TELEINVASÃO

Lembro do dia em que o primeiro telefone chegou em minha casa. Tinha cinco anos. Maio de 1979. Ele já estava pago há anos, mas nunca que chegava. Minha mãe já tinha comprado até aquela mesinha ridícula de telefone, com lugar pra sentar com assento de veludo verde, um “buraco” pra colocar listas telefônicas e uma porta-canetas. Antes disso, tínhamos que ir a um orelhão na esquina da rua de casa, com sol ou com chuva, com frio ou calor. Se nos atrasássemos a um compromisso, se houvesse um imprevisto, se mudássemos de idéia, ninguém tinha como saber. Isso porque, além de não existirem celulares e nem todo mundo ter telefone, havia lugares em que não havia orelhões, ou que os orelhões estavam quebrados. Mas acho que ninguém chegava a morrer de preocupação.
Passados alguns anos, todo mundo tinha telefone e depois surgiram os celulares e hoje é possível achar e ser achado em praticamente todos os lugares do mundo. Os celulares têm GPS. É possível achar o seu celular roubado e apagar suas informações a partir da tela do seu computador. Enfim, hoje somos dependentes das tecnologias da comunicação e, como toda dependência, começa dando prazer e depois acaba sempre em desgosto.
Com a popularização do telefone e com o barateamento dos custos das ligações às custas da fibra ótica, fomos invadidos pelas centrais de telemarketing, oferecendo produtos, serviços, promoções, liquidações, brindes, trotes, golpes. Até o PCC tem sua central, extorquindo dinheiro e créditos de celular através de ameaças de seqüestro e assassinato.
Mas à medida que o tempo vai passando, as empresas de vão mudando suas táticas de abordagem. Hoje, a “bola da vez” é ligar de telefones móveis ao invés de centrais telefônicas com números padrão, para “engabelar” o freguês. Ao atender a ligação, o atendente vem com um tom informal, como se fosse seu amigo, sem revelar inicialmente a empresa a que pertence. “Bom dia, Marcelo, você vai bem?”. Caí várias vezes nesse truque, porque sempre achava que era um paciente novo ou alguém de algum lugar que trabalho. Meia dúzia de ligações como essa, já sabia que podia bater o telefone na cara do sujeito.
Os bancos e os cartões de crédito também aderiram ao sistema. Atrevo-me a dizer que eles se tornaram grandes centrais de telemarketing. Ligam oferecendo serviços, empréstimos, seguros, previdências. E também fazendo cobranças.
Um caso interessante que ocorreu comigo foi o dos Cartões American Express. Há vários anos sou associado deles, sempre gostei da forma que eles se apresentam. Sempre achei sofisticado, polido, chique mesmo. Há uns dois anos atrás, uma atendente (digo: uma consultora.... é como os ex-atendentes, os ex-operadores são chamados agora.....podem ser chamados de analistas também!) ligou pra mim, oferecendo um novo cartão, chamado American Express Green, alegando ser um cartão exclusivo, diferenciado, com várias vantagens sobre o outro cartão regular. Tanto ela insistiu que resolvi aceitar. De fato ela tinha razão. É realmente exclusivo. Basta atrasar alguns dias o pagamento, liga a Jezebel (é o nome que darei agora às consultoras...), com aquele blá-blá-blá pseudo-simpático, para depois dizer: “O motivo da minha ligação é para averiguar o motivo da falta de pagamento da sua fatura vencida em....”. Como se não bastasse, ela continua: “Porque o senhor corre o risco de ter seu cartão cancelado e os serviços de proteção ao crédito acionados...” E ela finaliza: “Quero saber se o senhor VAI ESTAR FAZENDO o pagamento hoje” E quando digo que não, ela completa: “Então o senhor VAI ESTAR AGENDANDO pra quando?”. Isso é o que se pode chamar de INVASÃO DUPLA, porque não bastasse o telemarketing, sou obrigado a engoli-lo com gerundismos.
