das conversas das outras pessoas, um fenômeno da física que fazia ecoar as vozes das pessoas sentadas nos cantos. Dava para ouvir tudo, em claro e bom tom. E esse zum-zum-zum de conversas não-minhas foi capaz de deslocar meu descontentamento momentaneamente.
O primeiro foi um cara bem chato. Daqueles chatos que a gente percebe o quanto são chatos só pelo modo de vestir. Embarcando num avião de "classe pau-de-arara"(leia-se: econômica), lá estava ele, todo engomadinho, de camisa azul-calcinha, mangas abotoadas, colarinho impecável, blusa de gola V de Mauricinho típico. Deve ter estudado no Dante. Enquanto sua mulher fazia compras no Duty Free - talvez fugindo dele - ele falava mal dela para uma desconhecida senhora que fazia cara de paisagem. "Minha mulher fica sempre do lado da família dela, ela não apoia meus pontos de vista", disse ele. Imaginei-me no lugar da velhinha, dizendo: "Se eu fosse ela, também não apoiaria. Onde você pegou o seu diploma de chatice?". Antes que minha irritação aumentasse, tratei de mudar o foco.
Ao meu lado, uma moça-menina, falando ao telefone. E ela diz para sua mãe: "Estou precisando tanto de você. Quantas saudades, nem acredito que vou te beijar", sentada na sala de embarque do Kennedy, esperando o Delta 121. Mala vermelha apoiando seus skinny jeans e uma sapatilha Crocs cor-de-rosa. Travesseiro de plushing em torno do pescoço. O cabelo duro esticando a touca, com seus grampos pretos destacando-se dos macarrões duros, a cara furada das acnes. Estrelinhas tatuadas no pescoço, daquelas que as pessoas cafonas têm. "Mãe, eu acho que vou fazer um suco para levar lá para o "Ciará". Tô querendo levar um aparelho de pressão para o Ciará, para tirar a pressão das pessoas. Queria também levar um aparelho de glicose, mas a grana tá curta. A senhora acha que eu tiro a touca no avião ou quando eu chegar? Ah, tá. A senhora quer me ver bonita, né? Um beijo, mãe, eu te amo."
Como diria Madonna, "Who's that girl?" Quem é essa garota com o cabelo duro esticado, blusa de lã azulona e sapatos rosa. Voz de princesa. Jeito de borralheira. Ela fala de um pastor. “O pastor já chegou lá no Ciará; eles vão vacinar as crianças”. Ela tem uma cafonice, mas tem um charme. Suas acnes contam trinta e tantos, mas ela diz que tem apenas vinte e oito. Coisa esquisita isso das acnes que enganam a idade. Liga pra outra pessoa, deve ser a sobrinha. Diz que ama todo mundo. Uma excelente personagem para o "Chegadas e Partidas" das Astrid. Chama a sobrinha de "fia", diz que quer dormir com o pai; que vai fazer uma música com ela. Chama a irmã de "piriquito". "Meu cabelo tá lindo, eu tô de touca, tá liso. Jéssica, deixa seu cabelo crescer, porque seu vô é pastor da Assembléia e sua tia é missionária! Eu tô deixando o cabelo crescer, sem nada nele. Tipo “curly”. Eu conheci o Thales Roberto aqui em Nova Iorque, mas não fui no show porque estava sem dinheiro. Sabe quem é? É aquele que canta "Pai, estou voltando pra casa, lá-lá-lá-lá….".
Engraçado uma pessoa vestindo calças jeans, pulseiras, brincos, tatuagem de estrelinha no pescoço ser missionária da Assembléia. Convertida, de certo. Na senda dos neopentecostais, cabe qualquer coisa. Mas, como disse meu amigo, esse é um troféu de milhões para uma igreja dessas. Ex-pecadores agora convertidos, longe das influências de Satanás (bom sexo, bom vinho, boa comida e roupas legais). E ela quer comprar um pandeiro! Pandeiro não é música profana? Tudo que é profano vira divino com o toque de Jesus. Oh, Jesus Lord, feel my pain and my faith. E então ela conta que a Josélia, uma outra irmã, comprou uma camisa da "Liz Carboni". "Uma blusa simples, dessas de usar em casa, mas a "Liz Carboni" é uma marca super chique e duas bolsas de Jerusalém toda de missangas, tudo escrito em "jerusalém" nela. Eu queria pra mim, mas a Josélia sentiu que Deus falou pra dar a blusa pra tia Clemilda. E as bolsas é uma pra mim e outra pra senhora, mãe". A mãe diz que não vai dar a bolsa pra tia. Ela diz: "Coisa feia, mãe, isso não é coisa de crente!".
