Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Sunday, July 27, 2008

AS MARCAS DA VIDA ESTÃO INDO EMBORA


Há algo que me incomoda faz algum tempo: tenho observado o tamanho e a quantidade exagerados de tatuagens no corpo das pessoas. Antes, o que era símbolo dos marinheiros enfezados,dos maus elementos, dos meliantes e de todo tipo de barbárie, hoje virou uma vestimenta. Sim, toda uma roupa.

Não faz muito tempo, os roqueiros, os motoqueiros e todos os tipos de outsiders utilizavam-se das tatuagens como uma marca da sua revolta, da sua independência. Daí vieram os surfistas, os skatistas, os maconheiros. Uma rebeldia menos violenta, quiçá adolescente. Não mais uma revolta contra o macrossistema, mas contra o microssistema do lar, contestando o poder dos pais.

Creio que devem ter sido as namoradas dos surfistas, mesmo sem sê-los, que transmutaram a tatuagem para o mundo da fashion week. Sim, o que era out continuou sendo out, mas de outsider passou a outfit. E então as patricinhas, os mauricinhos, as camilinhas, os eduardos de todos os credos e cores, dos grandes e dos pequenos dinheiros, todo um enovelamento de tribos, juvenis ou não, aderiram à tatuagem como um artefato da moda. Diferem gostos e credos, facções, mais cores, menos cores. Mudam também os lugares onde se faz uma tatuagem, que variam dos points da crista da onda às sarjetas da Avenida São João, onde garotos de periferia, junkies, bandidos e putas partilham, além do gosto de tatuar-se, as hepatites e as “sidinhas” da vida.

Até os balzacões entraram nessa. Eu mesmo entrei nessa. Depois de libertar-me dos grilhões que me forjavam, levei tempo para tomar coragem e decidi, há idos poucos anos, imprimir meu garboso escorpião no braço da mão com a qual escrevo. Tenho um amigo que, após um longo e sonolento casamento de trinta anos, conseguiu conceder-se a alforria e, para comemorar, tatuou a palavra liberdade em japonês. Aliás, eu nunca consegui entender porque é tão cool tatuar coisas em japonês, ou sânscrito, ou chinês, mas assim caminham as tatuagens.

De uns tempos pra cá, a moda passou a ser tatuar nomes. Hoje mesmo, estava andando pela rua e vi caminhar um “demodé”, com um “Ângela” no antebraço. Quem será Ângela? A filha? A namorada? A esposa? A mãe? Tomara que seja a Ângela das Ângelas perenes, porque as provisórias partem e a
tatuagem fica. E quando a Ângela parte, o que entra no lugar? A menos que se tenha a sorte de namorar uma Mariângela, ou uma Rosângela, ela corre o risco de virar um borrão, ou melhor, uma gigante tatuagem, geralmente no estilo “tribal”, retangular, toda preenchida de tinta, para encobrir os erros de outrora.

Depois dos nomes, as pessoas passaram a escrever frases inteiras e, mais que isso, paisagens paradisíacas gigantescas que contam histórias de muitas vidas vividas. Vez ou outra assisto a um reality show de tatuagens, chamado Miami Ink. Nele, quatro tatuadores pirados recebem pirados fazendo tatuagens. Anjos e fotos dos pais que morreram, santas e santos e cruzes e arco-íris que contam a história de redenção e encontro com Deus e com a benevolência após anos de perdição em drogas e cadeias.

Sem falar nos homens-abajur. Eu não sei se isso é realmente verdade ou apenas uma lenda urbana, mas dizem que algumas pessoas tatuam o corpo inteiro e vendem a pele quando morrem para que os japoneses façam abajures com ela. Tem um cara que mora perto da minha casa e é todo tatuado, até na cabeça, à exceção das pálpebras. Como será que eles fazem? Será que recebem um adiantamento? Pois qual seria a vantagem de passar a vida inteira sabendo que vai virar enfeite sem receber um tostão nisso? Mas do jeito que a coisa anda, com todo mundo se tatuando de modo tão exagerado, o mercado dos homens-abajur vai entrar em decadência, porque qualquer garoto de 15 anos poderá virar um abajur. E com certeza aqueles tatuados feinhos, lá da Avenida São João, virarão luminárias nas horrendas lojinhas da 25 de Março.

E quando vejo as pessoas “hipertatuadas”, em braços, pernas, barrigas, com múltiplas imagens desconexas emendadas, contando pedaços de histórias, penso que é como se misturássemos páginas rasgadas de vários livros e as lêssemos como se fossem um conjunto. Triste imagem. Essa é uma das formas de apagar as marcas da vida. Sobrepondo outras, como camadas de areia que encobrem um paisagem, solidificando ali e formando uma rocha, apagando as inscrições que lá havia. Como as pegadas e os castelos de areia que são apagados pela própria areia. Essas marcas, outrora tão importantes e simbólicas na história do mundo, se perdem num mosaico de imagens formado pela sobreposição de outras tantas.

Já faz algum tempo, prestei um concurso público. Desses radicais, que não aceitam pessoas com tatuagens. O examinador perguntou: “Você tem uma tatuagem, não é? E não incomoda ter uma marca estranha em seu corpo?” Eu respondi: “Não, eu sempre tive vontade de fazer uma, demorei pra decidir e quando decidi não havia porque me arrepender”. E ele retrucou: “Ah…mas isso deve ter sido há muitos anos…” E, para seu espanto, eu disse: “Não, fazem apenas 6 meses”. E ele quase caiu da cadeira.

Mas o tempo das marcas definitivas já se foi. Agora podemos fazer as marcas, como as tatuagens, contar histórias com elas e depois, cansados das histórias, remove-las. Sim, é possível remover tatuagens.

E com isso a tatuagem realmente se configura uma vestimenta. Dura de colocar, dura de tirar, como roupas de mergulho, mas com uma forcinha, saem, sem deixar marcas ou marcas que não são mais imagens. Marcas que não deixam marcas.

E, falando de marcas, temos o novo apagador das marcas do tempo. O Botox. Sim, o potente e implacável removedor das rugas, dos pés-de-galinha, das linhas de expressão. É claro que não podemos ser contrários ao desejo da humanidade de preservar a beleza e a juventude e até conheço algumas pessoas que fazem ligeiras, discretas e temporárias aplicações de Botox. Mas já ouvi alguém dizer, se não me engano uma atriz brasileira, que não desejava fazer aplicações do produto e nem cirurgias plásticas, porque aquelas rugas, de um certo modo, contavam a história de uma vida. E eu concordo em parte com ela.

Como as tatuagens, a coisa da busca insana pela juventude vem se agravando. Porque as mulheres, sim, principalmente elas, têm usado esse produto com tanto exagero que, destruindo as marcas do tempo, constroem estradas tortuosas e deformadas em seus rostos. É como quando somos crianças e, ao começarmos a escrever com a caneta nos cadernos da escola, escrevemos algo errado e apagamos com borracha molhada com cuspe. É como consertar um buraco no asfalto tampando-o com cacos de vidro.

E é desses modos, e através de outros tantos, que as marcas da vida vão desaparecendo. Não que não possamos ocultar algumas delas. É certo que, em muitos casos, queremos, precisamos e podemos fazer com que algumas coisas em nós, em nosso caminho, em nosso corpo, tomem “chá de sumiço”. Mas devemos parar para pensar no preço que pagamos ao ocultar todos os sinais de uma existência.

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