Outro dia me ligaram do BANCO REAL. Fiz uma viagem recente e, no aeroporto, tentei fazer um depósito em minha conta no caixa do SANTANDER, porque que agora eles fazem parte da MESMA BOSTA. Sendo assim, não consegui depositar, porque esse INCRÍVEL caixa eletrônico não conseguia fazer a leitura do meu cartão. Isso fez com que minha conta ficasse “vermelha”. Cheguei segunda-feira, faço os depósitos logo cedo. Problema resolvido. Na quinta-feira pela manhã, Jezebel liga pra mim dizendo que constava uma quantia em aberto,etc,etc,etc, fazendo as mesmas ameaças do AMEX GREEN (Será que eles são sócios? Ou será que a empresa de cobrança é a mesma? ).
Concluída a etapa das ameaças, Jezebel pergunta: “Posso saber o que aconteceu para o senhor deixar a conta ficar negativa? O senhor teve algum problema ou....” E nem deixei Jezebel responder. Disse: “Isso não é da conta de vocês”. Ela explicou que só estava querendo ajudar, mas percebeu que não poderia quando eu perguntei a ela se ela me ajudaria pagando os juros, me emprestando dinheiro ou depositando dinheiro na minha conta.
Mas não acaba por aí. Existem outros segmentos de mercado que aderiram à moda da tele-invasão. As redes de hotéis e empresas que vendem produtos de hotéis e restaurantes também empregam as últimas técnicas invasivas de invasão de privacidade. Há alguns anos, uma empresa chamada GOURMET&TRAVEL “pegou emprestado” o meu cadastro no Hotel Hilton e, um certo dia, liga uma “gerente de serviços” (A-há! Pensou que não tinha nenhum nome novo?), cheia de confiança e intimidade, me chamando de “Má” e ofereceu serviços de vouchers de hotéis, descontos em restaurantes e serviços. Uma bosta! Cada restaurante que eu ia, uma chateação com o uso do tal do cartão.
Passado algum tempo, a mesma inadequada liga pra mim, agora trabalhando para outra empresa, a rede de hotéis PESTANA. Acho que ela também “pegou emprestado” o meu cadastro e oferece serviços de descontos do hotel. Estava a decidido a não entrar mais nessa roubada, mas de tanto que ela insistiu, e com tantos brindes que ofereceu, acabei aceitando. Confesso que até gostei dos serviços que usei. Mas como esse texto não é sobre os serviços, e sim sobre a forma de oferecê-los, não vou entrar em detalhes. Após um ano, a Gerente Jezebel liga pra mim, simpaticíssima, dizendo que eu deixei vencer alguns vouchers, e que ela iria fazer a gentileza de renová-los para que eu pudesse usar e iria mandá-los pelo correio. Fiquei agradecido, mas logo após enraivecido, quando ela pergunta: “O seu cartão de crédito pra fazer o débito é o de número tal...?”. Surpreso, perguntei qual o motivo da pergunta e ela responde que era pra fazer a renovação da anuidade. Sim, porque para que ela me desse o “presente” de revalidar os vouchers vencidos, era preciso que eu renovasse a minha anuidade. Fiquei possesso. Senti que estava sento tomado por idiota e disse isso a ela. Pedi que não me ligasse nunca mais. É claro que isso não adianta. Passados uns quinze dias, uma nova “gerente” me liga com a mesma lorota, fazendo-se de desentendida.
Embora pareça, não estou criticando os atendentes de telemarketing. Eles também são vítimas de um sistema perverso, porque são obrigados a invadir as nossas vidas via telefone. Entretanto, porque é que não procuram outro tipo de trabalho? Vender panos de prato, fazer curso de manicure, sei lá! O que realmente me incomoda é a invasão diária em nossas vidas, tomando nosso tempo, causando irritação, violentando nossa liberdade.