E daí ela volta a falar com a Jéssica. Quer ir rezar no Monte. Um Monte lá na Zona Norte, tipo no cu do Judas, onde as pessoas vão rezar. Lá, os flanelinhas-de-Deus chamam todos de irmãos. Lá, no Monte, que não é das Oliveiras, os crentes que não podem ir a Jerusalém se voltam para Deus, comendo hot-dog de Jesus. Deve ser uma grande experiência divina.
"Não conta pra ninguém que eu tô levando um anel lindo para dar pra ela. Tá dentro da caixinha!" O anel é para a Jéssica ou para a mãe dela? Não consegui entender. Quase perguntei pra ela.
E então ela parte para comprar mais chocolates. E, ao passo que ela se cala, aumenta-se o volume do cara chato. Ele também fala de mitologia, algo sobre o Prometeu, mas eu não pesquei. Acho que ele falava do filme que estava passando no avião. E, na melhor maneira de se conversar com os chatos, a velhinha assentia com a cabeça.
Um casal de espanhóis abafa a fala do chato com sua língua inconfundível. "Quieres? Lo que quieres? Lo que deseas? Nada. Nadie." Aquela língua meio presa dos espanhóis sempre me faz lembrar o Victor Valentim, da novela "Ti-ti-ti". Lembro sempre dele seduzindo as mulheres todas na novela. Acho que falar espanhol "espanhólico" fica muito mais charmoso ao falar de sexo, erotismo, conquistas. Não deveria ser usado para falar de problemas e coisas do cotidiano. Para isso deveria ser usado o catalão.
Ao meu lado, uma moça-menina, falando ao telefone. E ela diz para sua mãe: "Estou precisando tanto de você. Quantas saudades, nem acredito que vou te beijar", sentada na sala de embarque do Kennedy, esperando o Delta 121. Mala vermelha apoiando seus skinny jeans e uma sapatilha Crocs cor-de-rosa. Travesseiro de plushing em torno do pescoço. O cabelo duro esticando a touca, com seus grampos pretos destacando-se dos macarrões duros, a cara furada das acnes. Estrelinhas tatuadas no pescoço, daquelas que as pessoas cafonas têm. "Mãe, eu acho que vou fazer um suco para levar lá para o "Ciará". Tô querendo levar um aparelho de pressão para o Ciará, para tirar a pressão das pessoas. Queria também levar um aparelho de glicose, mas a grana tá curta. A senhora acha que eu tiro a touca no avião ou quando eu chegar? Ah, tá. A senhora quer me ver bonita, né? Um beijo, mãe, eu te amo."
Como diria Madonna, "Who's that girl?" Quem é essa garota com o cabelo duro esticado, blusa de lã azulona e sapatos rosa. Voz de princesa. Jeito de borralheira. Ela fala de um pastor. “O pastor já chegou lá no Ciará; eles vão vacinar as crianças”. Ela tem uma cafonice, mas tem um charme. Suas acnes contam trinta e tantos, mas ela diz que tem apenas vinte e oito. Coisa esquisita isso das acnes que enganam a idade. Liga pra outra pessoa, deve ser a sobrinha. Diz que ama todo mundo. Uma excelente personagem para o "Chegadas e Partidas" das Astrid. Chama a sobrinha de "fia", diz que quer dormir com o pai; que vai fazer uma música com ela. Chama a irmã de "piriquito". "Meu cabelo tá lindo, eu tô de touca, tá liso. Jéssica, deixa seu cabelo crescer, porque seu vô é pastor da Assembléia e sua tia é missionária! Eu tô deixando o cabelo crescer, sem nada nele. Tipo “curly”. Eu conheci o Thales Roberto aqui em Nova Iorque, mas não fui no show porque estava sem dinheiro. Sabe quem é? É aquele que canta "Pai, estou voltando pra casa, lá-lá-lá-lá….".
