A MENINA BARRÔCA

Muitos de vocês, quando me refiro à menina barroca, devem imaginar uma menina lindinha, com bochechas rosadas, cachinhos dourados e grandes arregalados olhos azuis. Em parte vocês têm toda razão; porque Celina, cuja história eu lhes contarei, já foi assim um dia. Hoje tem 32 anos. Emagreceu, não usa mais cachinhos e se rendeu à escova definitiva. Suas bochechas praticamente desapareceram. E substitui as maçãs do rosto por melões. De silicone. Mas a razão verdadeira pela qual dei-lhe esse nome não se deve exatamente aos seus atributos físicos da infância.
Vejam vocês. Voltemos trinta e dois, quase trinta e três anos no tempo. E lá Esther, grávida de Celina. Esther teve uma vida muito requintada. Estudou no Liceu Pasteur, fez faculdade de Sociologia na Sorbonne, freqüentou os melhores lugares da Sociedade Paulistana. E foi nessas altas rodas que conheceu Adolfo, com quem se casou. No momento em que soube que estava grávida, decidiu abandonar tudo que não fosse cuidar do seu casamento, de sua casa e dos preparativos para a chegada de Celina. Queria que Celina recebesse a mesma atenção que recebeu de sua mãe. Queria que Celina se sentisse privilegiada por ter uma mãe como aquela. Mas algo estranho começou a ocorrer.
Esther supervisionava a chegada dos móveis do quarto do bebê, quando um dos carregadores deixou o berço branco de laca bater na parede toda decorada com papéis de parede de balões coloridos. Embora não tivesse sido uma grande pancada, o impacto abriu um buraco na parede, deixando cair uma lasca de massa pintada. Ele se desculpou, prometeu que ia reparar o erro. Mas, estranhamente, Esther não ouvia o que ele dizia. Olhava apenas a parede.
O buraco deixava ver um enorme pedaço de tijolo antigo como era antiga aquela casa. Uma cor de terra, meio úmida. Lembrava feijão, chocolate, capuccino...
Esther se percebeu salivando, pensando em comer um teço daquela parede. De súbito seu superego lhe pregou uma peça. Naquele devaneio, enquanto se via mastigando saborosamente o tijolo úmido, aparece Madame Dominique, sua professora de francês, que de francesa só tinha o nome e o idioma, porque tinha uma alma nazista. E lá estava ela, batendo com a palmatória de madeira na boca de Esther, fazendo voar longe o tijolo.
Saiu correndo do quarto e foi ao banheiro. Olhou no espelho e se estranhou. "O que está acontecendo comigo? Deixa disso Esther... Se você fosse aquelas faveladas cheias de vermes, como aprendeu na aula de Estudos Sociais...". Indignada com seu momento delirante, recobrou o juízo e decidiu botar um fim nessa história. "Preciso consertar essa parede!". Chegando ao quarto do bebê, avistou novamente o buraco marrom e começou a salivar. E ficou atordoada. Foi então que decidiu esconder o seu desejo atrás da cômoda.
Adolfo chegou do trabalho. Jantaram. Conversaram. Foram deitar-se. Foi Esther ouvir o primeiro ronco de Adolfo que despertou do seu cochilo. Ficou olhando o teto e lembrou do tijolo, macio, úmido, cheiroso. Pensou naquele pedaço de massa corrida abandonado no chão do quarto pintado de rosa. "Que sabor que deve ter? Morango?" E impulsivamente saltou da cama, correu para o quarto do bebê, pegou o pedaço de massa e enfiou na boca. Tinha pedacinhos de tijolo aderidos à massa e se embriagou em êxtase ao matar sua vontade. E logo depois veio o a culpa, a vergonha, o medo. "Será que estou doente? E se fizer mal ao bebê?". Vieram também as pérolas da sabedoria popular: "Bem, pelo menos minha filha não vai nascer com cara de tijolo".
Foi dormir satisfeita, achou que o pesadelo tivesse acabado. No dia seguinte o desejo voltou. E ainda mais forte. Impaciente enquanto Adolfo não saia para o trabalho, correu para a despensa e pegou uma chave de fenda. Mal ele fechou a porta, correu para o quarto, arrastou a cômoda e arrancou um pedação de tijolo da parede. Consumida de culpa e vergonha, pensou em procurar um médico, um psicólogo, um padre...Não. Não iria passar essa vergonha. Jamais! E decidiu guardar segredo.
Passaram-se semanas, e todos os dias Esther arrancava um pedacinho da parede. Depois começou a arrancar pequenas lascas de tinta das paredes de casa. Procurava sempre um cantinho difícil de ser visto. Até o dia em que estava com Adolfo no quarto e ele, debruçando-se com o peso do corpo sobre a cômoda, arrastou-a inadvertidamente, colocando à mostra a parede carcomida.
- O que é isso Esther?
- Não sei querido! Um buraco! Devem ser....ratos!
- Impossível! Ratos fazem túneis e não comem paredes!
Esther ficou vermelha, ofegante e ameaçou um desmaio. Adolfo sustentou-a em seus braços, mas percebeu algo errado naquela reação. Olhou sério para ela, que começou a chorar. Mas jamais poderia revelar seu segredo! Foi então que explicou a ele que estava envergonhada, que o móvel tinha se chocado com a parede e os pedaços foram caindo, talvez por umidade...