Engraçado uma pessoa vestindo calças jeans, pulseiras, brincos, tatuagem de estrelinha no pescoço ser missionária da Assembléia. Convertida, de certo. Na senda dos neopentecostais, cabe qualquer coisa. Mas, como disse meu amigo, esse é um troféu de milhões para uma igreja dessas. Ex-pecadores agora convertidos, longe das influências de Satanás (bom sexo, bom vinho, boa comida e roupas legais). E ela quer comprar um pandeiro! Pandeiro não é música profana? Tudo que é profano vira divino com o toque de Jesus. Oh, Jesus Lord, feel my pain and my faith. E então ela conta que a Josélia, uma outra irmã, comprou uma camisa da "Liz Carboni". "Uma blusa simples, dessas de usar em casa, mas a "Liz Carboni" é uma marca super chique e duas bolsas de Jerusalém toda de missangas, tudo escrito em "jerusalém" nela. Eu queria pra mim, mas a Josélia sentiu que Deus falou pra dar a blusa pra tia Clemilda. E as bolsas é uma pra mim e outra pra senhora, mãe". A mãe diz que não vai dar a bolsa pra tia. Ela diz: "Coisa feia, mãe, isso não é coisa de crente!".
E daí ela volta a falar com a Jéssica. Quer ir rezar no Monte. Um Monte lá na Zona Norte, tipo no cu do Judas, onde as pessoas vão rezar. Lá, os flanelinhas-de-Deus chamam todos de irmãos. Lá, no Monte, que não é das Oliveiras, os crentes que não podem ir a Jerusalém se voltam para Deus, comendo hot-dog de Jesus. Deve ser uma grande experiência divina.
"Não conta pra ninguém que eu tô levando um anel lindo para dar pra ela. Tá dentro da caixinha!" O anel é para a Jéssica ou para a mãe dela? Não consegui entender. Quase perguntei pra ela.
E então ela parte para comprar mais chocolates. E, ao passo que ela se cala, aumenta-se o volume do cara chato. Ele também fala de mitologia, algo sobre o Prometeu, mas eu não pesquei. Acho que ele falava do filme que estava passando no avião. E, na melhor maneira de se conversar com os chatos, a velhinha assentia com a cabeça.
Um casal de espanhóis abafa a fala do chato com sua língua inconfundível. "Quieres? Lo que quieres? Lo que deseas? Nada. Nadie." Aquela língua meio presa dos espanhóis sempre me faz lembrar o Victor Valentim, da novela "Ti-ti-ti". Lembro sempre dele seduzindo as mulheres todas na novela. Acho que falar espanhol "espanhólico" fica muito mais charmoso ao falar de sexo, erotismo, conquistas. Não deveria ser usado para falar de problemas e coisas do cotidiano. Para isso deveria ser usado o catalão.
E tudo isso me fez ficar risonho. Fez com que eu me esquecesse um pouco de como são tristes essas partidas. É como ter que ir embora de um maravilhoso restaurante ou ver o final de uma festa. Ou, como já vivi por tantas vezes na infância, ter que deixar a festa antes de comer o bolo e de ganhar as supresinhas. E mesmo nas pequenas incongruências que compunham a existência daquela moça ao telefone, pude notar o quanto era importante e forte a energia de amor que circulava naquele momento em que ela falava com as pessoas de sua família. Saudade, a palavra que os brasileiros tanto se orgulham de ser tão única na língua portuguesa, como disse uma vez a escritora Adélia Prado, é a ponte que faz circular o amor entre as pessoas. Sentir saudades é manter um fluxo de amor; é um jeito de manter o amor vivo. Só sentimos saudades daquilo que amamos; se não sentimos, não amamos mais; se não amamos mais, não sentimos.
0 Comments:
Post a Comment
<< Home