- Mas Eshter, isso é impossível!
- Você está duvidando de mim? Eu sempre disse que essa casa era úmida! Eu disse que não queria morar numa casa velha.
- E por que não falou comigo antes?
- Achei que fosse ficar bravo comigo....
E foi assim que conseguiu, teatralmente, enterrar aquela história. O chato foi que Adolfo mandou consertar a parede no mesmo dia. E Esther teve que se contentar com as singelas lascas de tinta da sala de jantar. Mas tudo bem, porque a gravidez já estava no final.
Quando começaram as dores do parto, Esther se desesperou. Mãe de primeira viagem e ainda por cima com a fantasia de dar à luz a um tijolo baiano! Ou quem sabe uma lajota! Mas não ocorreu nada disso. Nasceu Celina, a menina linda da qual já lhes falei. E Celina foi crescendo, linda como sempre. Com oito meses engatinhava freneticamente pela sala. Nasceram os dentinhos: dois em cada andar da boca.
Esther nem se lembrava mais do quanto comeu barro, cimento e massa corrida. Um belo dia resolveu comprar um quadro novo e ao pendura-lo, errou o prego e bateu com o martelo na parede, arrancando uma casca de tinta que caiu ao chão. A lasca deixava avistar um pequeno pedaço do tijolo e Esther se lembrou de suas estripulias. Riu de si mesma e logo avistou Celina em seus pés. Mas quando olhou para baixo, quase morreu de susto. Celina levara à boca a lasca de parede e saboreava com mais gosto do que a sua chupeta. Esther ficou atônita. Cheia de culpa e desgosto, não conseguia nem se mover para tirar a lasca da boca de Celina. Só se moveu quando percebeu que a criança havia se engasgado com o reboque.
Celina foi crescendo e seu gosto pelas paredes cresceu junto. Toda vez que Esther a surpreendia com uma lasca de tinta ou com manchas marrons nos dentes, dava-lhe um beliscão, ralhava com ela. Mas não adiantava. Parecia que seu gosto pelas paredes aumentava a cada dia. Esther fazia um esforço enorme para esconder de todos. Até que Celina foi para a escolinha, e não se passaram dez dias do início das aulas para que Esther fosse chamada pela coordenadora e alertada sobre o conhecido hábito da menina. "Não se assuste, é relativamente freqüente entre crianças dessa idade. Deve ser verminose." Ela sabia que não era. Por sua culpa sua filha devorava paredes por onde passava. Por desencargo de consciência ou uma esperança sôfrega em atribuir causas médicas ao problema, fez o exame de vermes. Nada. "Então deve ser carência". Levou ao psicólogo. Ele achava que ela estava vivendo uma regressão uterina, porque o concreto representava a sustentação e blá,blá,blá. Tirando o fato de comer parede, Celina estava ótima. Sorria, brincava, tinha amigos, não estranhou a escola. Tirava boas notas. Aparentemente não havia nada de errado.
Foi então que Esther tomou uma decisão. Deixaria Celina ser livre para escolher o que desejasse. Mas conversou com ela, explicando que não poderia fazer isso em público, pois as pessoas não entenderiam. E assim elas se entenderam. Nada de psicólogos, médicos ou psiquiatras. Apenas um acordo entre mãe e filha. Um pacto. Adolfo nunca desconfiou. Esther nunca disse uma palavra sobre o assunto.
Um belo dia Celina brincava com suas bonecas em seu quarto. Estava com quase seis anos e usava a pequena cômoda para acomodar seus brinquedos. Um dia o casaco de pele da Barbie caiu atrás do móvel. Independente que era, fez força e moveu a cômoda para frente. E nesse momento avistou a parede. A mesma parede onde tudo havia começado. Sem ter consciência do que se tratava, começou a lamber a parede. De suaves mordidas, passou a morde-la e, com seus dentinhos afiados, arrancou alguns nacos da suculenta massa corrida.
E nesse exato momento, entram Esther e Adolfo no quarto e se deparam com a imagem de Celina cravando os dentes na parede. Adolfo gritou de espanto, olhando para a mulher como quem matasse uma charada, que desmaiou imediatamente. Celina olhava tudo aquilo com espanto e ficou tão traumatizada que nunca mais comeu uma lasquinha de parede sequer. Confessa que ainda hoje, às vezes sente vontade.
Admiro Celina pela coragem e pela irreverência com que contou sua história. E assim são as histórias da infância, muitas vezes trancafiadas pela tirania dos pais. Alguns comeram merda e passaram no cabelo e no berço. Tinha uma amiga do prezinho que tirava cera do ouvido, juntava com uma meleca do nariz e comia. Um outro bebia cola Cascorez da aula de educação artística. Há quem coma cabelo. Outros que comem unhas. Tenho uma prima que comia formigas. Se de um lado soa nogento, asqueroso, do outro lado são histórias simples da infância que nos fazem rememorar como somos primitivos e inocentes, na pior acepção do termo.
Enfim, quem nunca comeu parede ou nem fez nada disso que atire a primeira catota!
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